a culpa é das feministas?
acerca das raízes dos discursos e práticas sobre identidade de gênero
Antes de adentrar na discussão sobre as raízes dos discursos e práticas sobre identidade de gênero que vocês encontram na track de hoje, compartilho com vocês a prévia de uma das recompensas para quem apoiar o financiamento coletivo Feminismo é luta de classes! Inspirada na arte russa dos anos 70, a ilustração e lettering foram feitas pela ilustradora Débora Rocha e estampará a capa da caderneta pautada que é uma das recompensas das faixas de apoio Tecelã\o/ para cima.
Se você já fez seu apoio em outras faixas de recompensas menores, mas quer nossa caderneta e adesivo exclusivos, é bem simples: basta fazer um novo apoio com o valor da diferença. Por exemplo, se você fez um apoio na faixa de recompensa Sindicalista e quer subir para o Tecelã\o/, escolha a faixa Artesã\o/, faça um novo apoio com o mesmo perfil que fez o apoio anterior e pronto, nós saberemos que você receberá as recompensas da faixa Tecelã\o/. O valor pode ser editado para que a soma dê o valor exato da faixa de recompensa desejada. Qualquer dúvida sobre isso, é só me mandar um email no marinacolerato@gmail.com.
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Agora, vamos à track propriamente dita.
Uma influenciadora de direita tem crescido rapidamente em público por falar abertamente contra a adoção irrestrita da identidade de gênero nas políticas públicas e denunciar o quão absurdo é o sexoplanismo ter se tornado a ficção preferida da mídia, da academia e do governo. Ela também tem resgatado as ligações um tanto desconfortáveis entre pensadores queer e tentativas de normalização (e legalização) da pedofilia.1 Até ai, parece ótimo. Se alguma pessoa da direita diz que a Terra é redonda, não discordarei dela.
O problema é que a influenciadora está fazendo isso enquanto diz que todas essas mulheres são feministas e, portanto, no seu discurso, o feminismo aparece como o responsável pela disseminação de políticas públicas baseadas em identidade de gênero, ao invés de sexo, e, ainda, simpatizante da pedofilia. Essa estratégia de culpabilização está sendo balizada por diversos atores da direita, não só no Brasil. Pintar as ideias queer como frutos do feminismo, inclusive inserindo Simone de Beauvoir sempre que possível, é uma conversa quase velha. Quase porque, aparentemente, ainda não foi devidamente superada. Cá entre nós, a considero um tanto tediosa, sobretudo porque é reducionista e preguiçosa. Então, a melhor saída é complexificá-la.
Embora seja forçar a barra chamar Pat Latifa e Judith Butler de feministas dado que elas mesmas nunca se consideraram feministas e suas ideações sejam inerentemente anti-feministas2, é inegável que acadêmicas feministas buscaram acomodar as concepções pós-modernas em voga e um tanto delas colaborou para que os estudos feministas e de mulheres fossem substituídos por estudos de gênero e se desconectassem da realidade concreta das mulheres sob o patriarcado capitalista, o que, inclusive, abriu a possibilidade para muitos homens se tornarem chefes de departamentos de pesquisa antes exclusivos de mulheres3.
A suavização das análises e demandas feministas, bem como a diluição de conceitos centrais à luta coletiva das mulheres, aconteceu com apoio e por meio de mulheres feministas, muitas acadêmicas. Isso não deve ser negado, pois nos impossibilitaria compreender quais conceitos, epistemologias, teorias e narrativas pavimentaram o caminho para chegarmos onde estamos e, portanto, dificultaria nossa compreensão estratégica para encontrar rotas de saída sem que cometamos os mesmos erros, o que fundamentalmente exige do movimento no geral, e de algumas vertentes em particular, uma auto-análise.
Mas essa é só uma pequena fração da figura mais ampla. A realidade é que grande parte do movimento feminista não cedeu facilmente. Desde a década de 1970, um tanto considerável de mulheres do Norte e Sul Global está apontando para os problemas da fagocitação do feminismo tanto na academia como na sociedade, sobretudo por meio de ONGs, agências globais (e globalizantes) como ONU e mídias4. A questão é que lentamente essas mulheres foram ostracizadas e lançadas para fora da conversa, forçadas a conceder todo o campo às ideias alinhadas ao discurso pós (pós-feminista, pós-moderno, pós-humano, pós-revolucionário, pós-estruturalista, etc). Quando as mães do movimento foram finalmente aniquiladas, o distanciamento da academia e de muitas ONGs profissionais (atores chaves na arena política após os anos 70) com a realidade das mulheres se tornou um fosso intransponível. Depois disso, ficou mais fácil fazer as feministas de academia acreditarem que a realidade material não existe, em um período histórico onde a vida passou exponencialmente a acontecer atrás de telas, favorecendo a disseminação do viés construcionista social radical (ridiculamente antropocêntrico, diga-se de passagem) no imaginário social e no pensamento político da esquerda.
Quando eu entrei na academia, o feminismo já tinha sido completamente fagocitado, restando os estudos gêneros e sexualidade, não raro sob comando de homens. Agora, acadêmicas estão sendo literalmente forçadas a adotarem ideias e epistemologias alheias a elas se quiserem ser publicadas, enquanto a organização política se tornou ainda mais solitária com a expulsão das mulheres que não se curvam facilmente das fileiras das organizações da esquerda5. A homogenização puramente narrativa e sem fundamentação consistente, tanto pela via da esquerda (o único feminismo válido é aquele que agrada aos homens), tanto pela via da direita (o movimento feminista é responsável pelo atual estágio das coisas), visa enfraquecer o próprio movimento, inclusive ao nos colocar em um fogo cruzado.
No entanto, essa continua sendo só uma pequena parte da totalidade. É preciso adicionar na mistura o movimento LGBTQIA+, com toda sua força mercadológica capaz de movimentar milhões de dólares anualmente6 e, portanto, quanto mais identidades em uma bandeira, melhor e mais lucrativo para o mercado. Mas mais importante talvez seja todo o lobby por trás dele, que já sabemos ser uma das grandes forças empurrando essas ideias para a sociedade, utilizando desde ONGs feministas até organizações de saúde, a exemplo daquelas focadas na conscientização e combate ao HIV.
Igualmente, é difícil fechar essa conta sem adicionarmos os interesses de sujeitos da indústria fármaco-médica como Martine Rotblat, John Stryker e família Pritzker, responsáveis por articular uma elite, incluindo o governo norte-americano, em prol dessa agenda e pavimentar o caminho para criação dos Princípios de Yogyakarta. Eles estão vendo seus lucros aumentarem por meio do aumento do número de pessoas, sobretudo meninas e mulheres, sob o uso contínuo de bloqueadores de puberdade, hormônios do sexo oposto e em busca de cirurgias que buscam mimetizar características corporais do outro sexo enquanto almejam a distopia transumana.
Ainda devemos adicionar ao bolo os níveis de objetificação feminina alcançados por meio da pornografia violenta disseminada graças a sites como Pornhub. Um dos mais relevantes estudos de análise da pornografia digital feito no Reino Unido, descobriu que um em cada oito títulos exibidos para usuários iniciantes na primeira página dos principais sites pornográficos descrevem atividade sexual que constitui violência sexual contra mulheres.7 Nesses vídeos, as mulheres são objetos fodíveis e intercambiáveis; corpos sem mente (e alma). Nas palavras da acadêmica trans homem-para-mulher Andrea Long Chu, essa representação pornográfica das mulheres é um tipo de “centrífuga que destila […] o feminino aos seus elementos mais básicos: uma boca aberta, um cu expectante, olhos vazios, bem vazios”8. Gostar de ser humilhada, passiva e aparentemente acéfala é, para Chu, o que a torna “uma mulher”. Como descreve Kathleen Stock, “essa construção do feminino como insensatez, humilhação e passividade, tanto por Chu como pelos pornógrafos que ela descreve, exagera tropos comuns de uma cultura visual que objetifica as mulheres em geral”9.
A estagnação secular dos lucros, também chamada de Grande Estagnação, demanda a abertura rápida de novos nichos para investimento do capital excedente, e isso só pode acontecer por meio da colonização, mas não restou muito. Partes intocadas da Terra, da Amazônia às camadas profundas do Ártico, passando pela própria atmosfera, nossos corpos, incluindo a reprodução da vida, e o espaço (tanto o sideral quanto o digital) estão entre as possibilidades remanescentes. Sem uma virada epistêmica que afirma que a natureza e, portanto, os seres humanos, são pura construção narrativa, matéria amorfa passível de ser moldada pela Ciência, não é possível vender a ideia de que o controle e domínio sobre a realidade natural - dos nossos corpos às consequências das emissões desenfreadas de gases de efeito estufa, chegando ao universo e a “gestão dos raios solares” - é factível. É o aprimoramento da ciência de René Descartes e Francis Bacon, para os quais o objetivo último do fazer científico era controlar a natureza e criar a vida.10
É claro que a influenciadora de direita não vai mostrar a figura completa, pois isso significaria, primeiro, reconhecer o papel do pensamento liberal nessa história e, segundo, não ter uma narrativa simplista capaz de mobilizar um grande número de pessoas. É compreensível que os sujeitos, inclusive feministas da esquerda, se sintam mobilizados por vozes da direita como a dela dado o próprio comportamento da esquerda para com as mulheres e crianças (inclusive se considerarmos a conivência história da esquerda com a pedofilia). Também existe uma carência de referências na própria esquerda dadas as consequências que estamos sofrendo na vida real por falar abertamente sobre a questão. Mas, com algum consenso, podemos considerar que cautela no quanto (e como) plataformamos esses sujeitos é importante para o próprio futuro do movimento feminista.
Há muitas referências sobre o tema, eu já escrevi sobre aqui e aqui. Recentemente a Julie Bindel compartilhou em seu Substack sobre isso e no Unheard também. Já esse vídeo bastante conhecido destaca alguns trechos das falas das autoras mencionadas.
As estruturas do pensamento pós-moderno estão enraizadas na rejeição de “grandes narrativas” sobre a verdade e, portanto, não acomoda a política feminista. Grande parte do argumento de Judith Butler é uma resposta ao marxismo; os pós-modernos partem do pressuposto do fracasso da política revolucionária e da luta de classes após 1968. Em alguma medida, ressoa o dogma neoliberal de “não há tal coisa como sociedade, apenas indivíduos”.
Para além de nomes conhecidos como Janice Raymond, que escreveu The Transsexual Empire, em 1979, posso citar as alemãs Maria Mies e Veronica Benholdt-Thomsen, a exemplo deste e deste texto, a boliviana Julieta Paredes e a chilena Andrea Franulic.
Ver os relatos da pesquisa elaborada pela Correnteza Feminista sobre coerção, intimidação e violência dos discordantes do pensamento queer e/ou do fim dos direitos baseado no sexo.
O exercício de pesquisa pode ser feito por qualquer um que se interessa no tema. Dêem um Google apenas nos valores investidos por empresas e corporações nas paradas LGBT de São Paulo, Nova York e Londres nos últimos cinco anos. Também indico toda a pesquisa da Jennifer Bilek, a começar por aqui.
VERA-GRAY, Fiona et al. Sexual violence as a sexual script in mainstream online pornography. The British Journal of Criminology, [online], vol. 61, número 5, p. 1243–1260, 4 abr. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1093/bjc/azab035. Acesso em: 25/06/2023.
CHU, Andrea Long. Females New York: Verso, 2019, p. 78-79, grifo adicionado.
STOCK, Kathleen. Material Girls: Por que a realidade importa para o feminismo. São Paulo: Cassandra, 2023, p. 247.
COLERATO, Marina P. Crise climática e Antropoceno: perspectivas ecofeministas para liberar a vida. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/374229055_Crise_Climatica_e_Antropoceno_Perspectivas_ecofeministas_para_liberar_a_vida.