Uma perspectiva de subsistência para a transição para uma nova civilização
Uma contribuição ecofeminista para o decrescimento
O texto que vocês irão ler a seguir é de Veronika Bennholdt-Thomsen. Veronika é antropóloga social, professora universitária, ativista feminista, cofundadora dos Estudos da Mulher na Alemanha e uma importante colaboradora da teoria feminista de subsistência. Ela fez extensas pesquisas e publicou sobre sociedades camponesas (México, Bolívia, Alemanha, Áustria), entre elas a comunidade matriarcal de Juchitán (México). Junto com Maria Mies e Claudia von Werlhof, é co-autora da coletânea Women, the last colony, de 1988.
Há algumas coisas que gostaria de compartilhar antes de entrarmos na tradução. Recebi esse texto da Carol Bardi, uma amiga ecofeminista que tem se dedicado à temática do decrescimento em suas pesquisas. Ler o texto foi um misto de felicidade e alívio para ambas. Mais uma vez, vimos que as ecofeministas de tradição marxista (também chamadas de ecofeministas materialistas por utilizarem a análise marxista das relações dialéticas entre humanos e vida material ou ecofeministas socialistas) mantiveram o compromisso inegociável com as mulheres e apontaram para o problema do conceito de gênero e da própria generificação do feminismo, da relação intrínseca entre desenvolvimento e transcendência dos limites ecológicos e biológicos da natureza e da necessidade de um novo paradigma não só econômico, mas social e científico já nos anos 70, décadas antes da “globalização” desses temas. Não canso de lembrar que Mies, inclusive, escreveu em seu livro de 19891 o que estamos vendo acontecer agora:
Com a divisão dualística entre sexo e gênero, no entanto, ao tratar um como biológico e outro como cultura, a porta seria novamente aberta para aqueles que desejam tratar a diferença sexual entre os humanos como assunto da anatomia ou como “matéria”. O sexo como “matéria” pode então se tornar um objeto para o cientista, que pode dissecá-lo, analisá-lo, manipulá-lo e reconstruí-lo de acordo com seus planos. […] Essa esfera pode se tornar um novo terreno a ser explorado pela engenharia biomédica para fins de tecnologias de reprodução, engenharia genética e eugênica, e por último, mas não menos importante, para a acumulação de capital.
Se tivesse que apontar apenas um motivo pelo qual acredito que as ecofeministas como Bennholdt-Thomsen, Mies, Mellor e Shiva conseguiram enxergar além e se mantiveram coesas com o passar do tempo, inclusive fazendo as conexões entre a “colonização dos úteros e das sementes”, como disse Shiva2, foi porque as ecofeministas nunca apartaram a natureza e a realidade material da realidade social e vice-versa. Ainda mais importante, quebraram de fato com o pensamento binário de que a cultura e a sociedade estão acima e são superiores à natureza, recusando a tradição iluminista de opor, de forma hierárquica, mente (social/cultural/gênero) e corpo (natureza/sexo). Veronika aponta para isso no presente texto, assim como para outra questão central: as ecofeministas recusam em igual medida a concepção desenvolvimentista de grande parte dos marxistas e socialistas no geral. Em outras palavras, de um jeito ou de outro, elas não mordem a isca da transcendência.
Gostaria de apontar também que a perspectiva de subsistência ecofeminista pode ser encontrada em Jinwar e isso não é coincidência. A concepção ecofeminista de produtividade é produção e reprodução da vida, concepção presente tanto na teoria do Confederalismo Democrático de Abdullah Öcalan, quanto em Jineolojî, “a ciência da mulher e da vida”. Ler o “conto de fadas” de Veronika no presente artigo me levou automaticamente para a práxis do movimento de mulheres no Curdistão e em Rojava.
As sobreposições entre as elaborações das ecofeministas e Öcalan são muitas. Piccardi apontou algumas delas, mas há outras que podemos abordar, como o próprio fato de Jineolojî considerar mulheres como sujeitos completos, uma mente no corpo e um corpo com mente, seres tanto biológicos como sociais, nem só um, nem só outro, assim como são os homens.
Por fim, o poder de síntese e as elaborações objetivando a compreensão são pontos fortes desse texto, que na verdade é uma versão ligeiramente ampliada do discurso de Veronika, “A perspectiva da subsistência: a grande transição pode ser obtida com pequenos passos” (em espanhol), apresentado na Terceira Conferência Internacional sobre Decrescimento para a Sustentabilidade Ecológica e a Equidade Social, The Great Transition: Degrowth as a Passage of Civilization, realizada em Veneza, Itália, em setembro de 2012. O texto em inglês foi publicado em 2016 e pode ser acessado aqui.
O lado b une textos e reportagens autorais, bem como traduções e textos de autoras convidadas inéditos ou pouco conhecidos, continuando o meu esforço de quase uma década de compartilhar sobre teorias e práticas ecológicas e feministas. Se você gosta do que vê por aqui, considere apoiar o trabalho de uma jornalista e pesquisadora non grata. Saiba como apoiar lado b clicando aqui.
Uma contribuição ecofeminista para o decrescimento
Não podemos ver o futuro, mas podemos sonhá-lo: um conto de fadas
Era uma vez, no ano de 2.999. O milênio aproxima-se e toda a humanidade prepara-se para a celebração. Na verdade, há muito o que comemorar. As pessoas estão felizes por terem vivido um período tão longo de paz. Não houve guerras ou fomes durante centenas de anos. Nas próximas celebrações o povo reafirmará o seu compromisso: contribuir para uma situação onde todas as pessoas possam ser felizes. O compromisso é com o futuro, pois sabem que o seu presente será o passado dos seus descendentes. “É importante ter um bom passado para viver bem”, dizem em concordância com a filosofia do povo andino. Foram as comunidades andinas da América do Sul que declararam a filosofia Bem Viver (Buen Vivir/Living Well) como uma meta para o terceiro milênio há mil anos. Conseguiram parar a corrida maluca em nome do chamado Viver Melhor (Vivir Mejor/Living Better).
Nas vésperas do quarto milênio, as pessoas de todo o mundo vivem em aldeias ou pequenas cidades, rodeadas de jardins e pomares repletos de flores, vegetais e frutas, e mais adiante de bosques, campos e prados que não pertencem a ninguém como propriedade privada, mas são propriedade de toda a comunidade. A água é considerada algo muito precioso. Nascentes, córregos, rios e lagos são cuidados com amor, como se fossem avós. Embora a desertificação, por um lado, e as inundações, por outro, pertençam a um passado distante, ainda são lembradas regularmente com rituais comemorativos. As grandes megacidades também são coisa do passado e os seus muitos edifícios ou se desintegraram ou foram transformados em comunidades aldeãs. Isto porque toda a humanidade baseia a sua existência num princípio moral fundamental: viver daquilo que a região a que pertenço pode me oferecer. Isto não tinha sido possível nas megacidades.
A convicção que prevalece é que cada região e cada ser humano são capazes de dar em abundância. O conceito de escassez é desconhecido. Nesta época de ouro, é um prazer e uma fonte de satisfação dar, ou transmitir, algo de nós mesmos aos outros, seja material ou imaterial. Comércio e dinheiro são desconhecidos. O planeta é povoado por sociedades que circulam presentes entre si.
Canções, danças e iguarias estão sendo ensaiadas e preparadas para as grandes celebrações e algumas pessoas já partiram em peregrinação a lugares que emanam uma energia especial. Na Europa, muitos estão a caminho de Veneza onde, há quase mil anos, em 2012, num encontro memorável, foram lançadas as bases para a grande transição para uma civilização que conduza à verdadeira felicidade para todos os tempos.
Os Fundamentos da Grande Transição
Ler o anúncio da Terceira Conferência Internacional sobre o Decrescimento para a Sustentabilidade Ecológica e a Equidade Social (que teve lugar em Veneza, em Setembro de 2012, sob o título “A Grande Transição: O Decrescimento como Passagem da Civilização”), fez-me pensar no título do livro de Karl Polanyi, “A Grande Transformação”, como os organizadores sem dúvida pretendiam. A famosa tese de Polanyi sugere que a ideia ultraliberal de um mercado auto-regulado desliga a economia da sociedade. Segundo Polanyi, este desencaixe é uma utopia fundamentalista em que a substância básica da sociedade é destruída e os valores humanos são minados. Para Polanyi, a tentativa de pôr em prática esta utopia foi a principal causa de duas guerras mundiais. Hoje, esse processo de decadência foi ainda mais longe. A própria economia tornou-se uma guerra. Esta trajetória deve ser evitada se quisermos a paz. Mas como?
A metáfora da desconexão (disembeddedness) de Polanyi é, de fato, mais potente se aplicada na direção oposta: a economia, em termos de uma lógica econômica dominante baseada no crescimento contínuo, no cálculo e na racionalidade numérica, penetrou na sociedade e está agora inserida nela. Em outras palavras: os princípios econômicos do crescimento invadiram os corações e as mentes das pessoas. O decrescimento significa, portanto, ao nível mais profundo, uma descolonização dos corações e das mentes, e também uma descolonização da cultura economicista que invadiu a vida quotidiana das pessoas comuns.
A Perspectiva da Subsistência3
O conceito de subsistência foi confrontado com o conceito de globalização desde o início, isto é, desde que a ideia de crescimento econômico em escala mundial foi legitimada pela Política de Desenvolvimento. No final da Segunda Guerra Mundial, foi criado o sistema de Bretton Woods com as suas duas instituições, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. A intenção básica é claramente visível no nome do banco: Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (ibrd). O acordo de Bretton Woods foi assinado em julho de 1944 por emissários de 44 países, as futuras potências vitoriosas, cujo objetivo era contribuir para uma estrutura que garantisse a paz mundial. No mesmo ano foi publicado “A Grande Transformação”, de Polanyi, cujo tema era a busca das razões das duas guerras mundiais. É mais uma tragédia do que uma ironia quando consideramos que, nesse mesmo ano, a paz deveria ter sido alcançada pelos mesmos meios que Polanyi entretanto identificara como as causas das duas guerras anteriores, isto é, postulando a predominância das leis de mercado econômicas na sociedade.
Combater a economia de subsistência tornou-se o objectivo da Política de Desenvolvimento. O seu objetivo era – e é – separar a cultura de subsistência da herança cultural comum da humanidade, aniquilar a capacidade humana de fazer o que é necessário para si e para o próximo, a fim de viver bem. A Política de Desenvolvimento, por outro lado, apresenta o ganho financeiro como pivô de qualquer decisão e substitui a subsistência pela cultura de consumo comercial com a sua sede de cada vez mais para viver ostensivamente cada vez melhor, sem consideração pelo próximo, nem pelo estado da natureza e da terra. Na altura da presidência de McNamara, o Banco Mundial declarou claramente em 1975 que o seu objetivo era “atrair os agricultores da agricultura de subsistência para a agricultura comercial” (Banco Mundial). Quando vi esta frase e li os programas de “investir nos pobres” (Chenery et al.), pude ver que esta perspectiva, voltada para a comercialização de todos os aspectos da subsistência, poderia revelar-se fatal.
Eu ainda não era conscientemente uma ecologista nem uma feminista, mas a minha aprendizagem como antropóloga entre os povos indígenas na zona rural do México foi suficiente para me permitir compreender quão perigosa seria essa penetração do capital e dos mercados internacionais para o sustento autônomo de milhões de camponeses, artesãos e vendedores nos mercados locais. Já tinha observado os primeiros efeitos desestabilizadores sobre esse sustento causados pela Revolução Verde com as suas sementes híbridas, fertilizantes e pesticidas químicos, levando os camponeses cada vez mais a endividar-se, um processo que foi recentemente deturpado como “investimento nos pobres”.
Desde o anúncio da era do desenvolvimento, a economia de sustento, ou, como agora é chamada em tom de depreciação, a economia de “subsistência”, tornou-se sinônimo de “subdesenvolvimento”. A ideia de superar o subdesenvolvimento de subsistência e de trazer o mundo inteiro para a economia do desenvolvimento ou, em outras palavras, para a economia do crescimento, é uma forma de continuar o projeto de colonização após a Segunda Guerra Mundial. O racismo é reinstaurado através de uma nova fórmula: ser subdesenvolvido é ser inferior, ser desenvolvido é pertencer a uma raça superior. Os danos causados por esta lavagem cerebral colonialista continuam a ser substanciais até hoje e tiveram os seus efeitos em ambos os lados da moeda da globalização. É talvez mais pernicioso do lado dos países rotulados como “desenvolvidos”, cujos cidadãos se identificam orgulhosamente com os mecanismos da economia de crescimento e do consumismo, e podem ver menos claramente através da lavagem cerebral de que são vítimas do que as pessoas no outro lado, que são consideradas subdesenvolvidas.
A Política de Desenvolvimento apresenta o ganho financeiro como o pivô de qualquer decisão e substitui a subsistência pela cultura de consumo comercial com a sua sede de cada vez mais para viver ostensivamente cada vez melhor, sem consideração pelo próximo, nem pelo estado da natureza e da terra.
Uma vez que a “subsistência” é equiparada ao “subdesenvolvimento”, a economia de subsistência é apresentada como sinônimo de pobreza, escassez, ausência de mercados, falta de divisão social do trabalho, uma vida má, na verdade, falta de tudo. Mas isso é uma mentira. Para compreender melhor porque é que os proponentes de uma economia de crescimento rejeitam a subsistência, vejamos o seu significado etimológico. “Subsistência” tem raízes na filosofia grega e latina e significa “aquilo que existe por si mesmo, através da sua própria força imanente”. Este é o princípio do crescimento na natureza, da emergência e da evanescência. É o princípio materno, de nutrir e cuidar. Refere-se ao ritmo da vida; é um princípio ecológico. Do ponto de vista da subsistência, o ser humano faz parte do processo orgânico do mundo, do ser vivo que é a terra. Nesta perspectiva, subitamente a transição da civilização do crescimento econômico para o decrescimento parece óbvia, até fácil: procuremos a subsistência, tomemos as nossas decisões de acordo com o que é necessário para viver, para viver vidas bem, satisfeitas e felizes, sem o desejo equívoco de ter cada vez mais, como descreve a canção popular… “Não consigo nenhuma satisfação”4.
A perspectiva de subsistência é uma política de baixo para cima, da maioria, da sociedade civil; não se baseia em decisões do poder centralizado, mas pode “mudar o mundo sem tomar o poder”, como diria John Holloway. Visar a subsistência em vez do lucro é o parâmetro para a mudança cultural de que necessitamos hoje.
Algumas etapas já estão acontecendo
Moro na Alemanha e posso dizer com orgulho que o novo pensamento já está ganhando terreno. Não faz muito tempo, a maioria das pessoas na universidade, em conferências ou depois de uma palestra dizia: “Subsistência? O que você quer dizer?” Ou, “Isso é algo para os países do Terceiro Mundo”, ou talvez, “Você quer que voltemos à idade da pedra?” Hoje, o discurso da subsistência está presente até nos espaços públicos mais prestigiados. O tema principal da conferência bienal da Igreja Evangélica na Alemanha de 2013, sempre um grande evento com milhares de participantes, foi: “Leve apenas o que você precisa”. A questão principal era: “O que é que realmente precisamos?”.
Posso citar também a famosa exposição de arte moderna e contemporânea, documenta, que acontece em Kassel, na Alemanha, a cada cinco anos: um amigo me trouxe uma obra de arte, um pequeno envelope com sementes que diz: “Subsistência é resistência, é existência, é autonomia”. Muitas partes da exposição foram concebidas com um espírito semelhante. Foram 850 mil visitantes, um terço deles jovens com menos de 25 anos, e foi a “edição” mais visitada da documenta desde a sua criação em 1955.
Em todo o país, estão se formando iniciativas de “cidades de transição”, baseadas na filosofia de que as cidades podem florescer muito bem com base nos recursos locais em termos de abastecimento de alimentos, materiais de construção como barro ou palha, fornecimento de vestuário ou audição de música. Os membros das cidades em transição mostram que podemos andar de bicicleta em vez de conduzir um carro, e geralmente tentam comportar-se de forma responsável face a face com a crise do pico do petróleo. Eles abrangem temas como arte, saúde e biodiversidade. Existem grupos cujos membros ensinam uns aos outros a costurar, cozinhar, etc. (ver também obras de Rob Hopkins). Na Alemanha, Áustria e Suíça existem atualmente cerca de 80 iniciativas de cidades em transição (ver www.transition-initiativen.de).
Outro movimento relacionado é o movimento das hortas comunitárias, conhecido como jardinagem urbana, que está se multiplicando rapidamente. Existe uma rede que reúne aproximadamente 200 hortas comunitárias na Alemanha; temos 135 “hortas interculturais” e desde 2009 surgiu um novo tipo de horta móvel, com plantas cultivadas em recipientes, ou em praças, e outros espaços públicos. O lema de um grupo de Munique: “A cidade é sua, cultive-a!” vem ganhando popularidade (ver Anstiftung).
Os antecedentes dos projetos discutidos acima, que em conjunto podem ser vistos como formando um novo movimento social, são as comunidades/comunas e as ecoaldeias. Durante os últimos 30 anos, elas têm vivido e promovido uma cultura de subsistência e de convívio equitativo, muitas vezes cultivando os seus próprios alimentos, com modelos econômicos que vão desde a cooperativa até à panela comum. A maioria tem orientação esquerdista, alguns seguem ensinamentos cristãos ou budistas. Mas todos eles, cerca de 60 no total, defendem uma visão ecológica (ver Eurotopia). Durante muitos anos foram alvo de difamação e ridicularização. Hoje, porém, há uma nova onda de pessoas que desejam viver em comunidade e que experimentam novas formas de convívio.
Nas cidades, começam a surgir refeitórios comunitários. Um pode ser encontrado na cidade de Bielefeld, onde moro. Há dois anos5 preparamos uma deliciosa refeição com ingredientes orgânicos uma vez por semana para quem aparecer. A ideia surgiu dentro do Fórum Social local. Com a nova legislação social, implementada entre 2003 e 2005 pelo governo social-democrata juntamente com os Verdes, o número de pessoas que precisam comer em bancos alimentares para sobreviver continua a aumentar. No Fórum, descartamos a noção de exigir dinheiro, instalações adequadas, etc. ao Estado, pois isso significaria mais uma vez pedir algo “de cima”, e ficaríamos presos num sistema de poder e de raciocínio econômico que nós, de fato, rejeitamos. Todos nós somos afetados pela situação, não apenas aqueles que não têm abrigo ou são mal pagos pelo sistema. A cultura econômica agressiva e a atmosfera de ansiedade afetam-nos a todos. Elas criam um clima de hostilidade, inveja e confronto. Nós, por outro lado, desejamos uma cultura de convívio, de igualdade e de confiança, onde todos tenham não só comida suficiente para comer, mas também comida boa e suficiente para comer e, acima de tudo, onde ninguém tenha que comer sozinho. A solidão é o maior problema da nossa sociedade. Um remédio fácil e agradável é sentarmos juntos à mesa, comermos bem e em companhia, onde quem tem compartilha mais, enquanto outros compartilham menos ou nada. Alguns oferecem cozinha e espaço para sentar, outros tocam música ou contam contos de fadas. Funcionou bem e iniciativas semelhantes estão em curso noutras partes da cidade.
Você não pode comer dinheiro6
Há muitos críticos que dizem: “Isso não é política”, ou então: “Esse tipo de atividade tem um raio de ação mínimo”. Também já ouvi muitas vezes o seguinte: “É apenas uma questão de alimentação, não de economia”.
Acredito que este tipo de atividade é política, embora não no sentido de política como poder hierárquico, onde um grande número de pessoas e votos se acumulam para obter o peso necessário para instigar políticas centralizadas de cima para baixo. É política no sentido de uma mudança de atitudes e de padrões de pensamento, de um afastamento da cultura do homo economicus. É uma política de desculturação, muito necessária para o decrescimento. É uma política integrada no sentido de que apoia a integração da mente e do corpo. Aprende-se fazendo, colocando as mãos na terra; é uma experiência concreta, vivida e autônoma: não depende de abstrações financeiras e de mercado. É aprender fazendo: Sim, podemos! Desta vez é realmente assim!
É verdade que o raio de ação não pode abranger mais do que uma aldeia, um grupo de vizinhos, uma área urbana, uma vila ou cidade. Mas é só isso. Deixe que apareçam outros grupos semelhantes de pessoas com uma nova forma de pensar. Deixe-os ser semelhantes porque puxam na mesma direção. Mas que também sejam diversos, em sintonia com o seu contexto específico, tal como as plantas precisam ser diversas para que a biodiversidade floresça. A ideologia do crescimento tende para o uniforme, a monocultura, para a megalomania. Veja o que aconteceu com a agricultura orgânica. Vamos sair dos nossos nichos de mercado, disseram os agricultores. Vamos crescer, vamos vender nossos produtos nas grandes redes de supermercados nacionais e internacionais. O resultado hoje é que eles têm de se ajustar a um padrão de preços baratos para uma quantidade cada vez maior de unidades, sejam elas toneladas de monoculturas vegetais, unidades de galinhas ou de porcos. Por outro lado, um raio de ação reduzido, local ou regional, permite a proximidade e o calor das relações humanas, e das relações entre humanos, animais, plantas e paisagens. E, por fim, muitos nichos, um ao lado do outro, juntos podem ter um raio de ação bastante amplo.
A objeção de que “é apenas uma questão de alimentação, não de economia” é desconcertante. APENAS? A comida não é a base da economia? Todos sabemos que neste mundo mais de mil milhões de pessoas, especialmente mães e filhos pequenos, passam fome, sofrem de subnutrição e morrem prematuramente. Para pintar uma imagem menos abstrata: representa um sétimo de toda a humanidade e muito mais pessoas do que todos os habitantes da Europa juntos.
É precisamente neste contexto que a economia globalizada em crescimento, com os seus princípios de cálculo financeiro e de racionalidade numérica, demonstra de forma mais drástica a sua disfuncionalidade. Os Objetivos do Milênio, adotados pelos 189 países membros das Nações Unidas em 2000, expressam como primeiro objetivo:
Meta 1.A: Reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a proporção de pessoas cujo rendimento é inferior a US$ 1,25 por dia.
Meta 1.C: Reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a proporção de pessoas que sofrem de fome.
Eu me pergunto: o que os membros da respectiva assembléia da ONU acham que acontecerá com a outra metade? Ainda serão mais seres humanos do que a população dos Estados Unidos juntamente com o resto do continente norte-americano. Em todo caso, 16 anos após o anúncio dos famosos Objetivos do Milênio, é evidente que falharam. O número de pessoas que passam fome no mundo não diminuiu; pelo contrário, continua a aumentar dia após dia.
Deixe-me agora colocar uma questão: o que parece ser menos real: o meu conto de fadas no início deste texto, ou os Objetivos do Milênio da ONU?
A perspectiva da subsistência: uma contribuição ecofeminista para o decrescimento
A teoria da perspectiva de subsistência surgiu da indignação que sentimos quando confrontadas com a ideologia do desenvolvimento. Foram os anos do final dos anos sessenta e início dos anos setenta, quando as teorias do desenvolvimento e as suas abordagens foram formadas e expressas pela primeira vez. Desde o início, nós, os sociólogos e antropólogos alemães que começávamos a elaborar a teoria feminista da subsistência, rejeitamos tanto a teoria como as práticas de desenvolvimento que então começavam a ser implementadas, pelo seu inerente racismo colonialista. Já havíamos passado muitos anos em regiões do terceiro mundo. As nossas sensações quando enfrentamos o racismo no desenvolvimento foram semelhantes às que sentíamos em relação ao racismo sexista que as mulheres enfrentam na nossa própria sociedade e que começávamos a ver quase ao mesmo tempo. Nasceu o movimento das mulheres (Frauenwegung), foi lançada a revista Beiträge zur feministischen Theorie und Praxis, com o primeiro número publicado em 1973, e em 1983 publicamos uma coletânea de artigos, Women: The Last Colony (Bennholdt-Thomsen, 1992, 1988), com 17.000 exemplares em sua terceira impressão em alemão em 1992.
A ideia de superar o subdesenvolvimento da subsistência e de trazer o mundo inteiro para a economia do desenvolvimento ou para a economia do crescimento, é uma forma de continuar o projeto de colonização após a Segunda Guerra Mundial. O racismo é reinstaurado através de uma nova fórmula: ser subdesenvolvido é ser inferior, ser desenvolvido é pertencer a uma raça superior.
A semelhança entre as abordagens colonialistas às comunidades rotuladas como primitivas, por um lado, e a opressão das mulheres, por outro, abriu-nos os olhos e continua a ser um guia importante para a nossa análise. As mulheres como “a última colônia” é mais do que apenas uma metáfora. O conceito expressa a situação e o processo que estabelece a posição social inferior da mulher. Expressa os níveis econômicos e materiais e ideológicos e culturais (racistas e sexistas) de exploração e opressão que acompanham a posição inferior das mulheres nas nossas sociedades, bem como aponta para a violência oculta por detrás da subjugação das mulheres. A imagem da mulher como colônia também capta o ímpeto anticapitalista da nossa teoria feminista. Mas, claro, existem muitos tipos de anticapitalismo. A nossa perspectiva, centrada na subsistência, é dirigida contra o imperativo do crescimento capitalista. Embora nos vejamos como de esquerda e marxistas, não surpreende que também percebamos os aspectos desenvolvimentistas (orientados para o crescimento) e produtivistas da visão socialista, criticando-a, por sua vez.
Percebemos que o fundamento ideológico-mental dos dois colonialismos, tanto no que diz respeito às comunidades e às suas terras, como no que diz respeito às mulheres, é uma desvalorização do natural, do orgânico, daquilo que germina, nasce e vive por si mesmo, em suma uma depreciação daquilo que tem e daqueles que têm a capacidade de dar e reproduzir vida. Visto desta forma, pode-se compreender que colonizar corpos e terras é, na verdade, apenas um tipo de colonialismo, pois ambos surgem da mentalidade que energiza o sistema patriarcal. Isto já fica evidente na etimologia do conceito “pater arché”: primeiro o pai, originalmente o pai, precedência do pai, poder jurídico que emana do pai. Não há respeito nem reconhecimento da existência e da própria vida; em vez disso, o que conta é o controle sobre ela. O valor é atribuído apenas àquilo que é produzido, fabricado, àquilo que é construído com materiais que são considerados mortos e que são vistos como imbuídos de um valor vital somente após o ato de produção.
Pode-se ver que a perspectiva de subsistência tem sido, desde o seu início em 1970-1975, de fato ecofeminista, embora não tenha sido chamada assim no início. Foi apenas em 1993 que as teóricas da subsistência, Maria Mies e Vandana Shiva, utilizaram o termo “ecofeminismo” como título para uma coleção de artigos7. Em 1980, Carolyn Merchant publicou The Death of Nature, que ajudou a disseminar o termo “ecofeminismo” para denotar o tipo de pensamento que nós, as autoras que escrevem sobre a subsistência, partilhávamos. Merchant, no entanto, concentrou-se numa análise da filosofia e dos valores europeus que acompanharam o início da Idade da Razão e das Ciências Naturais, que levaram à “morte da natureza” e à morte de milhões de mulheres designadas como bruxas, sem ter particularmente em conta a conquista das colônias que ocorreu simultaneamente. Por outro lado, o nosso grupo, preocupado com o terceiro mundo, concentrou-se no violento ímpeto patriarcal do colonialismo europeu que tem atacado os fundamentos naturais e sociais da reprodução da própria vida em todo o mundo: das culturas indígenas, das montanhas (minas), de plantas, solos, terras, colheitas, águas, peixes, genes, etc. Analisamos como, através da violação provocada pelo colonialismo, o mundo foi gradualmente evangelizado até ao ponto em que a fé no Desenvolvimento e no Crescimento parece que foram implantadas como a religião civilizadora global do nosso tempo.
Feminismo pela perspectiva de subsistência no discurso feminista
A subsistência nunca foi uma perspectiva proveniente apenas das mulheres ou destinada apenas às mulheres, pelo contrário, aspirou ser holística. Nossa abordagem é analisar o mundo a partir da perspectiva de ter nascido e ter a capacidade de dar vida, ou seja, a partir da perspectiva de reconhecer o ser humano como parte do processo reprodutivo da natureza. Ao mesmo tempo é uma perspectiva que envolve ação para tornar possível outro futuro. Tem um enfoque antipatriarcal e antimonoteísta que se opõe ao mandato colonialista de “ter domínio sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus e sobre todos os seres vivos que se movem na terra” (Gênesis, 1. Mose, 1 :28) “subjugar a terra”, em todos os seus aspectos e por quem quer que seja, homens ou mulheres. Nas fases de formação do movimento feminista alemão, vivíamos sob a ilusão de que, devido ao seu carácter de ser um movimento para libertar as mulheres, o seu espírito seria naturalmente anticapitalista e opor-se-ia à economia em crescimento. Mas isso não aconteceria. Rapidamente prevaleceu a perspectiva da igualdade de oportunidades, apoiada entre outros por argumentos marxistas provenientes de feministas socialistas. Grande foi o escândalo quando, num discurso em Zurique, em 1989, no Dia da Mulher, tive a ousadia de dizer que a única coisa que a maioria das mulheres no movimento aspirava era uma parte igual do espólio. A minha palestra tinha o título: “Até que ponto o Movimento de Libertação das Mulheres é verdadeiramente libertador?” Houve um escândalo semelhante em Colônia, em 1986, depois da minha contribuição numa grande conferência sobre “Mulheres e Ecologia”. O seu título era: “A questão ecológica é uma questão intrínseca às mulheres” (ver Bennholdt-Thomsen 1987; 1988-89). Muitas mulheres, embora se considerassem ambientalistas, não queriam ter nada a ver com a sua própria natureza feminina humana. Não quiseram sequer considerar o fato de que as causas da sua posição social inferior, ou da falta de igualdade de oportunidades, tinham muito em comum com as causas da destruição ambiental, estando ambas ligadas à subjugação patriarcal de tudo o que brota e cresce autonomamente.
O fundamento ideológico-mental dos dois colonialismos, tanto no que diz respeito às comunidades e às suas terras, como no que diz respeito às mulheres, é uma depreciação do natural, do orgânico, daquilo que germina, nasce e vive por si mesmo, em suma, uma depreciação daquilo que tem, e daqueles que têm, a capacidade de dar e reproduzir vida.
O nosso enfoque é muitas vezes rotulado como “biológico” ou, no jargão dos estudos de gênero, como “essencialista”. O tom depreciativo que vem dos estudos de gênero não é surpreendente. A própria teoria dos estudos de gênero é construída em torno do pressuposto de que não existem diferenças naturais entre os sexos, mas sim que as características de cada sexo são definidas exclusivamente pelas normas de uma determinada sociedade. Por um lado, o impulso para desenvolver esta abordagem é compreensível, pois é uma reação ao sexismo biólogo patriarcal que, na verdade, diz: “ela é uma mulher, por isso deve lavar a louça”. Menos compreensível, porém, é a solução que a teoria de gênero propõe: para não sermos obrigados a lavar a louça, nega-se que exista uma entidade como a mulher. Com efeito, esta posição é igualmente fundamentalista. Presta homenagem ao fundamentalismo biologista ao negar a existência de pré-condições naturais, dando-lhes paradoxalmente mais peso através dessa negação. A natureza está aqui mais uma vez separada e isolada do processo social; é mais uma vez declarada morta. Mas a natureza não é uma entidade estática, separada do processo histórico e social. A natureza e a sociedade humana estão continuamente a transformar-se mutuamente através da influência mútua, sem sinais claros de qual impulso veio primeiro. Um exemplo seria o desenvolvimento a longo prazo da espécie homo sapiens no seu ambiente territorial e climático: onde está a causa, onde está o efeito?
Não é coincidência que o conceito de “gênero” tenha dominado o discurso feminista na era da globalização neoliberal. “Gênero” é uma reflexão filosófica ultraliberal semelhante à “igualdade de condições” da teoria econômica neoliberal. Segundo o conceito de “gênero” não existem sexos, tudo é naturalmente homogêneo no sentido de estar num mesmo nível, permitindo um desenvolvimento desenfreado a partir deste nível, livre de quaisquer limitações.
De uma perspectiva de subsistência, opomo-nos a esta transcendência secular modernista com o seu pressuposto sempre presente de que o futuro trará liberdade ilimitada em todos os aspectos. É a fé no desenvolvimento e no crescimento que alimenta esta esperança.
Do nosso ponto de vista, é, pelo contrário, importante respeitar, estimar e valorizar o espírito imanente no mundo. A perspectiva de subsistência reconhece a diversidade ilimitada existente no planeta: a diversidade de sexos, de sementes, de seres humanos, de paisagens e de culturas. Busca cooperação e complementaridade dentro desta diversidade. Pode ajudar-nos na transição para uma civilização de paz entre homens e mulheres, entre as gerações e entre os seres humanos e os outros seres do nosso planeta.
N.T.: Na edição brasileira da Editora Timo de 2022, a citação está na página 79.
N.T.: Em “Ecofeminismo”, publicado pela Editora Luas em 2021.
Ver Bennholdt-Thomsen (1981; 1987; 1997; 1999).
N.T.: Se refere à música (I can’t get no) Satisfaction, do Rolling Stones.
Enquanto isso, em 2016 o projeto funciona bem há quatro anos.
Ver Bennholdt-Thomsen (2010). Disponível para download gratuito desde 2011 em www.wloe.org/English.en.0.html.
N.T.: O livro foi traduzido para o português pela Editora Luas em 2021.
*A imagem de capa foi elaborada a partir de uma foto disponível na página do Facebook da ecovila de Jinwar, de 02 de maio de 2023.