o aumento de meninas nascendo no "corpo errado" e o bom senso nórdico
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Na Inglaterra, caso Tavistock sugere que ideologia e influência de ativistas suplantaram evidências científicas no uso de bloqueadores de puberdade
Suécia e Finlândia também alteram práticas frente a revisões de pesquisas e aumento de pessoas arrependidas. Na França, Ministério da Saúde pede cautela nas recomendações de intervenções sobretudo em menores.
A clínica de gênero infantil Tavistock, localizada em Londres, no Reino Unido, será forçada a fechar após o início de um processo de revisão de conduta conduzido pela pediatra Dra. Hilary Cass a pedido do National Health Service (NHS), o serviço de saúde nacional inglês. O processo de revisão foi iniciado em 2020 e continuará até 2023, quando a clínica encerra definitivamente as atividades.
A decisão foi tomada no final de julho após recomendações da Dra. Cass serem enviadas aos chefes de saúde responsáveis. No relatório parcial sobre a investigação, enviado em março, ela afirmou que há “perguntas não respondidas criticamente importantes” em relação aos bloqueadores de puberdade prescritos pela Tavistock a crianças a partir dos dez anos.
Ela escreveu: “Não podemos ter certeza sobre o impacto de interromper esses surgimentos hormonais na maturação psicossexual e de gênero. Até o momento, houve pesquisas muito limitadas sobre o impacto a curto, médio ou longo prazo dos bloqueadores da puberdade no desenvolvimento neurocognitivo”.
Administrada pela Tavistock and Portman National Health Service Foundation Trust, e responsável pelo Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero [GIDS na sigla em inglês], o local é o único especializado na Inglaterra em atender crianças e jovens que se identificam como transgêneros. No entanto, o serviço vem enfrentando críticas há anos por parte de ex-funcionários e ex-pacientes sobre a rapidez com que crianças são conduzidas à experimentação com drogas bloqueadoras de puberdade e a influência de organizações trans na prática clínica.
Em suma, Cass concluiu que a Tavistock negligenciou outros problemas de saúde mental em crianças, ignorando um número cada vez mais alto de pacientes no espectro autista, com histórico de trauma, abuso sexual e outras questões essenciais para o tratamento de crianças e adolescentes com algum tipo de disforia de gênero (que está cada vez mais sendo chamada de incongruência de gênero). A pediatra também apontou que, apesar de ser pioneira em administrar drogas bloqueadoras de puberdade, a clínica não coletou dados sobre o uso contínuo ou os efeitos colaterais dos bloqueadores de puberdade, que podem interromper “temporária ou permanentemente” o desenvolvimento do cérebro das crianças.
Keira Bell, uma ex-paciente que foi iniciada ao tratamento com bloqueadores hormonais aos 16 anos, e realizou a retirada das mamas aos 20, processou a clínica por tratamento inadequado em 2019 após se arrepender da transição. Ela afirmou que suas consultas eram superficiais e não discutiam sua sexualidade, ficando em questões “muito gerais, coisas superficiais. ‘Como é o seu nome preferido? Você quer transicionar?’”.
Ela é uma entre um número crescente de pessoas abertamente arrependidas da transição e dispostas a processar a Tavistock por não oferecer os serviços adequados a crianças e adolescentes sofrendo com questões sexuais e de gênero. Baseada nas descobertas da Dra. Cass, a clínica deve enfrentar uma ação coletiva de mais de 1.000 ex-pacientes que afirmaram terem sido apressadamente iniciados nas drogas bloqueadoras sem prévio aviso sobre as consequências.
Tanto ex-pacientes quanto funcionários estão há mais de uma década acusando o Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero [GIDS] no Tavistock and Portman NHS Trust de adotar uma “abordagem afirmativa e inquestionável”, deixando pouco espaço para exploração de outras terapias. Segundo Keira Bell, ela conseguiu os bloqueadores em apenas três consultas. Os ex-funcionários relataram mais de uma vez ao The Times que qualquer questionamento ao tratamento afirmativo era tratado como “transfobia”.
Tom Goodhead, executivo-chefe da Pogust Goodhead, escritório de advocacia à frente da ação coletiva contra a clínica, disse ao The Times: “Crianças e adolescentes foram levadas às pressas para o tratamento sem a terapia apropriada e o envolvimento dos médicos certos, o que significa que foram diagnosticados erroneamente e iniciaram um tratamento que não era adequado para eles”. Segundo Goodhead, “essas crianças sofreram mudanças de vida e, em alguns casos, efeitos irreversíveis do tratamento que receberam. . . Prevemos que pelo menos 1.000 clientes se juntem a esta ação”.
Entre os motivos que levaram à revisão de procedimento na Tavistock está o aumento significativo de crianças procurando o tratamento, principalmente meninas. Mais de 5 mil crianças foram encaminhadas para a Tavistock no ano passado, em comparação com 138 em 2010-11, gerando filas de espera “inaceitáveis”. Segundo dados do serviço, cerca de um terço das crianças e jovens encaminhados para o GIDS têm autismo ou outros tipos de neurodiversidade, enquanto há também uma super-representação de crianças que moram em casas de acolhimento ou outros tipos de lares oferecidos pelo Estado.
Após o fechamento da clínica, os pacientes serão atendidos em hospitais infantis, que, segundo o NHS, oferecerão uma abordagem mais “holística” com “fortes vínculos com serviços de saúde mental”. Outra mudança é que os menores de 16 anos receberão bloqueadores de puberdade apenas como parte de um ensaio clínico, permitindo acompanhamento dos efeitos de longo prazo.
Histórico de escândalos ignorados
Os primeiros alertas em relação aos problemas acontecendo na Tavistock aconteceram há 17 anos, quando a enfermeira psiquiátrica Susan Evans avisou que a clínica poderia enfrentar problemas se seguisse pela abordagem da intervenção. O que moveu Evans a falar foi justamente o fato de a clínica não oferecer terapias alternativas para além das drogas bloqueadoras. Quando, ainda em 2003, ela levantou a possibilidade de utilizar outros tratamentos, foi avisada que os bloqueadores de puberdade deveriam ser ofertados a todos os pacientes. Em 2019, 2.590 crianças foram encaminhadas para eles em comparação com 77 pacientes em 2009.
Apesar de não ter sido ouvida, Evans não ficou sozinha. Entre 2016 e 2019, um total de 35 médicos deixaram a clínica. Entre os que tentaram levantar a questão num ambiente cada vez mais hostil a qualquer prática que não a afirmativa estão seu próprio marido, o psicoterapeuta e ex-governador do NHS Trust, Marcus Evans e o ex-consultor sênior na Tavistock & Portman NHS Trust e ex-governador na Tavistock, Dr. David Bell.
Em 2018, o Dr. Bell entregou um relatório à direção da NHS alertando para o uso apressado de hormônios nas crianças e adolescentes, bem como a necessidade de olhar para os problemas de saúde mental que eles estavam enfrentando. Comentando o recente fechamento ao The Times, ele disse: “Sinto pena das crianças que foram, na melhor das hipóteses, negligenciadas e, na pior das hipóteses, receberam o tratamento errado, e lamento que tenha demorado tanto. Eu levantei essas questões em 2018, assim como muitas outras pessoas. O NHS Trust tentou me sujeitar a uma ação disciplinar. O que aconteceu com todas essas crianças nesse meio tempo?”.
Em seu relato de 2020 publicado no Quillette, Marcus Evans afirma que suas preocupações começaram a aparecer em setembro de 2018, quando se aposentou do trabalho ativo como psicoterapeuta e se juntou ao Conselho de Governadores do The Tavistock e Portman NHS, que hospeda o Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero (GIDS) do Serviço Nacional de Saúde na clínica Tavistock: “Quase assim que entrei, fiquei ciente da crescente controvérsia sobre o GIDS. Uma carta havia chegado de um grupo de pais reclamando que seus filhos haviam sido encaminhados rapidamente para o GIDS sem qualquer avaliação psicológica séria”.
Na mesma época, Dr. Bell havia sido abordado por 10 membros, ou 1/5 da equipe, do GIDS levantando “preocupações semelhantes às expressas na carta dos pais – incluindo avaliações clínicas inadequadas, pacientes sendo pressionados para intervenções médicas precoces e falha da GIDS em resistir à pressão de ativistas trans”. O que o Dr. Evans presenciou foi o que sua mulher, Susan, havia alertado sobre há mais de uma década. Segundo o médico, porém, a situação era ainda pior pelo aumento de 400% no número de encaminhamentos entre 2015 e 2020.
Evans deixou o cargo em fevereiro de 2019 como forma de protesto ao fracasso do NHS Trust em endereçar as preocupações que o Dr. Bell e os pais haviam levantado. Para ele, o GIDS estava adotando uma postura baseada em ideologia política não em ciência: “...jovens com disforia de gênero, em particular, precisam de acesso a médicos independentes que protejam os interesses de longo prazo de seus pacientes, em vez de usar seus pacientes para promover uma agenda ideológica”.
No mesmo ano, uma reportagem da jornalista Lucy Bannerman, publicada no The Times, ouviu outros cinco dos médicos que deixaram a clínica. Os relatos mostram como questões como homofobia, trauma, abuso sexual, distúrbios alimentares e autismo estavam sendo sistematicamente negligenciados. À época, transcrições de entrevistas com a equipe interna do GIDS por parte da NHS vazaram para a BBC Newsnight. As transcrições incluíam temores da equipe de que alguns pacientes foram colocados em “um caminho de transição de gênero” muito rapidamente.
Os médicos também alertaram para as atitudes homofóbicas entre os pais das crianças buscando pelas intervenções, com alguns “parecendo preferir filhos transgêneros e heterossexuais em vez de homossexuais”. Os funcionários também relataram sentir-se desencorajados a encaminharem pacientes que acreditavam ter sido abusados sexualmente aos serviços sociais responsáveis.
Um médico relatou que os tratamentos mais pareciam “uma terapia de conversão para crianças gays”. O clínico afirmou frequentemente atender pessoas que “começaram a se identificar como trans após meses de bullying horrendo por serem gays”. Outra médica disse: “Ouvimos muita homofobia que sentimos que ninguém estava desafiando. Muitas das garotas chegavam e diziam: ‘Eu não sou lésbica. Eu me apaixonei pela minha melhor amiga, mas depois entrei na internet e percebi que não sou lésbica, sou um menino. Ufa.'”
Coincidindo com as acusações da ex-paciente Keira Bell, uma terceira médica relatou que questionar a sexualidade era proibido: “Eu perguntava com quem eles queriam se relacionar, mas a gerência sênior me dizia que o gênero é completamente separado do sexo”, disse ela ao The Times. “Algumas pessoas estavam fazendo a transição de gênero para combinar com sua sexualidade”. Dois médicos afirmaram na reportagem que havia uma piada interna entre os funcionários de que “não haveria mais gays” com tantas pessoas sendo enviadas para o caminho da “transição de gênero”.
Em seu relato ao Quillete, Marcus Evans disse: “Não entendemos completamente o que está acontecendo nesta área complexa, e é essencial examinar o fenômeno de forma sistemática e objetiva. Mas isso se tornou difícil no ambiente atual, pois o debate está sendo continuamente encerrado em meio a acusações de transfobia. Como argumentei em uma apresentação de maio de 2019 perante a Câmara dos Lordes, esse regime de censura de fato está prejudicando as crianças”.
Lobby
A influência dos grupos trans repetidamente apontada pelos ex-funcionários pode explicar o porquê a alta direção da Tavistock tratava as afirmações de crianças dizendo que nasceram no corpo errado como absolutamente inquestionáveis. Já no início dos anos 2000, “estava ficando cada vez mais difícil discutir as necessidades dos pacientes que demonstravam curiosidade clínica. Os primórdios do modelo de cuidado mais ‘afirmativo’ estava se enraizando”, relembrou Susan Evans.
O modelo chamado de afirmativo é aquela no qual uma criança diagnosticada com disforia de gênero é “afirmada” e isso significa se referir a ela como se fosse do sexo oposto e pode incluir fazer uso de bloqueadores de puberdade e outras intervenções medicamentosas e cirúrgicas.
Segundo Bannerman, a relação entre os grupos e a alta diretoria ficou mais clara quando Susie Green, executiva-chefe da organização Mermaids, apesar de não possuir qualificações clínicas, manteve reuniões regulares com a alta administração da Tavistock. A Mermaids é uma ONG britânica que apoia jovens transgêneros e oferece treinamento de inclusão e diversidade para empresas.
Ainda em 2007, a executiva-chefe da organização levou seu filho, que nasceu homem, mas se identifica como mulher, para os EUA para receber bloqueadores de puberdade indisponíveis na Grã-Bretanha e, posteriormente, para a Tailândia para fazer uma cirurgia genital quando a criança completou 16 anos. Ela fez campanha para que os bloqueadores fossem prescritos pelo GIDS enquanto a Mermaids foi listada como fonte de informações e recursos no site da GIDS.
Na já mencionada reportagem do The Times de 2019, funcionários relataram “que as instituições de caridade transgêneros, como a Mermaids, estavam tendo um efeito ‘prejudicial’ ao supostamente promover a transição como uma solução para todos os adolescentes confusos”.
O Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero para crianças e jovens foi fundado em 1994 e tornou-se um serviço encomendado pelo NHS em 2009. Em 2011, o novo diretor do GIDS, Dr. Polly Carmichael, diminuiu a idade mínima para uso de drogas bloqueadoras de puberdade, mesmo sem ter evidências científicas e clínicas suficientes para suportar tal conduta. Sarah Davidson, uma psicóloga clínica consultora sênior do GIDS, foi listada como equipe da Gendered Intelligence, outra organização de lobby inglesa.
Ideologia política acima das descobertas científicas
Quando a pauta com os relatos dos 5 médicos de Bannerman foi ao ar, em 2019, ativistas trans se aglomeraram na porta do The Times para exigir a retirada da reportagem, que chamaram de “transfóbica”. Na internet, a jornalista recebeu ameaças e ofensas. O cerceamento do debate público sobre o que está levando ao aumento considerável de crianças e adolescentes se identificando como trans, sobretudo meninas, que devem responder por 75% do mercado de “identidade de gênero”, e as melhores formas de endereçar a questão, foi uma das razões que possibilitou o silenciamento dos médicos, ex-funcionários e jornalistas apontando os problemas na Tavistock por tanto tempo.
Em uma publicação revisada por pares feita pelo Dr. James Cantor mostrando as falhas de conhecimento no documento da Associação Americana de Pediatria (AAP), que recomenda a abordagem afirmativa imediata, Cantor afirmou: “embora quase todas as clínicas e associações profissionais do mundo usem o que é chamado de abordagem de espera vigilante para ajudar crianças com diversidade de gênero, a declaração da AAP rejeitou esse consenso, endossando a afirmação de gênero como a única abordagem aceitável”. O pesquisador também demonstrou que os estudos disponíveis mostram que a maioria das crianças pré-adolescentes (entre 89% a 98%) que se apresentam como trans eventualmente se sentirão confortáveis com seu sexo.
O que todos esses médicos e médicas estavam alertando durante todos esses anos é que muitas dessas crianças (e seus responsáveis) não estão recebendo informações precisas e suficientes sobre como suas vidas serão afetadas ao prosseguirem com a transição. Além das pesquisas serem escassas, as evidências existentes não suportam as alegações de que o tratamento afirmativo resulta em melhora psicológica.
“Existe um mito de que a taxa de suicídio nesse grupo é alta, principalmente se as crianças não recebem tratamento médico. Mas informações do GIDS mostram que a taxa real de automutilação não é maior do que outros grupos comparáveis”, afirmou Susan Evans ao The Telegraphy. Na verdade, o resultado de um dos poucos estudos conduzidos pela Tavistock, e cujos dados preliminares de 30 dos 44 jovens participantes foram entregues para a diretoria da clínica em 2015, revelou que o oposto é válido: após um ano de uso de bloqueadores de puberdade, houve um aumento significativo encontrado naqueles que responderam à afirmação "Eu deliberadamente tento ferir ou me matar".
Uma revisão de 33 estudos sobre cirurgia de “resignação de gênero”, feita em 2016 pelo U.S. Center for Medicare and Medicaid Services, demonstrou que a maior parte dos estudos sobre cirurgia de resignação tinha problemas metodológicos e, portanto, não eram confiáveis. Os estudos entendidos como confiáveis falharam em demonstrar melhora na função psicológica depois da cirurgia de resignação. Um outro estudo sueco de 2011 concluiu que “pessoas com transexualidade, depois da resignação sexual, têm riscos consideráveis de mortalidade, comportamento suicida e morbidade psiquiátrica quando comparado a população em geral” e que embora a cirurgia possa aliviar a disforia de gênero, “pode não ser suficiente como tratamento para o transexualismo e deve inspirar cuidados psiquiátricos e somáticos aprimorados após a mudança de sexo para esse grupo de pacientes”.
“Aqueles que defendem uma abordagem inquestionável baseada em “afirmação” para crianças transidentificadas muitas vezes alegam que qualquer atraso ou hesitação em ajudar a transição de gênero desejada de uma criança pode causar danos psicológicos irreparáveis e possivelmente até levar ao suicídio. Eles também costumam citar pesquisas que pretendem provar que uma criança que faz a transição pode esperar níveis mais altos de saúde psicológica e satisfação com a vida. Nenhuma dessas alegações se alinha substancialmente com quaisquer dados ou estudos robustos nesta área. Nem se alinham com os casos que encontrei ao longo de décadas como psicoterapeuta”, declarou o ex-governador do NSH Trust.
Uma pesquisa retroativa norte-americana com adultos, onde os pesquisadores concluíram que aqueles que receberam bloqueadores da puberdade quando mais jovens tiveram menos pensamentos e tentativas de suicídio teve uma crítica publicada observando que ou os entrevistados se confundiram, não entenderam a questão ou deliberadamente mentiram, pois os bloqueadores da puberdade não estavam disponíveis nos EUA quando alguns entrevistados disseram que os tomaram e alguns tinham mais de 18 anos (bloqueadores de puberdade normalmente são prescritos para menores de 16 anos).
Frequentemente citado como evidência para o uso de bloqueadores hormonais em crianças e adolescentes, um estudo de acompanhamento holandês apresenta uma falha que compromete suas conclusões, pois compara pessoas que já tinham boa saúde mental, além da disforia, a um grupo cuja saúde mental era precária a ponto de serem consideradas inelegíveis para intervenção precoce.
Outra revisão, dessa vez de 13 publicações, feita em 2018 mostrou, na verdade, que “evidências de baixa qualidade sugerem que os tratamentos hormonais para adolescentes transgêneros podem alcançar os efeitos físicos pretendidos, mas geralmente faltam evidências sobre seu impacto psicossocial e cognitivo. Pesquisas futuras para abordar essas lacunas de conhecimento e melhorar a compreensão dos efeitos a longo prazo desses tratamentos são necessárias”.
Para Marcus Evans, o problema é que muitas universidades estão evitando conduzir pesquisas por conta da “oposição expressa de grupos de lobby pro-trans e seus aliados de mídia”. Ele cita o caso do psicoterapeuta James Caspian, que foi vetado de continuar sua pesquisa com pessoas buscando reverter os efeitos da cirurgia de resignação. A Spa University alegou que “a pesquisa poderia causar críticas nas redes sociais, e a crítica à pesquisa seria uma crítica à Universidade”.
No Canadá, o pesquisador e chefe de equipe da Child Youth and Family Gender Identity Clinic em Toronto, Kenneth Zucker, foi demitido em 2015 após ser acusado por ativistas trans de conduzir “terapia de conversão”. As alegações se mostraram infundadas e seus empregadores concordaram em pagar ao médico uma indenização de US $ 586.000 como parte de um acordo legal. Investigações posteriores inocentaram Zucker por completo. Para Evans, “ficou claro que os ativistas que exigiam sua remoção estavam simplesmente zangados por ele ajudar as crianças a aceitarem sua biologia antes de proceder à transição (este é o chamado processo de “espera vigilante”, que médicos mais responsáveis usam em todo o mundo)”.
Na Austrália, em 2019, mais de 250 médicos lançaram uma petição para apoiar o Dr. John Whitehall, professor de pediatria, que estava pedindo uma investigação pública independente sobre as clínicas de gênero em hospitais infantis no país. Em sua carta, o médico dizia: “Parece que as políticas públicas e as ‘melhores práticas’ médicas estão sendo declaradas às pressas sem uma base suficiente de fato e reflexão, e um Inquérito Parlamentar formal poderia fornecer essa base”. A petição foi forçada a fechar em apenas três dias e suscitou a ira de grupos ativistas nas redes sociais.
A controvérsia dos bloqueadores hormonais
Drogas bloqueadoras hormonais são utilizadas para bloquear a produção de hormônios sexuais e destinam-se a retardar a puberdade. O pouco conhecimento disponível sobre o uso dessas drogas se refere ao uso temporário para crianças que têm puberdade avançada. Nesse caso, as drogas são utilizadas durante um curto período para que a criança alcance seus pares. Além de haver pouco conhecimento sobre os efeitos do uso prolongado, há falta de clareza se essas drogas ajudam as crianças a terem uma “pausa” reflexiva ou são apenas “o primeiro passo de caminho de transição”. Porém, pesquisas prévias sobre o funcionamento do cérebro na infância, adolescência e juventude sugerem que o próprio uso desses bloqueadores pode prejudicar o processo de tomada de decisão.
Sobre isso, a Dra. Cass afirmou: “Não entendemos completamente o papel dos hormônios sexuais adolescentes na condução do desenvolvimento da sexualidade e da identidade de gênero ao longo dos primeiros anos da adolescência, portanto, por extensão, não podemos ter certeza sobre o impacto de interromper esses surgimentos hormonais na maturação psicossexual e de gênero. Dessa forma, não temos como saber se, em vez de ganhar tempo para tomar uma decisão, os bloqueadores da puberdade podem atrapalhar esse processo de tomada de decisão”.
Para a médica, outra preocupação é que “a maturação do cérebro pode ser interrompida temporária ou permanentemente por bloqueadores de puberdade, o que pode ter um impacto significativo na capacidade de tomar decisões complexas carregadas de risco, bem como possíveis consequências neuropsicológicas de longo prazo”.
Um artigo de 2020 intitulado “Consensus Parameter”, produzido coletivamente por 24 especialistas internacionais em neurodesenvolvimento, desenvolvimento de gênero, neuroendocrinologia e áreas afins concluiu que:
“O período puberal e adolescente está associado a um neurodesenvolvimento profundo, incluindo trajetórias de capacidades crescentes de abstração e pensamento lógico, pensamento integrador e pensamento social e competência. A combinação de pesquisas neurocomportamentais em animais e estudos de comportamento humano apoia a noção de que a puberdade pode ser um período sensível para a organização do cérebro: ou seja, uma fase limitada em que o desenvolvimento de conexões neurais é moldado exclusivamente por fatores hormonais e experienciais, com consequências potencialmente ao longo da vida para o desenvolvimento cognitivo e saúde psicológica e emocional”.
Uma das formas que organizações afirmando apoiar pessoas trans usa para tentar bloquear os questionamentos e debates não só políticos como também científicos acerca do aumento inquestionável de pessoas, sobretudo meninas, querendo fazer alterações corporais drásticas, é dizendo que esses questionamentos seriam algo parecido aos questionamentos da ciência acerca da homossexualidade enquanto doença.
Embora tal comparação possa ser eficaz para cessar debates, existem diferenças que tornam os casos incomparáveis e a principal delas é que intervenções físicas podem ser irreversíveis e aumentar o sofrimento psíquico ao invés de atenuá-lo. “A ideia de tratar a disforia de gênero medicamente é mudar o foco do problema da mente para o corpo. Mas enquanto as crenças podem mudar, os efeitos de tais intervenções médicas podem ser irreversíveis”, pontuou Marcus Evans.
Para ele, essa tendência afirmativa está parcialmente enraizada “na ideia extravagante de que todos - incluindo crianças - têm uma identidade de gênero inata, semelhante a uma alma religiosa, que se descobre e se nutre”, mas alerta, citando outros três autores, que além do “conceito de gênero ser dúbio” - e estar sendo desafiado por cientistas, filósofos e profissionais da saúde -, “estudos de desenvolvimento mostram que crianças pequenas têm apenas uma compreensão superficial de sexo e gênero (na melhor das hipóteses). Por exemplo, até os sete anos de idade, muitas crianças costumam acreditar que se um menino colocar um vestido, ele se tornará uma menina. Isso nos dá motivos para duvidar da existência de um conceito coerente de identidade de gênero em crianças pequenas. Na medida em que tal identidade possa existir, o conceito se baseia em estereótipos que incentivam a fusão de gênero com sexo”.
As mudanças de conduta da Suécia e Finlândia
A conduta afirmativa normalmente é justificada pelo chamado “protocolo holandês”, baseado nos resultados de uma pesquisa que analisou um grupo pequeno e majoritariamente masculino de sujeitos que sofria com disforia de gênero de longa duração e não apresentava outras doenças graves ou problemas de saúde mental. Apesar das falhas metodológicas, o protocolo se tornou referência e passou a ser adotado em outros países.
Em entrevista à jornalista e autora Lisa Selin Davis, Thomas Linden, Diretora de Políticas de Cuidado da Saúde Baseada em Conhecimento, do Conselho Nacional de Saúde da Suécia (NBHW), afirmou que as primeiras orientações a endereçar menores de 18 anos surgiram em 2015 e “foram escritas para o que pensávamos ser um grupo menor de pacientes e mais homogêneo”. Mas Linden notou que, de lá para cá, o número de pessoas procurando atendimento aumentou exponencialmente, passando de “de 4 para 77 por 100.000 habitantes”. Assim como na Inglaterra, a maior parte, segundo a diretora, são meninas com múltiplos diagnósticos psiquiátricos.
Riittakerttu Kaltiala-Heino, psiquiatra-chefe do Departamento de Psiquiatria de Adolescentes do Hospital Universitário de Tampere, da Finlândia, onde algo similar ao protocolo holandês foi adotado em 2011 por conta de “pressão política para que crianças e adolescentes também tivessem acesso a essas avaliações”, segundo o médico, o número de meninas era cinco vezes maior. Outra diferença é que elas não pareciam ter o que era normalmente entendido como disforia de gênero. Para o médico, “elas pareciam ser muito influenciadas por outros adolescentes”.
Diferente da Inglaterra, onde o acompanhamento dos dados foi negligenciado, os médicos na Finlândia e Suécia observaram sistematicamente as evidências e revisaram suas orientações.
Primeiro, foi a Finlândia, no início de 2020, após o Conselho de Escolhas em Cuidados de Saúde da Finlândia (COHERE) fazer uma revisão da literatura disponível sobre a segurança e eficácia dos tratamentos disponíveis. “Ficamos muito surpresos ao descobrir que a maioria dos adolescentes encaminhados para avaliação de identidade de gênero tinham problemas psiquiátricos graves”, afirmou Kaltiala-Heino. Para o médico, isso é bastante relevante pois impede os clínicos de realmente entenderem se os problemas mentais eram consequências da disforia de gênero ou se eram a fonte dela, “uma vez que muitos tinham longas histórias de problemas psiquiátricos e a disforia de gênero só se desenvolveu à medida que a puberdade se aproximava”.
A decisão do COHERE não foi de pausar completamente a transição a menores de 18 anos, mas orientou muita cautela para os procedimentos adotados e o trabalho conjunto de um time multidisciplinar de profissionais. “A evidência científica para qualquer intervenção em menores com indicação de identidade de gênero é realmente zero”, Kaltiala-Heino disse à Davis. O documento com as novas diretrizes indica: “A intervenção de primeira linha para a variação de gênero durante a infância e adolescência é o apoio psicossocial e, conforme necessário, terapia exploratória de gênero e tratamento para transtornos psiquiátricos comórbidos”. E: “À luz das evidências disponíveis, a mudança de sexo de menores é uma prática experimental”.
“Os médicos individuais estavam sob grande pressão, portanto pedimos a este órgão nacional que avaliasse essa situação e criasse diretrizes nacionais”, explicou Kaltiala-Heino.
Na Suécia, as mudanças aconteceram no começo do ano: “O NBHW considera que os riscos do tratamento de supressão da puberdade com análogos de GnRH e tratamento hormonal de afirmação de gênero superam os possíveis benefícios e que os tratamentos devem ser oferecidos apenas em casos excepcionais”. Acompanhamento e apoio psicológico devem ser as primeiras linhas de tratamento. Tratamentos com bloqueadores de puberdade e hormônios de sexo cruzado deverão ser administrados apenas em contextos de pesquisa, em três hospitais do país com autorização do NBHW para realização.
Aumento de pessoas arrependidas e destransicionadas
Além de um número cada vez maior de meninas, outra questão que alertou as autoridades de saúde nórdicas foi o aumento dos relatos de pessoas destransicionadas ou arrependidas, como o caso de Keira Bell. Na Finlândia, “jovens que se arrependem após a cirurgia começaram a surgir”, disse Kaltiala-Heino. “Os arrependimentos não vêm imediatamente. É depois de quatro, cinco anos, talvez”.
Um estudo com 100 pacientes destransicionados, dos quais 69% eram mulheres biológicas, mostrou que 76% não informaram suas clínicas sobre insatisfação e arrependimento. Para os especialistas, esse é uma lacuna de conhecimento importante. “Temos um grande ponto cego em que não sabemos quantos [destransicionados] realmente são”, disse Linden, acrescentando que acha que é mais comum do que se pensava anteriormente, mas provavelmente não generalizado. Outro estudo, pequeno e que ainda precisa ser replicado, do Reino Unido, apontou 10% de destransicionados.
Outra questão que contribui para o baixo conhecimento sobre pessoas arrependidas é que os grupos ativistas e veículos de comunicação justificam o silenciamento dizendo que ouvir essas pessoas pode ser perigoso, pois seus relatos podem alimentar tentativas de proibirem bloqueadores de puberdade e hormônios de sexo cruzado para menos de 18 anos.
A canadense Michelle Alleva conta que se identificou como transgênero por um período de dez anos, durante o qual recebeu prescrição de testosterona e passou por duas cirurgias: mastectomia (retirada das mamas) e histerectomia (retirada do útero). Sete anos depois de receber a primeira prescrição de testosterona, com quase 30 anos de idade, foi diagnosticada com TEA, TDAH e estresse pós-traumático. Ela destransicionou alguns anos depois e começou a questionar por que ela havia sido encorajada a buscar um tratamento médico extremo que, em última análise, não era adequado para ela.
Particularmente preocupada com a abordagem exclusiva de afirmação, iniciou a Genspect. A organização afirma oferecer “um espaço onde a discussão respeitosa das questões de gênero é incentivada, e acolhemos pessoas trans, pessoas detrans, pais e profissionais que acreditam que um caminho melhor é possível”.
Articulada pela organização, o Detrans Awarness Day (Dia da Conscientização Detrans) é outra iniciativa organizada por pessoas destransicionadas buscando compartilhar suas experiências. “Os destransicionadas experimentaram uma jornada dramática de autoaceitação e uma viagem impopular de transição e retorno. Após a transição, sentimos um grau avassalador de afirmação por parte de médicos, profissionais de saúde mental e amigos. Mas do outro lado, essas vozes animadoras estão silenciosas e nossa existência é ignorada. Estamos aqui para torcer um pelo outro”, diz o site da iniciativa.
A norte-americana Grace, que ficou conhecida por uma entrevista sobre o tema ao programa 60 Minutes, acumula seguidores no Twitter e compartilha sobre sua experiência na newsletter Hormone Hangover. Ritchie também tem compartilhado seus relatos sobre destransição no seu perfil do Twitter e newsletter TullipR - Detrans Man.
Outra publicação do tipo, PITT – Parents with Inconvenient Truths about Trans traz a perspectiva de pessoas destransicionadas. Em uma postagem recente, Laura, uma mulher que fez cirurgia aos 20 anos, compartilha a carta enviada ao seu médico: “Esta é uma cópia da carta que enviei ao cirurgião que realizou minha dupla mastectomia ou “cirurgia top” quando eu tinha 20 anos. Esta carta, endereçada como uma “Notificação de Destransição” foi enviada ao cirurgião plástico. Escrevi esta carta para informar ao médico e sua equipe que uma ex-paciente sua se arrepende 100% da operação realizada nela, e se destransicionou e agora vive como uma mulher biológica sem seios funcionais”.
Nos Estados Unidos, onde a política afirmativa é o modelo dominante, até a respeitada Erica Anderson, PhD, presidente da US Professional Association for Transgender Health (USPATH) e ex-representante no conselho da WPATH afirmou que ela e outra psicóloga, Laura Edwards-Leeper, PhD, têm sido criticadas por alertarem para como as diretrizes do WPATH estão sendo utilizadas de forma “descuidada” nos EUA.
As duas psicólogas enviaram recentemente um artigo de opinião ao The New York Times, mas foram recusadas, fato confirmado pelo Medscape Medical News. O artigo foi posteriormente publicado no The Washigton Post. Anderson é uma pessoa transidentificada como mulher e começou a expressar preocupação sobre o número crescente de pessoas arrependidas com as intervenções permanentes. “Isso vai me render muitas críticas de alguns colegas, mas dado o que vejo [em relação à transição de adolescentes sem as devidas salvaguardas], minha experiência como psicóloga tratando jovens com variações de gênero me deixa preocupado que as decisões sejam tomadas. que mais tarde serão lamentados por aqueles que os fazem”, acrescentou Dr. Anderson. A melhor abordagem é aquela que “avalia a saúde mental de alguém historicamente… e prepara [o paciente] para tomar uma decisão de mudança de vida”, afirmou ela em uma entrevista sobre o tema.
Edwards-Leeper é professora emérita da Escola de Pós-Graduação em Psicologia da Pacific University em Hillsboro, Oregon, e fez parte da Força-Tarefa da American Psychological Association (APA) que desenvolveu diretrizes práticas para trabalhar com indivíduos transgêneros. Atualmente, ela é presidente do comitê de crianças e adolescentes do WPATH. A preocupação de Edwards-Leeper extrapola os menores de idade, por exemplo, os jovens entre os 18 e 25 anos: “[Essa população] é muito mais jovem em termos de desenvolvimento" quando comparado aos adultos.
O alerta da França, pandemia e internet
As psicólogas norte-americanas também afirmam que a influência dos pares é extremamente relevante em crianças, adolescentes e jovens: “Existe essa ideia de que se uma pessoa diz que é trans, ela é trans, e que a pessoa sabe quem ela é melhor do que ninguém”, explicou. “Há verdade nisso dentro da minha perspectiva, mas é muito mais complicado quando estamos falando de um adolescente que está tentando descobrir sua identidade e é influenciado por muitos fatores”.
Para Anderson isso também é um problema: “Os adolescentes influenciam uns aos outros, por isso não deve ser uma surpresa que a influência dos pares seja um fator de identidade sexual ou de gênero”, diz ela.
Em 2018, Dra. Lisa Littman, Brown University, publicou uma pesquisa chamada Parent reports of adolescents and young adults perceived to show signs of a rapid onset of gender dysphoria (ROGD) que aponta a influência do grupo no que ela chamou de “processo rápido de disforia de gênero”. A única publicação que refuta as descobertas de Littman recebeu quatro críticas publicadas pela falta de rigor metodológico.
Na França, após notar o crescimento rápido e atípico do número de crianças e adolescentes, sobretudo de meninas, afirmando ter alguma incongruência de gênero, o Ministério da Saúde emitiu novas recomendações aos profissionais da saúde no país: “o risco de sobrediagnóstico é real, como mostra o número crescente de jovens transgêneros que desejam “destransição”. Portanto, é aconselhável estender ao máximo a fase de apoio psicológico” e recomenda “a promoção da investigação clínica e biológica, bem como ética, que ainda é muito rara na França sobre este assunto” e “a vigilância dos pais face às questões dos filhos sobre a transidentidade ou o seu mal-estar, sublinhando o carácter viciante da consulta excessiva das redes sociais, prejudicial ao desenvolvimento psicológico dos jovens e responsável, em grande medida, pela crescente sensação de incongruência de gênero”. No país, meninas podem realizar a mastectomia a partir dos 14 anos.
A influência de grupos de internet, que se parecem com os grupos pró-suicídio e pró-anorexia nos anos 2000, tem sido apontada como um vetor importante das estatísticas sobretudo após a pandemia. “Isoladas da vida real, as meninas se conhecem online, em poucas semanas, de que eram meninos. Meninas adolescentes me avisaram que estão constantemente conectadas aos fóruns da comunidade trans que brincam com a vitimização. Elas sentiram que estavam se unindo ao lado dos bons, dos oprimidos, e foram aplaudidas quando se declararam não-binárias", declara a feminista francesa Blandine na transmissão do Rebelles du genre (Rebeldes do gênero, em português), podcast criado para falar sobre o tema e alertar para as consequências dessa tendência.
Paciente-cliente, mais lobby e o mercado da identidade de gênero
Para Marcus Evans, “a extrema deferência demonstrada às crianças que se apresentam como trans pode estar ligada à mudança mais geral na forma como os médicos e outras figuras de autoridade são percebidos na era da internet”. Em tempos de influencers de TikTok, mídias sociais, médicos não são mais figuras de autoridade, com “ampla licença para avaliar seus pacientes de acordo com sua experiência, esse “guardião” agora é visto como controlador e até repressivo. Muitos pacientes agora veem a visita de um médico através das lentes da cultura de consumo – pela qual o cliente está sempre certo”.
Embora os terapeutas não devam impor sua visão do que é “normal” a nenhum paciente e “tampouco devem se engajar em uma tentativa de converter o indivíduo ao seu modo de pensar”, também não devem “suspender a curiosidade, aceitar acriticamente a apresentação do paciente pelo valor de face e, em seguida, agir como uma animadora de torcida “afirmativa” para atos de transição que mudam a vida. Em vez disso, o objetivo da terapia exploratória deve ser entender o significado por trás da apresentação de um paciente para ajudá-lo a desenvolver uma compreensão de si mesmo, incluindo os desejos e conflitos que impulsionam sua identidade e escolhas”, afirma ele.
Mas ideias e ideologias que se espalham como fogo em mata seca normalmente não estão exclusivamente atreladas ao campo dos valores ético e morais. Conforme o número de pessoas buscando “corrigir” seus corpos aumenta, aumentam também as consultorias empresariais para “diversidade e inclusão”, a procura por cirurgiões e especialistas de gênero e por medicamentos de uso prolongado, como as terapias hormonais, e tudo o que surge junto em termos de produtos e serviços.
De acordo com as Estatísticas de Cirurgia Plástica de 2019 da Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos, cerca de 11.000 cirurgias de “confirmação de gênero” ou “mudança” de sexo foram realizadas nos EUA, cerca de 10% a 15% maior do que no ano anterior. Segundo a consultoria Grand View Research, “o número crescente de cirurgias de mudança de sexo nos EUA impulsionará o crescimento do mercado” até 2027. O tamanho do mercado de cirurgia de redesignação sexual nos EUA foi avaliado em US$ 267,0 milhões. Na medicina transgênero, o mercado de terapias hormonais foi estimado em US$ 21,8 bilhões em 2019 e deve crescer quase 8% ao ano.
Nos Estados Unidos, a consultoria afirma que “a melhoria do cenário de reembolso também deve impactar positivamente o crescimento do mercado durante o período de previsão. Provedores de seguros como Aetna e Unicare fornecem seguro para procedimentos cirúrgicos necessários, como salpingooforectomia, histerectomia, orquiectomia ou ovariectomia”.
Em particular, o “segmento mulher para homem” dominou o mercado em 2019, sendo responsável por 55.2% das receitas. Segundo a consultoria, “isso é atribuído ao número crescente de mulheres que optam por cirurgias de mudança de sexo”. Um relatório da inteligência de negócios Global Market Insight prevê que o mercado de cirurgias de “confirmação de gênero” deve ultrapassar US$ 1,5 bilhão até 2026.
O crescimento do mercado na agenda trans também parece movimentar a filantropia de empresas farmacêuticas. Jon Stryker, neto de Homer Stryker, um cirurgião ortopédico que fundou a Stryker Corporation, vendeu US$ 13,6 bilhões em suprimentos cirúrgicos e software em 2018. Em 2000, ele criou a Arcus Foundation, uma organização sem fins lucrativos que atende à comunidade LGBT, doando cerca de US$ 58,4 milhões para programas e organizações que realizam trabalhos relacionados à agenda entre 2007 e 2010, tornando-se um dos maiores financiadores LGBT do mundo.
Como notou a jornalista Marry Harrignton, ainda mais relevante talvez seja o caso de Martine Rothblatt, a empresária biofarmacêutica transgênero. Em The Apartheid of Sex: A Manifesto For Freedom of Gender (1995) ela afirma: “o curso do progresso na civilização tem sido tornar tão irrelevante quanto possível o status de nascimento de um indivíduo em particular”. Para Rothblatt, com o avanço da tecnologia biomédica, a ideia de “biologia como destino”, ou seja, que devemos viver com nossos próprios corpos, está “datada”. O progresso científico significa libertar os indivíduos da “natureza arbitrária do sexo” em nome da “plena libertação cultural das pessoas”. Para ela, “a separação legal das pessoas em sexo masculino e feminino é injusta porque priva a todos do direito de autoexpressão criativa”.
Martine Rothblatt é uma das CEOs mais bem pagas da biofarma, com um pacote de remuneração de US$ 45,65 milhões em 2019. Ela é a fundadora e presidente do conselho da United Therapeutics, que desenvolve novas tecnologias que prolongam a vida de pacientes nas áreas de doenças pulmonares e, particularmente notável, fabricação de órgãos. O mercado de biotecnologia, inclusive, segue em crescimento. De acordo com um relatório da McKinsey de 2021, o preço médio das ações das empresas de biotecnologia europeias e norte-americanas aumentou mais que o dobro da taxa do S&P 500 (é uma carteira teórica das 500 ações mais representativas e negociadas na NYSE (Bolsa de Nova Iorque) e na NASDAQ. Este índice foi criado em 1957. Desde então, ele é considerado como o principal indicador do mercado acionário norte-americano).
Ainda que haja pressão acontecendo por todos os lados também na Finlândia e Suécia, compartilho da ideia sobre a diferença nevrálgica de ter um sistema de saúde socializado, onde a lógica de consumo é atenuada, diferente de países como EUA, onde “cirurgiões de gênero” acumulam seguidores nas redes sociais anunciando seus serviços para crianças e adolescentes. Para a diretora do NBHW, “nosso ponto de vista é que este é um tratamento médico, você não pode entrar em uma clínica e solicitá-lo. Você tem que ser avaliado de acordo com suas necessidades e tem que ser informado sobre riscos”.
Mas como diz o ditado popular da terra natal de Rothblatt, money talks, bullshit walks. Ou, em outras palavras, o dinheiro sempre detém a narrativa dominante.
Até a próxima,
Marina Colerato
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