Do feminismo ao transgenerismo
A biofobia e como uma feminista radical caiu no conto patriarcal 4.0
O texto abaixo foi escrito pela feminista japonesa, marxista e crítica de gênero, Seiya Morita e publicado originalmente no On the Woman Question como resposta a um texto da (ex) teórica do feminismo radical Catherine MacKinnon (um texto ruim, ofensivo e anti-científico para dizer o mínimo, que já recebeu uma série de críticas e colocou mais um tijolo na minha certeza de que as Ciências Humanas infelizmente se tornaram uma grande “pseudociência” repleta de viés, mas mais sobre isso em outro momento).
Sendo uma ecofeminista, e não uma feminista radical, meu contato com as leituras feministas radicais originais como Andrea Dworkin, Sheila Jeffreys e a própria MacKinnon ainda é bastante limitado. Embora as ecofeministas socialistas/materialistas, assim como qualquer vertente do feminismo que surgiu após a segunda metade da década de 1970, tenham trabalhado sobre escritos das feministas radicais, as críticas presentes nos escritos ecofeministas ao feminismo radical sempre estiveram bastante relacionadas com a biofobia do corpo feminino (medo ou rejeição de elementos naturais com propósito adaptativo ou de sobrevivência), que remonta à Simone de Beauvoir e, indo às raízes da questão, à visão cartesiana que cinde de forma oposta e hierárquica o natural e social.
A ideia que existe uma cultura pura (no caso dos humanos, gênero) bem como uma biologia pura (no caso dos animais humanos ou não, sexo) e que o que é socialmente construído é melhor e superior à realidade natural é uma crítica ecofeminista central às várias vertentes do construcionismo radical (valendo tanto o pós-modernismo, como para algumas vertentes do feminismo marxista e radical).
Quando falhamos em perceber a relação dialética e indissociável entre natural e social/cultural, reforçando e levando adiante a visão da Ciência de Descartes e Bacon, abrimos portas para os mais variados tipos de exploração e superexploração, desaguando no lucrativo construcionismo do complexo tecno-fármaco-médico. Ainda nos anos 80, Maria Mies (2022, p. 79) avisou que a generificação do feminismo não só tiraria mulheres de cena novamente como:
Com a divisão dualística entre sexo e gênero, no entanto, ao tratar um como biológico e outro como cultura, a porta seria novamente aberta para aqueles que desejam tratar a diferença sexual entre os humanos como assunto da anatomia ou como “matéria”. O sexo como “matéria” pode então se tornar um objeto para o cientista, que pode dissecá-lo, analisá-lo, manipulá-lo e reconstruí-lo de acordo com seus planos. Uma vez que todo valor espiritual foi retirado do sexo e encapsulado na categoria gênero, os tabus que até agora ainda cercavam a esfera do sexo e da sexualidade podem ser facilmente removidos. Essa esfera pode tornar um novo terreno a ser explorado pela engenharia biomédica para fins de tecnologias de reprodução, engenharia genética e eugênica, e por último, mas não menos importante, para a acumulação de capital.
Nesse sentido, qualquer vertente ecofeminista (de Plumwood à MacGregor à Mies, Salleh e Shiva) não separa biológico de cultural e vice-versa, pois sabe que tal separação é uma ilusão criada durante as revoluções científicas do século XVI, quando o mecanicismo se torna o paradigma científico, e necessário ao contexto da época: a ascensão do capitalismo como nova ecologia-mundo do patriarcado. No entanto, isso não significa que as ecofeministas responsabilizam as feministas radicais pelo atual estado das coisas. Significa apenas que tratar a biofobia do corpo feminino e de suas funções particulares para reprodução da vida pode evitar a proliferação de MacKinnons e do tipo de pensamento androcêntrico que permeia toda sua narrativa desconexa no atual momento de fúria patriarcal e crise permanente de acumulação de capital.
O lado b une textos e reportagens autorais, bem como traduções e textos de autoras convidadas de interesse ecofeminista inéditos ou pouco conhecidos, continuando o meu esforço de quase uma década de compartilhar mais sobre a teoria e práticas ecofeministas. Se você gosta do que vê por aqui, considere apoiar o trabalho de uma jornalista e pesquisadora non grata. Saiba como apoiar o lado b clicando aqui.
Do feminismo ao transgenerismo: Catharine MacKinnon e sua transição política
Como marxista, fui influenciada pelo feminismo radical quando, como estudante de pós-graduação, li o livro Feminism Unmodified, de Catharine MacKinnon. Isso foi há 30 anos. Uma tradução japonesa do livro foi publicada em 1993. Por acaso, encontrei-a em uma livraria de segunda mão. O livro revela concretamente como a pornografia causa danos às mulheres, domina a maneira como as pessoas veem e pensam sobre as mulheres, transforma as mulheres em objetos sexuais e cria o mundo em que vivemos. Ainda me lembro do choque de ler aquele livro.
Desde então, devorei seus vários livros e artigos, escrevi muitos artigos baseados em suas teorias e traduzi seu trabalho para o japonês. Aprendi muito com seus argumentos. Mas agora ela passou de uma feminista radical de alto nível para uma transgenerista medíocre. A autora de Feminism Unmodified modificou o feminismo modificando a definição de mulher.
Em 28 de novembro de 2022, um debate sobre Lei e Política Transgênero foi realizado na Universidade de Oxford. MacKinnon fez o discurso principal neste evento, que foi realizado pacificamente, sem nenhuma interrupção violenta, cancelamento ou ameaça de ativistas. Seus procedimentos foram posteriormente publicados na íntegra na revista Signs. Seu conteúdo é realmente surpreendente, e várias feministas já o criticaram (por exemplo, Victoria Smith). Eu tento outra crítica aqui. Ironicamente, posso fazer essa crítica justamente porque aprendi com ela.
Da primeira linha à última, seu discurso é cheio de erros, mentiras, sofismas, distorções, saltos de lógica e misoginia. Uma crítica completa seria tão longa quanto um livro. Então, vou me concentrar em apenas três problemas.
1. As feministas críticas de gênero são essencialistas biológicas?
A posição de MacKinnon é construída sobre dois pilares. Em primeiro lugar, as feministas críticas de gênero são essencialistas biológicas. Em segundo lugar, as mulheres trans são, politicamente, mulheres. Para ela, os dois são inseparáveis. Começo com o primeiro pilar.
‘Definindo mulheres pela biologia’?
MacKinnon diz que:
...um grupo de filósofos que defendem o feminismo deslizam desleixadamente de 'sexo feminino' para 'gênero feminino' direto para 'mulheres' como se nenhum movimento tivesse sido feito, eventualmente voltando ao dicionário: uma mulher é um 'humano adulto fêmea'. Definir mulheres pela biologia — adulto é idade biológica, humano é espécie biológica, mulher é sexo biológico — costumava ser criticado como essencialismo biológico.
MacKinnon falha em reconhecer diferentes níveis de definição. Você pode definir "mulher" politicamente, culturalmente, poeticamente, filosoficamente ou historicamente. Podemos fazer isso precisamente porque sabemos que o objeto indicado aqui é uma fêmea humana adulta, nem uma criança nem um macho humano. Fazer isso não reduz as mulheres a seres biológicos nem um pouco.
Inúmeros filósofos, antigos e modernos, ocidentais e orientais, teorizaram "o que é um ser humano" (um "caniço pensante", "ser livre", "realização da razão", "macacos trabalhadores"), mas sempre que oferecidas essas definições, eles assumiram que seu objeto é um Homo sapiens, e não um bonobo ou chimpanzé.
A própria MacKinnon, de fato, usa "mulheres" e "fêmeas" muitas vezes em seus sentidos biológicos em seu discurso (ainda mais do que em escritos anteriores), exceto quando ela discute conscientemente a definição de mulher. Esse uso inconsciente mostra que ela realmente não acredita na ideologia trans. Crenças que são diretamente contrárias aos fatos e à realidade não podem ser sustentadas na linguagem que usamos inconscientemente.
Por falar nisso, MacKinnon e a maioria dos outros defensores trans definem "mulheres trans" em termos biológicos. Elas estão convencidas de que apenas aqueles que são biologicamente masculinos podem ser “mulheres trans”. MacKinnon afirma que ser biologicamente mulher não é uma condição necessária para ser mulher para incluir "mulheres trans" na categoria de mulheres. Mas isso é o máximo que se pode argumentar sem contradição, mesmo formalmente. Quanto às "mulheres trans", ela torna uma condição necessária que sejam biologicamente homens.
‘Fêmea humana adulta’
Nesta citação, MacKinnon zomba da alegação de que as mulheres são “fêmeas humanas adultas” como meramente “voltando ao dicionário”. Em outro momento, ela diz: “não tiramos nossa política do dicionário”.
De fato, geralmente não podemos tirar nossa política do dicionário, mas uma definição no dicionário é política o suficiente para funcionar contra aqueles que negam até mesmo definições de dicionário. A definição do dicionário da Terra como um planeta do sistema solar era política o suficiente em um mundo onde o geocentrismo ou a teoria Ptolomaica reinava como a doutrina dominante, e onde dizer heliocentrismo ou a teoria copernicana era um ato altamente político que podia resultar em pena de morte. Hoje, defender a definição do dicionário de uma mulher como uma “fêmea humana adulta” também é um ato altamente político quando resulta, se não na pena de morte, na perda de emprego, relacionamentos, reputação social, oportunidades de publicação e perda de segurança pessoal.
MacKinnon uma vez entendeu isso: que uma definição no dicionário pode ser política. Um de seus livros é intitulado Are Women Human? Esta é uma questão colocada ao nível do dicionário, mas que tem um significado político suficiente numa sociedade onde as mulheres não são tratadas como seres humanos. A alegação de que “as mulheres são humanas” é biologicamente essencialista? Se não, por que de repente se torna biologicamente essencialista quando as palavras “adulto” e “fêmea” são adicionadas?
‘Redução feminista das mulheres a partes do corpo femininas’?
MacKinnon diz ainda sobre as feministas críticas de gênero:
Aquelas que se inclinam para a direita estão entusiasmadas com essa redução supostamente feminista das mulheres a partes do corpo femininas, preferencialmente cromossomos e aparelhos reprodutivos, qualidades escolhidas de modo que tudo o que é considerado definitivo do sexo não é apenas físico, mas não pode ser fisicamente transformado em.
Não são as feministas críticas de gênero que estão reduzindo as mulheres a partes de seus corpos, nem a direita está “emocionada com essa suposta redução”. São os ativistas trans e a esquerda que fazem essas coisas. As “mulheres trans” reduzem as mulheres a seus cabelos compridos, unhas vermelhas bem cuidadas, seios fartos, nádegas arredondadas e vaginas, e então pseudo-reproduzem essas partes em seus próprios corpos, chamando a si mesmas de mulheres.
Para essas pessoas, “mulher” é uma colcha de retalhos dessas partes do corpo, enquanto, para as feministas críticas de gênero, uma mulher é uma existência total que inclui todas as diferenças e características, biológicas e políticas.
“Mulheres trans” são obcecadas por partes do corpo feminino não porque suas mentes são femininas, mas simplesmente porque, a partir do olhar rude dos homens, essas partes visíveis do corpo parecem representar feminilidade e o caráter feminino.
E são os defensores trans e os esquerdistas que, por meio da promoção da indústria do sexo e da legalização da barriga de aluguel comercial, ficam emocionados ao reduzir as mulheres a partes do corpo e órgãos reprodutivos e que, em sua preocupação com as “mulheres trans”, também ficam emocionados ao se referir às mulheres como “pessoas com útero”, “pessoas com vaginas”, “menstruadoras", “doadoras de útero”. Com sua engenhosidade intelectual, eles estão criando uma série de novos conceitos para substituir as mulheres. No entanto, MacKinnon culpa as feministas críticas de gênero por esta redução!
‘As mulheres não são oprimidas por nossos corpos’?
Além disso, MacKinnon diz que:
As mulheres não são, de fato, subordinadas ou oprimidas por nossos corpos. Não precisamos ser liberados de nossos cromossomos ou ovários.
O que exatamente MacKinnon quer dizer com “nossos corpos”? Dado que ela diz “nossos ovários”, só podemos interpretar “nossos corpos” como referindo-se aos “corpos de mulheres biológicas”, mas, se assim for, de acordo com a definição de MacKinnon, isso seria essencialismo biológico.
A pergunta apropriada é qual é o significado concreto de “por nossos corpos”. Nenhuma feminista críticas de gênero diz que as mulheres são naturalmente subordinadas ou oprimidas por seus corpos. No entanto, é claramente um absurdo dizer que os corpos das mulheres são totalmente irrelevantes para sua opressão.
Se a opressão das mulheres não tem nada a ver com sua fisicalidade biológica, por que a opressão e a exploração das mulheres, como estupro, prostituição, pornografia e barriga de aluguel, estão relacionadas aos corpos biológicos das mulheres e suas funções físicas?
Se uma vagina estiver biologicamente ausente em uma mulher e um pênis ausente em um homem, o estupro vaginal é impossível e, se uma mulher não tiver função reprodutiva, ela não poderá ser explorada por meio de barriga de aluguel comercial. Para que os homens sejam excitados pela pornografia que retrata mulheres nuas de forma subalterna, a nudez feminina deve ter características biológicas diferentes da masculina.
A questão é se a subordinação e a exploração das mulheres são vistas como ocorrendo naturalmente por causa de suas características físicas, ou se a subordinação e a exploração são vistas como historicamente e, portanto, ocorrendo politicamente com base nessas características físicas. A última posição não é um argumento biologicamente essencialista, mas altamente político.
O fato de que os corpos distintos das mulheres são uma condição necessária de sua opressão não leva à conclusão de que a libertação de seus corpos é a libertação das mulheres. O corpo de uma mulher, incluindo sua vagina, é necessário para que os homens a estuprem, mas o movimento para eliminar os estupros nunca foi um movimento para eliminar as vaginas.
A barriga de aluguel comercial requer as capacidades reprodutivas das mulheres, mas isso não significa que o movimento para eliminar a barriga de aluguel tenha sido um movimento para eliminar a fertilidade das mulheres.
As feministas críticas de gênero têm orgulho de seus próprios corpos femininos. Apesar de sua restrição e relativa desvantagem neste mundo, elas não querem eliminá-los nem um pouco. Essa fisicalidade das mulheres é até uma fonte de sua força e orgulho, assim como a negritude é uma fonte de força espiritual e orgulho para os negros. As feministas críticas de gênero estão com raiva dessa sociedade dominada por homens que as trata como socialmente inferiores e desiguais por causa de suas peculiaridades físicas. Então, elas estão tentando mudar isso.
Em vez de criticar a sociedade dominada pelos homens que discrimina as mulheres com base em suas características físicas, MacKinnon separa os dois, como se seus corpos nada tivessem a ver com sua opressão e discriminação. Isso sugere que MacKinnon subconscientemente acredita que reconhecer os corpos femininos como fisicamente desfavorecidos em relação aos masculinos significa que não podemos resistir e finalmente eliminar a opressão e a subordinação das mulheres.
2. A proposição dela de que 'mulheres trans são, politicamente, mulheres' é válida?
O segundo dos dois pilares do discurso de MacKinnon, “mulheres trans são, politicamente, mulheres”, é baseado em duas coisas: primeiro, que “mulheres trans estão vivendo vidas de mulheres” e, segundo, que “mulheres trans se identificam com mulheres”. Ela diz que:
…não apenas as mulheres trans vivem vidas de mulheres - geralmente o pior dessa vida - mas as mulheres trans que conheço, de qualquer maneira, abraçam a feminilidade conscientemente, são muito mais identificadas como mulheres do que uma vasta faixa das mulheres designadas mulher de nascença (…) que eu também conheço…
‘Mulheres trans estão vivendo vidas de mulheres’?
O que exatamente são “vidas de mulheres” aqui? Assumindo que não é apenas uma tautologia, as “mulheres” aqui significam obviamente mulheres biológicas excluindo “mulheres trans” (homens biológicos). Se assim for, a alegação de MacKinnon parece ser que alguns homens estão vivendo “vidas de mulheres”.
Na verdade, “mulheres trans” não estão vivendo vidas de mulheres, mas vivendo apenas “vidas de mulheres” imaginárias como essas pessoas as percebem. O que diabos torna a vida dos homens a vida das mulheres? Viver com cabelo comprido, maquiagem, seios maiores, sutiãs e saias resolve? Se assim for, então MacKinnon está reduzindo as mulheres a tais peças e roupas. Abstrair a “vida das mulheres” da vida das mulheres reais e transformá-las em meras fantasias ou instruções que os homens podem seguir significa insultar e objetificar a vida das mulheres reais.
Talvez isso signifique ser abusado sexualmente e objetificado como as mulheres? Mas mesmo nesse caso, para quem não nasceu mulher, os significados desses abusos não são e não podem ser os mesmos para quem já nasceu mulher. Mesmo que [“mulheres trans”] sejam estuprados por homens, os significados e consequências são muito diferentes daqueles enfrentados pelas mulheres. Além da possibilidade de gravidez, eles nunca experimentam penetração vaginal. Andrea Dworkin disse certa vez: "Existiam as grandes e amplas leis... Fode-se a mulher na vagina, não na bunda, porque só ela pode ser fodida na vagina". (Dworkin, Intercourse, 2007, p. 197).
Outras experiências de abuso sexual não são iguais às das mulheres, mesmo que essas experiências tenham aspectos semelhantes às das mulheres. A objetificação e abusos sexuais de homens gays e heterossexuais por homens não os tornam pessoas que vivem “vidas de mulheres”, nem os torna mulheres.
Homens e mulheres não vivem e não podem viver as mesmas vidas. Não só biologicamente, mas também politicamente. Isso é o que se entende por hierarquia de gênero.
‘Mulheres trans são identificadas como mulheres’?
Em seguida, nos voltamos para a afirmação de que as “mulheres trans” que MacKinnon conhece são 'mais identificadas como mulheres' do que 'uma vasta faixa das mulheres' que ela também conhece.
Primeiro, não importa quantas “mulheres trans” ela conheça pessoalmente, elas provavelmente serão cerca de 0,0001% de todas as “mulheres trans”. É um salto lógico notável dizer, a partir de um número tão pequeno de casos individuais, que “as mulheres trans são mais identificadas como mulheres do que uma vasta faixa de mulheres”.
Além disso, o que MacKinnon realmente conhece são apenas imagens superficiais de “mulheres trans”. Ao se encontrar com uma feminista radical de alto nível, até mesmo os perpetradores de DV e estupradores provavelmente se comportariam de maneira feminista. MacKinnon acha que entende “mulheres trans” vendo as aparências muito superficiais que “mulheres trans” apresentam a ela e lendo os escritos de “mulheres trans”.
Como exemplo, veja o caso de Jan Morris, a quem MacKinnon se refere em seu ensaio como uma “teórica trans”. Ela cita seu livro de memórias, Conundrum, como referência. Nele, Jan Morris escreve como se sua esposa e filhos entendessem e aceitassem naturalmente sua “mudança de sexo”. Na realidade, porém, foi exatamente o oposto. Sua filha Suki Morys publicou um obituário quando seu pai morreu (The Sunday Times, 10 de dezembro de 2022) e escreveu que ela não entendia a mudança de sexo dele e se tornava cada vez mais incapaz de entender à medida que envelhecia. Quanto ao seu enigma, ela escreveu:
À medida que envelheci, ainda mais confusão tomou conta. Li Conundrum, o livro de memórias de Jan, publicado em 1974 e serializado no The Sunday Times, e a história não se encaixava muito bem em mim. Agora que li mais livros de Jan, cheguei à conclusão de que, além da representação do lugar, todos os relatos dela [dele] são praticamente fantasia.
Em Conundrum, Jan escreve sobre a morte de minha irmã mais velha, Virginia, que morreu quando criança. Ela [Ele] escreve que, quando Virginia estava no hospital, minha mãe e Jan estavam deitadas na cama de mãos dadas, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Ela [Ele] escreve sobre uma “grande lua”, enquanto um rouxinol canta, como uma voz “do empíreo”. Ela [Ele] afirma que eles ouviram até adormecerem. “De manhã”, ela [ele] escreve, “a criança tinha ido embora”.
A realidade, como minha mãe me disse, era que minha irmã estava morrendo no hospital Al e Jan se recusaram a ir com minha mãe visitá-la. Naquela época, as mães não podiam passar a noite com os filhos. Não consigo imaginar a dor pela qual minha mãe estava passando, mas duvido muito que ela tenha dormido naquela noite, e as palavras de Jan, então e para sempre, falharam completamente em mostrar qualquer compreensão de sua dor.
Além disso, Suki Morys escreve sobre seu pai: “Nunca senti nenhuma feminilidade nela [nele]”. Ele era apenas um homem vestido de mulher para sua filha. As opiniões de Jan sobre as mulheres eram extremamente conservadoras e sexistas, acreditando que as mulheres deveriam se casar, ter filhos e manter um lar, e ele tentou impor isso à filha. No entanto, mesmo depois de se identificar como mulher, ele deixou todos os trabalhos domésticos e cuidados com os filhos para sua esposa e nunca cozinhou ou mesmo limpou sua casa. Nunca tratou os filhos com carinho e, pelo contrário, era frio com eles, principalmente com a filha, a quem humilhava em todas as oportunidades, e isso continuou até a morte.
O comportamento de Morris é tipicamente o de um homem machista. Ele deixou toda a bagunça para sua esposa, pegando carona nela, enquanto ele fazia seu trabalho como jornalista e historiador e alcançava uma reputação respeitável. Ele apenas o fez disfarçado de mulher (com vestidos, maquiagem, cabelos compridos). Suki até questiona se Jan realmente queria ser mulher. Tornar-se uma “mulher” era apenas um meio de auto-realização para ele. Ela também disse: "Jan certamente não fez absolutamente nada pelas mulheres". Isso pode realmente ser descrito como identificação com as mulheres?
Identificação através da misoginia e pornografia
“Mulheres trans”, especialmente aquelas que podem ser classificadas como autoginefilicos (e provavelmente constituem a maioria das “mulheres trans”), não se identificam com mulheres, mas com cabelos longos, maquiagem, lábios vermelhos, vestidos, saias, roupas íntimas femininas, os seios das mulheres e a pele lisa, e também se identificam com o que percebem como comportamento feminino. Em outras palavras, eles só se identificam com o exterior feminino, com os adornos femininos e com os estereótipos femininos.
As “mulheres”, como imaginadas e compreendidas por “mulheres trans”, assumem – para usar a expressão usada por MacKinnon em seu discurso – os “significados misóginos que as sociedades dominantes masculinas criam, projetam sobre nós, nos atribuem”. O fato de seu grau de identificação com esses significados misóginos ser maior do que o da mulher média não os aproxima das mulheres. No entanto, por alguma razão, quando MacKinnon começa a falar sobre “mulheres trans”, ela as discute como se fossem excepcionalmente capazes de transcender esses significados misóginos, ver e conhecer diretamente as mulheres e imediatamente acessar e se identificar com as mulheres. A hierarquia de gênero que deveria dominar com tanta força a maneira como as pessoas veem as mulheres desapareceu em algum lugar.
Um dos mediadores mais fortes desse processo de identificação é a indústria do sexo, incluindo a pornografia e a prostituição. Esse entendimento está de acordo com a teoria da pornografia de MacKinnon até agora. A singularidade de sua teoria era que os homens veem, conhecem e compreendem as mulheres acima de tudo por meio da pornografia, portanto, a imagem que os homens têm das mulheres é construída por ela. Isso se aplica à identificação de mulheres trans com mulheres. Eles têm um desejo de autofeminização assistindo pornografia, particularmente, pornografia sissy, mangá e anime pornográficos japoneses (hentai) e por meio de experiências de compra de sexo. E no processo de autofeminização, elas aprendem a “feminilidade” sobretudo da pornografia e dos comportamentos das mulheres na indústria do sexo.
No filme A Garota Dinamarquesa (2015) sobre Lily Hervé, famosa por ser o primeiro homem no mundo a passar por uma operação de “mudança de sexo”, o protagonista masculino tem o desejo de se tornar mulher usando meias brancas. Ele aprendeu comportamentos femininos de mulheres que se apresentavam sexualmente em uma casa pornográfica ao vivo. Ele tinha uma esposa, mas não os aprendeu com sua esposa, mas com mulheres da indústria do sexo. Os comportamentos femininos das mulheres na indústria do sexo são, obviamente, originalmente criados e exagerados pelas fantasias masculinas. De fato, Lily aprendeu a “feminilidade” com mulheres que representavam as fantasias dos homens e depois as representava para mostrar aos outros que ele era uma “mulher”. Assim, tudo gira dentro do mundo criado pela pornografia e pela indústria do sexo, e a própria MacKinnon é agora uma habitante desse mundo pornificado.
‘Mulheres trans são, politicamente, mulheres’?
Com base nesses argumentos, MacKinnon chega à conclusão de que “mulheres trans são, politicamente, mulheres”. No entanto, se por um mero ato de identificação uma pessoa pertencente à classe sexual dominante puder passar para a classe sexual subordinada, então a hierarquia de gênero seria impotente ou inexistente. Isso contradiz completamente sua própria teoria.
O que significa a palavra “politicamente” aqui? É mera retórica e não reflete nenhuma conexão lógica ou raciocínio racional. Se é possível categorizar “politicamente” “mulheres trans” como mulheres, também é possível categorizar MacKinnon como uma “mulher trans” ou um “homem”, politicamente. Isso porque, por meio de seu ensaio, ela mostra desprezo por mulheres que não aceitam “mulheres trans” como mulheres, não se solidariza com as muitas mulheres que estão com medo, perdendo medalhas ou sendo abusadas sexualmente por “mulheres trans” e ativistas trans, e não simpatiza com garotas irreversivelmente prejudicadas por sua transição. E ela acolhe e abraça ativamente “mulheres trans”, ou seja, homens biológicos, e se identifica muita mais como mulher trans que “uma vasta faixa de mulheres designadas como mulheres no nascimento”. Portanto, podemos dizer que MacKinnon é, politicamente, uma “mulher trans”, ou talvez apenas um homem?
Se as “mulheres trans” são, apenas politicamente, mulheres, então nos banheiros, vestiários, esportes, abrigos e prisões que não são demarcados de acordo com ideias políticas, as “mulheres trans” devem usar as instalações atribuídas aos homens. Assim como não existem banheiros de direita ou de esquerda, e assim como os abrigos não selecionam as vítimas com base em suas opiniões políticas, as “mulheres políticas” não têm o direito de usar instalações destinadas a mulheres biológicas ou de participar de esportes femininos . Elas só podem participar como “mulheres políticas” em comícios feministas liberais ou eventos LGBT.
3. Por que MacKinnon capitulou ao transgenerismo?
MacKinnon jogou fora suas posições feministas fundamentais para incluir “mulheres trans” na categoria de mulheres e na esfera feminina. Mas, por que Catharine MacKinnon, que era considerada uma figura importante do feminismo radical, capitulou tão miseravelmente ao transgenerismo? Há várias razões para isso.
Biofobia
A primeira razão é sua antiga biofobia. Embora ela tenha abandonado quase todas as suas posições anteriores, existem algumas que continuam com seu passado. A principal delas é sua posição anti-biológica perene. Essa biofobia resultou em sua falha em compreender o cerne do poder masculino que abusa e explora as funções e estruturas biológicas dos corpos femininos e em entender sua nova forma: o transgenerismo.
Nesse aspecto, ela difere claramente de Andrea Dworkin, que falou com vivacidade e intensidade sobre a realidade material dos corpos femininos e sua colonização pelo poder masculino. Como estudiosa do direito, MacKinnon, mesmo quando falava sobre a opressão e a exploração das mulheres, não falava vividamente sobre a concretude dos corpos femininos, mas permanecia um tanto abstrata.
Misoginia internalizada
O outro é o ódio à mulher, que ela parece ter internalizado de forma profunda. O mais proeminente em toda a amplitude de seu discurso é seu desrespeito pela maioria das mulheres comuns e desdém pelas feministas críticas de gênero que defendem seus direitos e dignidade. Quando ela menciona 'mulheres trans' e teóricas trans, é sempre de forma acompanhada de elogios como 'de maneiras novas e perspicazes', 'literatura brilhante', 'lança uma nova luz sobre a política feminista', 'coragem real', 'contribuição evocativa e perspicaz', 'com todo o respeito', ao passo que, ao se referir às feministas críticas de gênero, ela usa repetidamente expressões depreciativas como 'feministas autoidentificadas', 'feminismo pretendido', 'feminismo de partes do corpo feminino', 'transfóbicas feministas', 'anti -feministas trans', 'ignorância flagrante' e assim por diante.
O ódio às feministas críticas de gênero é particularmente evidente nas duas declarações a seguir. Uma delas é o parágrafo seguinte, que tenta explicar por que existem “transfóbicas feministas”:
É evidente que muitas transfóbicas feministas ficaram traumatizadas pelos papéis e estereótipos de gênero das mulheres, nos quais não se encaixavam fisicamente, psicologicamente ou em suas ambições de vida. Elas tiveram dificuldade em serem aceitas e valorizadas como mulheres e parecem se ressentir da facilidade com que algumas mulheres trans são aceitas como mulheres.
Esta é uma afirmação verdadeiramente surpreendente e ressoa com algumas das ideias que vêm do movimento incel. MacKinnon está dizendo que as feministas críticas de gênero têm inveja das “mulheres trans”. Essa maneira de ridicularizar a crítica feminista, reduzindo-a ao ciúme feminino, é típica de misóginos e incels. Quando as feministas criticam a pornografia, dizem a elas que as feministas feias têm inveja das estrelas pornô que são bonitas, sexuais e mimadas pelos homens. No caso das sufragistas que lutaram pelo direito de voto das mulheres, elas também eram consideradas solteironas frustradas que não eram amadas pelos homens. Como essa afirmação misógina clássica poderia ser repetida por MacKinnon, entre todas as pessoas?
Outro exemplo marcante de sua misoginia é a seguinte passagem em que ela fala sobre as chamadas “TERFs”. Ela diz:
Também não uso o termo TERF, não porque aquelas que são rotuladas com ele não sejam transexclusivas; elas são. Mas porque não vejo nada de radical em seu feminismo e estou perplexa com sua relutância em reconhecer o transfeminismo como a contribuição que é e com sua disposição de se envolver na transmisoginia que elas fazem.
MacKinnon rejeita o termo “TERF” não porque trans ativistas o usam para abusar e atacar feministas críticas de gênero e outras mulheres, como “matar TERFs”, “socar TERFs” ou “foder TERFs” (esses fatos nem são mencionados por ela), mas porque as feministas não são radicais! É assim, quando um homem violento está batendo na esposa e gritando “você é uma vadia”, uma feminista dizendo, sem condená-lo por espancá-la, “eu não uso o termo 'vadia', porque não vejo nada de sexual nela!”.
Então, MacKinnon ainda é uma feminista radical? Infelizmente não. Mas não porque ela não seja radical. Ela é, em certo sentido. Na medida em que ela adiciona alguns homens à categoria de mulheres, até defende a colocação de homens estupradores em prisões femininas e até promove a transição sexual para crianças, ela é tão radical. Mas porque não há nada de feminista em seu transgenerismo.
'Ver-se como parte de qualquer grupo com homens'
Uma dica sobre o que a levou a tal transição política é expressa pela própria MacKinnon. Ela diz que “ver-se como parte de qualquer grupo com homens tem mais dignidade” como uma razão pela qual muitas mulheres não se identificam com as mulheres. Na verdade, é isso que explica o motivo pelo qual ela inclui “mulheres trans” na categoria feminina. Ela expressou essa ideia em um artigo de 1991:
Também sinto, porém, que muitas mulheres… não querem ser "apenas mulheres", não apenas porque algo importante é deixado de fora, mas também porque isso significa estar em uma categoria com 'ela', a mulher branca inútil cuja primeira reação quando as coisas ficam difíceis é chorar. Sinto aqui que as pessoas sentem mais dignidade em fazer parte de qualquer grupo que inclua homens do que em fazer parte de um grupo que inclua aquela redução final da noção de opressão, aquele instigador de linchamentos, aquele chorão ridículo, aquele cavaleiro da igualdade, a mulher branca. Parece que se a opressão que é feita a você também é feita a um homem, é mais provável que você seja reconhecido como oprimido em vez de inferior. Uma vez que um grupo é visto como supostamente humano, um processo auxiliado pela inclusão de homens nele, um homem oprimido cai de um padrão humano. Uma mulher é apenas uma mulher - a vítima ontológica - portanto, não é vitimizada de forma alguma. (Catharine A. MacKinnon, From Practice to Theory, Or What Is a White Woman Anyway?, Women's Lives, Men's Laws, 2005, p. 30).
Ela disse isso quando era uma excelente feminista radical. Quando ela disse isso, ela estava, é claro, assumindo implicitamente que a categoria de mulher não incluía homens biológicos. Mas agora ela inclui os homens na própria categoria das mulheres, e MacKinnon se vê como parte de um “grupo que inclui homens” e sente que isso a torna “mais digna”.
Em algum lugar de sua mente, ela despreza “apenas mulheres”, em particular “mulheres brancas inúteis cuja primeira reação quando as coisas ficam difíceis é chorar”, e as considera inferiores aos homens. Por isso, quando alguns homens se identificavam como mulheres, ela ficava feliz em aceitá-los e acolhê-los. Em seu discurso, MacKinnon se refere a "mulheres trans" "deixando a masculinidade para trás, atraídas e abraçando a feminilidade por si mesmas". Mas, na verdade, ela os acolheu não porque eles “deixaram a masculinidade para trás” e “abraçaram a feminilidade para si mesmos”, mas, ao contrário, porque eles mantiveram sua masculinidade com firmeza, e ela pensou que incluí-los na categoria de mulheres significava que sua masculinidade seria trazida para as mulheres também. Portanto, por mais paradoxal que pareça, MacKinnon considerava as “mulheres trans” como mulheres não porque fossem mulheres, mas precisamente porque eram homens.
Do feminismo ao transgenerismo
Os pontos acima mencionados ficam mais claros à luz da teoria da pornografia de MacKinnon, mais uma vez. Como já mencionado, muitas "mulheres trans", particularmente autoginéfilas, conhecem "mulheres", aprendem "mulheres" e se identificam com "mulheres" por meio da pornografia. Segundo ela, a pornografia é uma teoria e prática de sexismo e misoginia. Portanto, "mulheres trans" aprendem e cada vez mais encarnam o ódio pelas mulheres no processo de sua identificação com "mulheres" e sua autofeminização.
E eles sabem que não importa o quanto imitem as mulheres, não importa o quanto recriem sua aparência em seus próprios corpos por meio de hormônios e cirurgias, eles nunca poderão se tornar mulheres (ou seja, fêmeas humanas adultas). Tudo isso alimenta seu ódio por mulheres reais. Esta é precisamente a chave que desvenda o mistério de por que "mulheres trans" e defensores trans odeiam e atacam violentamente as feministas críticas de gênero que se identificam com "fêmeas humanas adultas".
Visto dessa perspectiva, fica mais claro o verdadeiro motivo da aversão de MacKinnon ao biológico. Sua biofobia não é, é claro, porque ela odeia a biologia em si, mas porque detesta os corpos biológicos das mulheres, abomina sua “desvantagem” biológica e despreza sua vulnerabilidade. Sua biofobia é uma manifestação de sua misoginia internalizada. Aqui, o biológico assume um significado altamente político. Aqui reside a dialética entre biologia e política.
Andrea Dworkin disse uma vez em Right Wing Women que "o feminismo é odiado porque as mulheres são odiadas". Isso se aplica a MacKinnon. Ela odeia as feministas críticas de gênero porque odeia mulheres humanas adultas.
Claro, nesta sociedade machista, todos internalizam a misoginia em maior ou menor grau. A menos que resistamos conscientemente, podemos ser facilmente dominadas por ela. A ideologia trans tem o poder único de desmantelar essa resistência até mesmo entre as feministas mais sólidas. Essa ideologia é baseada em:
1. a norma de gênero fortemente internalizada para as mulheres de que elas devem simpatizar com a situação dos homens pobres e vulneráveis e protegê-los;
2. a norma esquerdista de que os direitos das minorias devem ser defendidos incondicionalmente; e
3. a norma feminista de que devemos nos solidarizar com mulheres mais vulneráveis, como “mulheres trans”.
Estes estão interligados para desarmar habilmente a resistência feminista à nova misoginia.
E, à medida que a posição de MacKinnon na academia e no mundo dominante gradualmente aumentou, de uma extremista marginalizada a uma figura proeminente aceita pela ONU e agências estatais, seu ódio profundamente internalizado pelas mulheres, ou seja, fêmeas humanas adultas, finalmente dominou e derrotou seu feminismo. Assim, ela se tornou uma devota do transgenerismo.
Oi Marina! Eu só não entendi a sua crítica (e das ecofeministas) ao feminismo radical. Fiquei confusa