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minha fala na Câmara dos Deputados

uma perspectiva feminista histórica sobre espaços íntimos separados por sexo

Fui convidada para falar em uma Audiência Pública que aconteceu na Câmara dos Deputados em Brasília (26/11), promovida pela Comissão de Educação, sobre banheiros e espaços íntimos, como vestiários, separados por sexo.

Supostamente, audiências públicas na Câmara servem como um espaço de debate para temas de interesse público e idealmente devem ser compostas por parlamentares de diferentes partidos, mas, sobretudo, aquelas e aqueles diretamente envolvidos na temática sendo debatida. Isso é de extrema importância porque audiências públicas contam com vozes da sociedade civil que precisam ser ouvidas.

É claro que não é isso o que acontece. A Câmara também é uma câmara de ecos. Para as feministas, tem sido praticamente impossível se inserir no debate público sobre os avanços das políticas de identidade de gênero - até mesmo para mulheres como Reem Alsalem, relatora especial da ONU, isso tem sido um verdadeiro transtorno.

Os direitos históricos conquistados pelas mulheres se tornaram instrumento nas mãos de políticos da esquerda e da direita, pouco preocupados com as mulheres e meninas, mas muito preocupados em articular e defender seus próprios interesses pessoais e políticos. Quem não está diretamente envolvido prefere o conforto da ausência, a exemplo das parlamentares de partidos como Rede e PV. A mídia - hegemônica e progressista -, por sua vez, sedimenta o silenciamento das feministas.

Quando recebi o convite para falar ao vivo a nível federal, deixando as vozes de centenas de feministas que estão no mesmo barco que eu registradas na história, eu não pensei duas vezes. Para buscarmos sermos ouvidas, nós estamos nos espremendo pelas brechas, pois políticos e militantes de todo o espectro político têm nos virado as contas, batido a porta nas nossas caras e nos difamado publicamente. Isso tem custado e vai custar muito para a esquerda, que historicamente sempre instrumentalizou as mulheres e as feministas, mas não vislumbrou que, politicamente falando, nós passaríamos a deixá-los sós em suas tentativas patéticas de vencer eleições sem amplo apoio das mulheres.

É um pouco assustador perceber que muitas mulheres realmente não entendem o isolamento político que as feministas estão vivendo. Eu sei que isso é o reflexo da falta de experiência de articulação política para avançar temas que normalmente não são particularmente caros nem para a direita nem para a esquerda. Mas, frente a tantas evidências em relação à agenda de identidade de gênero, fica difícil ser condescendente com as que seguem vivendo uma utopia progressista feminista que nunca, de fato, existiu. Não existe diálogo, existem dois pólos gritando um para o outro, e existem as feministas tentando não serem massacradas.

Eu gostaria de lembrar também que o medo sustenta parte importante do silêncio de outras mulheres no mesmo lugar político-ideológico que eu; medo de serem chamadas de “de direita” pela esquerda, medo de perderem a simpatia das pessoas, medo de não serem gentis o suficiente, medo de defenderem os próprios interesses, medo das consequências inevitáveis de serem mulheres e sofreram as retaliações impostas a todas que ousam defender, de fato e primeiro, as mulheres e meninas.

No entanto, o que as pessoas pensam ou falam sobre nós não define quem nós somos e o medo, minhas camaradas, é a prisão mais poderosa, barata e eficiente contra as demandas feministas - à esquerda e à direita.

Abaixo, segue a minha fala preparada para a audiência.


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Senhoras, senhores. Bom dia. 

Agradeço a oportunidade de contribuir para a presente discussão e ter sido convidada para expor a perspectiva feminista sobre a temática debatida aqui hoje. 

Sou mestre e pesquisadora em Ciências Sociais e, à frente do Instituto Modefica, uma organização ecofeminista, atuei 10 anos na área de jornalismo e pesquisa, me dedicando sobretudo à intersecção entre questões de gênero e questões climáticas e ambientais.

Nos últimos dois anos, passei a contribuir também com organizações feministas e de mulheres dedicadas à luta pela manutenção e ampliação dos direitos das mulheres e meninas baseados no sexo. 

A própria necessidade de existir uma audiência pública como esta reflete a realidade na qual vivemos: os direitos das mulheres nunca estão permanentemente garantidos e conquistas históricas podem ser desmanteladas em um piscar de olhos. 

Banheiros separados por sexo não existem por acaso. Eles são um direito conquistado e cumprem uma função central na promoção da equidade de gênero, sobretudo no que diz respeito à inclusão das mulheres no espaço público. 

Não é coincidência que a reivindicação por banheiros femininos passe a acontecer de forma mais preponderante no final do século XIX, refletindo a luta das mulheres em todo o globo por reconhecimento e acesso ao trabalho, à vida social e política. No documento apresentado para esta audiência, a MATRIA traz uma perspectiva histórica resumida que demonstra que banheiros separados por sexo são essenciais para que mulheres possam habitar o espaço público.

Em um relatório de 2011, a ONU reconheceu que o acesso a banheiros separados por sexo é um direito humano, essencial para que meninas possam frequentar escolas e permanecer nelas após a puberdade. Nas palavras da própria ONU, não se trata apenas de meninas terem sua intimidade preservada, mas sim, e eu abro aspas “de uma necessidade muito maior de privacidade e dignidade durante a menstruação”. Além da ONU, relatórios similares do Banco Mundial (2024) e da UNICEF (2023) atestam o mesmo. O que pode parecer completamente trivial aos olhos de alguns é, na verdade, um marco civilizatório indispensável para que mulheres tenham acesso à educação e possam buscar uma vida digna e autônoma. 

A importância de espaços íntimos separados por sexo também fica evidente após catástrofes ambientais e climáticas. Algo que, infelizmente, vamos vivenciar com cada vez mais frequência. A MATRIA mencionou o caso do Rio Grande do Sul. Este não foi um caso isolado. 

O padrão de aumento da violência sexual contra meninas e mulheres após eventos climáticos extremos foi analisado pela ONU e pela organização dedicada à avançar os direitos das meninas no mundo, PLAN International. Ao trabalhar com dados de diversos países, ambas as organizações atestaram a necessidade dos planos de emergência contarem com, entre outras medidas, abrigos e banheiros separados por sexo para garantir a privacidade e a segurança de mulheres e crianças. 

Banheiros separados por sexo são necessários para, objetivamente, proteger mulheres e meninas de possíveis violências sexuais, exercidas majoritariamente por pessoas do sexo masculino. Eles também garantem privacidade e dignidade para metade da população do país.

Mas eu também gostaria de trazer a experiência psíquica de mulheres que foram vítimas de abuso sexual. Para muitas destas mulheres, compartilhar espaços íntimos com pessoas do sexo masculino representa uma tormenta diretamente relacionada ao trauma. 

Esse grupo, infelizmente, não é pequeno. Se nós trabalharmos a partir da realidade trazida pela pesquisa IPEA, de 2022, que atesta que, a cada minuto, duas mulheres são estupradas no Brasil e 69,9% delas são meninas. Quando obrigamos estas mulheres a cederem às demandas de inclusão de pessoas do sexo masculino em ambientes exclusivamente femininos, estamos garantindo que elas tenham, novamente, sua intimidade violada.

É evidente que desmantelar essa conquista é dar passos para trás na inclusão de mulheres e meninas na sociedade após milênios de exclusão, sobretudo em termos de acesso à educação. E quando eu falo milênios, não estou usando hipérbole. O letramento foi vetado às mulheres em 1.500 a.C. Com raras exceções, as mulheres, enquanto categoria, não tiveram direito à educação até o século XIX. Em alguns países, elas não têm até hoje.

Em 2024 d.C, no Brasil, nós conseguimos garantir às mulheres, ao menos constitucionalmente, o direito à educação e ao uso do espaço público sem precisarmos estar acompanhadas de um homem. Mas nós não conseguimos garantir uma sociedade livre de violência e constrangimentos sexuais para mulheres e meninas.

Frente aos dados já apresentados nesta Audiência, sobretudo no que diz respeito à violência sexual, sujeitos demandaram que a legislação brasileira flexibilize as barreiras de proteção construídas ao longo de anos por e para mulheres na luta das mulheres contra a tutela forçada e a violência masculinas vai contra a realidade evidenciada por esses dados, sem dados contra factuais para comprovar suas próprias demandas. 

Normalmente, a demanda para que priorizemos identidades masculinas subjetivas vem envolta em uma narrativa de direitos humanos fundamentais. No entanto, ter desejos ou sentimentos validados não é um direito humano fundamental. O direito individual à expressar sua personalidade ou identidade não pode avançar sobre o direito à segurança, à dignidade e à privacidade de mais da metade da população que tem comprovadamente sofrido com literalmente centenas de casos de violência sexual por dia só no Brasil.

A politica baseada no sexo como marcador existe porque existem dados e estatísticas que comprovam que a violencia sexual contra mulheres é 99% das vezes exercida por parte de individuos do sexo masculino - desde parentes e familiares até completos desconhecidos. A violação sexual é um crime de oportunidade e acontece sempre quando o agressor vê uma possibilidade, uma brecha. E essas estatísticas estão piorando. 

Se existe um grupo minoritário de pessoas, - com poder político, financiamento e atuação focada em lobby -, que está sugerindo alteração nas políticas baseadas no sexo, é necessário que este traga dados e estatísticas reais que comprovem esta necessidade de alteração e, sobretudo, que esta nova política não crie nenhuma brecha que possa, inadvertidamente, isto é, como efeito colateral, colocar em risco a segurança de mulheres e meninas. 

Até agora, as informações apresentadas nos debates públicos sobre este tema pelo grupo que quer alterações nos banheiros separados por sexo não tem estatísticas ou dados. Os dados dos relatórios anuais apresentados por organizações lobistas de identidade de gênero já foram provados como falsos e metodologicamente errados. Repeti-los ad nauseam não os tornará verdadeiros. 

Pessoas do sexo masculino não estão particularmente vulneráveis em espaços públicos, independente de declararem alguma identidade de gênero especial. Se utilizarmos os dados das próprias organizações LGBTQIA+, vamos ver que a violência a pessoas do sexo masculino transidentificas como mulheres frequentemente acontece intragrupo, majoritariamente no ambiente de disputa por pontos de prostituição e no espaço doméstico. 

Quando pesquisamos informações sobre ocorrências de violência contra pessoas do sexo masculino transidentificadas como mulheres em banheiros masculinos, notamos que os casos são tão raros que é impressionante que esta narrativa seja sequer considerada. Infelizmente, dados inequivocamente falsos são usados para vetar o debate e gerar comoção, o que acreditamos ser contraproducente ao discutirmos acerca de políticas públicas, que devem ser pautadas na realidade.

Não nos parece,  portanto, que este pedido seja sobre segurança dos sujeitos com identidades especiais, mas sobre validação social. Enquanto entendemos, do ponto de vista individual, a necessidade de tornar a narrativa que construíram para si mais convincente, não concordamos com supri-la a qualquer custo, sobretudo quando isso poder gerar como efeito colateral mais insegurança para mulheres e meninas, mesmo que de forma acidental. 

Para encerrar minha fala, trago comigo o endosso de centenas de mulheres brasileiras, uma série delas são feministas ativamente articuladas em organizações, coletivos e partidos políticos à esquerda. Nos meus 10 anos de trabalho e militância pelas mulheres, eu sempre fui publicamente feminista e declaradamente de esquerda. Trabalhei com grupos, organizações e coletivos nacionais e internacionais nos espectros progressistas. 

O meu rechaço público às políticas de identidade de gênero me custou difamação, ostracização e perda de renda. Eu não sou a única. Um relatório de 2023 desenvolvido pelo coletivo Correnteza Feminista, que colheu cerca de 300 relatos de mulheres que sofreram toda sorte de perseguição, difamação, violência física e verbal, ameaças, extorsão e perda de renda, demonstra como a agenda da identidade de gênero tem não só colidido diretamente com os direitos historicamente conquistados pelas mulheres como também avalisado a misoginia e a violência contra as mulheres.

É vergonhoso que sejam as nossas irmãs e camaradas na esquerda as mais ávidas defensoras das políticas baseadas em identidade de gênero. É incompreensível que elas não se preocupem com a segurança de mulheres e meninas frente à realidade material objetiva traduzida nas estatísticas e não busquem escrutinizar as informações trazidas por indivíduos do sexo masculino para checar se ao menos correspondem com a realidade material. 

Pedimos, enquanto mulheres organizadas, que não deixem uma força reacionária travestida de progressista, munida da retórica individualista neoliberal, vetar os avanços que 50 anos de incansável trabalho e luta feminista nos trouxeram.

Obrigada.

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