Talvez a única forma de lidar com o absurdo seja compartilhando sobre ele - e é por isso que notícias absurdas ganham muito mais destaque do que notícias onde o absurdo já virou ordinario. Sinto dizer que não vim aqui para desafiar as tendências, mas para reforçá-las.
Logo pela manhã, antes de sentar para fazer meu ritual rotineiro de domingo, que inclui tomar café, f1 e ler algumas páginas do livro da vez, dei aquela checada rápida no celular apenas para dar de cara com uma notícia que dizia o seguinte: 'Descriminalização do sexo com animais': Marchas do Orgulho da Zoofilia exigem que o movimento LGBTQI + adicione um Z. Você leu certo e não, a notícia não é falsa.
De fato, parece uma fake news da direita para prejudicar a imagem de movimentos sociais supostamente sérios, comumente “progressistas”. Porém, a realidade é bem pior que isso. Existe, de fato, uma demanda por parte de um grupo de sujeitos para acrescentar o Z, de zoofilia, na sigla LGBT+. O debate, inclusive, está acontecendo em nível acadêmico.
Há alguns dias, eu recebi um artigo acadêmico, publicado na conceituada revista revisada por pares Hypatia cujo título é LGBTQ…Z?. Por ter sido publicado em 2020, indica que não estamos falando de um “debate” totalmente recente. O abstract diz o seguinte:
Neste ensaio, trago os discursos em torno da bestialidade/zoofilia para o domínio da teoria queer, a fim de apontar para uma nova forma de defesa dos animais, algo que pode ser chamado, resumidamente, de animais amorosos. Meu argumento é bastante simples: se todas as proibições contra a bestialidade dependem de uma noção firme do que é exatamente o sexo (e elas dependem), e se a teoria queer rompe essa base firme argumentando que a sexualidade é impossível de definir de antemão e permeia muitos tipos diferentes de relações (e de fato acontece), então ver a bestialidade no quadro da teoria queer pode nos dar outra maneira de conceituar as limitações do excepcionalismo humano. Ao focar nas conexões transformadoras entre humanos e animais, uma nova forma de defesa dos animais surge através do poder revolucionário do amor.
O argumento sobre a zoofilia segue a mesma linha teórica (se é que deveríamos permitir que isso seja sequer chamado de teoria) das pessoas que dizem que pedófilos são, na verdade, “pessoas atraídas por menores” - em inglês, MPA ou minor attracted person (sim, isso existe e você vai encontrar artigos acadêmicos dizendo que essas pessoas são negligenciadas e não são pedófilos; sim, eles querem entrar na sopa de letrinhas1; e sim, eles têm a própria bandeira). Para essa galera, basicamente a sexualidade está fora do controle do sujeito e, portanto, ele não pode ser discriminado nem sofrer nenhum tipo de sanção por se envolver em atos sexuais e libidinosos, ainda que com crianças e com animais não-humanos, ambos seres incapazes de ceder consentimento.
O movimento MPA ignora deliberadamente o acúmulo de pesquisas comprovadas por fatos empíricos e pelas estatísticas sociais acerca dos impactos da ameaça permanente de violência, abuso sexual e hiperssexualização de crianças, sobretudo meninas, a longo prazo. Psicanalistas, psicólogos e psicoterapeutas já demonstraram exaustivamente como problemas mentais com características de subordinação como depressão, bulimia e anorexia, ansiedade, entre outros se desenvolvem sobretudo em mulheres, além de mulheres serem mais afetadas por questões de baixo autoestima e menor senso de si. Demonstraram também que isso tem relação com a sociedade patriarcal na qual vivemos onde uma mulher é assassinada a cada 7 horas e 1 é estuprada a cada 10 minutos e ao menos 70% das vitimas de estupro são crianças do sexo feminino, colocando a própria possibilidade de consentimento/não consentimento nessa cultura de ameaça iminente à vida das mulheres sob perspectiva2.
Embora os movimentos pró-zoofilia e pró-pedofilia possam parecer um ponto fora da curva, a verdade é que eles são balizados em torno da mesma teoria filosófica que trata as questões sexuais como que se operantes num vácuo, ou seja, alheias ao contexto social, histórico, material e psicológico dos sujeitos, que ignora as estruturas e analisa pessoas como átomos. Dessa forma, a vontade do pedófilo é tão legítima - e inquestionável - quanto a suposta vontade metafísica da prostituta de se prostituir, da atriz pornô de gravar conteúdo explícito, das meninas de 15 anos de se hipersexualizarem no OnlyFans e das crianças de 14 anos de fazerem mastectomia e tomarem bloqueadores de puberdade para “virarem meninos”. Novamente, notem, como a questão do consentimento e a capacidade de dar ou não consentimento - a depender tanto da maturidade, como do contexto material e psicológico - é completamente ignorada.
Em outras palavras, a teoria queer e uma boa dose da teoria pós-moderna exaustivamente replicada na academia têm sido usadas majoritariamente como ferramenta teórica para legitimar a ideia de que o mundo está à disposição dos homens para ser objetificado e fodido - literal e metaforicamente falando3 - e qualquer questionamento à lei da dominação masculina é automaticamente descartado como conservador e, mais recentemente, fóbico (pedofilofóbicas?).
Isso não é particularmente surpreendente se pensarmos que os homens dominam as instituições, inclusive acadêmicas, e tendem a vetar mulheres, sobretudo se essas não fazem eco às suas ideias4. Também não deixo de considerar a conexão dessa hegemonia discursiva com a lógica individualista e neoliberal do sujeito soberano, que se acredita não só acima das estruturas sociais de sexo, raça e classe, como também não aceita nenhum tipo de limite aos seus “desejos”5.
O problema, porém, se aprofunda quando as conversas sérias são vetadas e a única teoria publicável é a que legitima antigos nichos de exploração capitalista (como a prostituição) e cria novos, como a “indústria do gênero” (o que eu prefiro chamar, particularmente, de indústria do sexo6). Inclusive, para alguém que já viu o que vi no ativismo animal, não caberia a mim duvidar que, com uma possível descriminalização da zoofilia, animais seriam mantidos para serem temporariamente cedidos a zoófilos que busquem raças e espécies específicas.
Como chegamos até aqui?
Durante a pesquisas da track anterior, eu me deparei com um projeto acadêmico de 2017 que me surpreendeu, confesso. Vou tentar resumir brevemente (embora valha a leitura na íntegra aqui). Basicamente, três pesquisadores pegaram uma bolsa de estudos dentro do campo dos estudos culturais ou de identidade para provar como essas bolsas estão sendo destinadas a pesquisas acadêmicas ruins e publicações científicas de qualidade duvidosa. Eles passaram um ano escrevendo artigos acadêmicos com nível elevado de especulação (para não dizer absurdidade) para publicações revisadas por pares (a Hypatia entre elas) entre os quais sete foram publicados antes deles precisarem se revelar depois de matéria revelando o projeto no Washignton Post.
A publicação que chamou atenção e foi publicada por um perfil no Twitter chamado Real Peer Review, uma plataforma dedicada a expor bolsas de estudos de má qualidade, divulgou um dos sete artigos publicados pelo trio intitulado: “Reações humanas à cultura do estupro e performatividade queer em parques urbanos para cães em Portland, Oregon”.
A tese era de que “os parques para cães são espaços de tolerância ao estupro e um lugar de cultura desenfreada de estupro canino e opressão sistêmica contra “o cão oprimido” através do qual as atitudes humanas para ambos os problemas podem ser medidas. Isso fornece informações sobre como treinar os homens para fora da violência sexual e do fanatismo a que são propensos”.
O objetivo, segundo os pesquisadores relatam, era ver se os periódicos aceitariam argumentos “claramente ridículos e antiéticos se fornecerem uma maneira (infalsificável) de perpetuar noções de masculinidade tóxica, heteronormatividade e viés implícito”. Ficou demonstrado que aumentar o nível do absurdo e aprofundar o viés, inclusive, traria maiores chances de publicação. Os pesquisadores também comentam que, após essa publicação, foram convidados a fazer revisão por pares de outras revistas e o artigo ganhou destaque positivo no meio acadêmico.
Embora eu discorde de alguns argumentos, sobretudo em se tratando da teoria do ponto de vista e de como, na verdade, não é tão difícil assim, em nenhum campo de estudo, utilizar qualquer referência de forma a respaldar suas afirmações e, portanto, não existe ciência sem viés - e ele é historicamente masculino -, a pesquisa de fato demonstra que temos uma problema acontecendo e ele é sério porque a academia - gostemos ou admitimos ou não - influencia sobremaneira a sociedade, chegando a espaços de tomada de decisão que impactam na vida dos sujeitos e na sociedade como um todo.
Antes de ir
Gostaria que vocês observassem como nenhuma teoria radical nunca se tornou hegemônica não só na sociedade como nos meios acadêmicos. Por muito menos metafísica, o ecofeminismo foi descredibilizado7. Defendo que qualquer teoria que reforce estruturalmente o sistema capitalista patriarcal e sua lógica de dominação das mulheres e da Natureza, ainda que aparentemente libertadora e transgressora, será amplamente adotada sobretudo pela alta casta das lideranças empresariais que dependem direta e indiretamente dessa dupla exploração. Para as mulheres e pessoas que se dizem radicais no sentido marxista do conceito, o desafio posto me parece justamente quebrar o isolamento ideológico, que faz as mulheres ecoarem constructos misóginos e anti-ecológicos por princípio, e desafiar a ciência dentro (o tanto quanto possível) e fora dos círculos acadêmicos8.
Até a próxima,
Marina Colerato
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* texto atualizado em 28 de agostos às 17h.
Sobre a crítica ao movimento LGBT+ sobre a inclusão acrítica de siglas, acompanhe a Érica Ishiga e LGB Alliance USA.
Ver GRAHAH, Dee L. R. Amar para sobreviver - Mulheres e a Síndrome de Estocolmo Social. Editora Cassandra (2021); NORWOOD, Robin. Mulheres Que Amam Demais. Editora Roco (2011); DUNKER, Christian. Uma biografia da depressão. Editora Paidós (2021) e FALQUET, Jules. Pax Neoliberalia. Editora Sobinfluência (2022).
Ver Movendo-se para um Materialismo Corporificado (2006).
Ver DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Editora Boitempo (2016).
Ver Misoginia Neoliberal (2022).