A distopia da tecnociência: uma crítica ecofeminista da razão pós-moderna
Por Ariel Salleh
Texto publicado originalmente na revista Futures 41, 2009 sob o título “The dystopia of technoscience: an ecofeminist critique of postmordern reason". Tradução por Marina Colerato. A publicação original pode ser acessada aqui.
tempo de leitura: 31 minutos
... o surrealismo ciborgue – é o espaço excessivo da tecnociência – um mundo em cuja gramática podemos estar dentro, mas onde podemos, e devemos, ao mesmo tempo incorporar e exceder suas representações e explodir sua sintaxe [1].
Nem sempre se reconhece que a história do feminismo é marcada por vários paradigmas, cada um com diferentes implicações epistemológicas e políticas. Destes, um ecofeminismo materialista corporificado desenvolve posições “radicais de base” e “socialistas” anteriores, reenquadrando-as dentro de uma problemática ecológica1. De forma contrária, o feminismo pós-moderno confere primazia à análise do discurso, atendendo à construção social dos textos e à origem dos pressupostos neles ocultos. Mas os pós-modernos muitas vezes parecem indiferentes à precária condição ecológica das sociedades do século XXI. Em grande parte, porque estão paralisados por uma espécie de angústia pelo uso cotidiano de categorias universalizantes. A questão escolástica abrangente é se termos como “natureza”, por exemplo, ou “mulher” deveriam ser usados pelas feministas. No entanto, pelo cômputo ecofeminista, essa preocupação metodológica simplesmente leva a um impasse que sabota tanto a justiça quanto a sustentabilidade como objetivos políticos. Assim, a espiral intelectual interna do feminismo pós-moderno torna-se conservadorismo político por padrão. Isso é muito evidente em antologias clássicas norte-americanas como “Feminism/Postmodernism”, de Linda Nicholson, por exemplo [3]. Há pouca indicação aqui do colapso ambiental iminente causado pelo desenvolvimento industrial indiscriminado e pelo militarismo – não se fala em desmatamento e aquecimento global ou urânio empobrecido e leucemias em crianças.
O paradigma da política ecofeminista surgiu justamente como resposta a problemas como esses, enfim, à modernização ocidental e seus descontentamentos. É uma análise existencialmente fundamentada, reconhecendo que “o primeiro ambiente da mulher é o seu corpo”. A política ecofeminista recusa a megamáquina patriarcal capitalista globalizante; nisso, faz parte de uma aliança mundial de movimentos para a mudança, honrando a diversidade cultural e praticando uma ética biorregional do vernáculo.2 Por outro lado, o foco do chamado feminismo “pós” moderno está nas diferenças e “especificidades”, guiado como é pelo apelo foucaultiano de “verdades parciais”.
Mas essa resistência às grandes narrativas significa que questões como a globalização são reduzidas a “saberes locais”; enquanto o foco em palavras e ideias afasta os intelectuais da materialidade das questões da ecologia política*. Algumas feministas pós-modernas até mesmo desconsideram o caráter prático do ecofeminismo, e que o potencial político radical das ecofeministas deriva da observação das ligações cotidianas entre a exploração da “natureza” e das “mulheres”. Infelizmente, e de fato ironicamente, como Dale Jamieson observa:
Como o pós-modernismo nega a própria possibilidade das condições que tornam possível o discurso respeitoso e racional, muitas vezes leva a um tratamento desdenhoso da diferença e das visões divergentes. Acho que isso... pode explicar parcialmente o tom zombeteiro de alguns escritos pós-modernistas... [6].
1. Um conjunto estratégico de genes
A teórica norte-americana Donna Haraway, uma das representantes mais criativas da tendência pós-moderna, não é antipática à ideia de um ecofeminismo. E seu livro mais famoso, "Simians, Cyborgs, and Women", toca na palavra de tempos em tempos [7,8]. Haraway também busca uma doutrina de objetividade utilizável, embora em consonância com seu imaculado construcionismo social, ela relute em concordar com qualquer epistemologia inscrita na experiência cotidiana de mulheres e homens. No entanto, sua rejeição dos pontos de vista feministas corporificados como “empirismo ingênuo” parece cancelar sua própria celebração de fronteiras discursivas “permeáveis” entre os materialismos da “biota”, “tecnologias” e “textos”. Significativamente, Haraway, na verdade, cita com aprovação a necessidade feminista radical de Evelyn Fox Keller de “manter algum fundamento não-discursivo em ‘sexo’ e ‘natureza’...”. Isso seria uma admissão momentânea, por parte de Haraway, de que algumas coisas podem ser imediatamente conhecidas pelos sentidos; que o discurso não pode ser tudo, como os construcionistas sociais muitas vezes implicam [9]?3
Novamente com ecofeministas, Haraway fala sobre novas e possivelmente utópicas formas de subjetividade política que resistem ao “fechamento metafísico”. Mas, em seu próprio relato, isso implica uma “morte do sujeito” pós-estruturalista – e até mesmo do “organismo”. Ela elogia a sensibilidade pós-moderna do sociobiólogo Dawkins, citando sua imagem do corpo como uma “montagem estratégica” de genes. Da mesma forma, ela endossa Heidegger, Gadamer e os teóricos de sistemas Maturana, Winograd e Flores, que contribuem com “uma doutrina de interdependência” de saberes e entidades conhecidas [11]4.
No entanto, o pensamento feminista de base baseado na consciência corporificada das mulheres, seja nas tradições anglo ou francesa, sempre rompeu as fronteiras de sujeito e objeto [12]. As ecofeministas levam essa transgressão adiante ao contestar o tradicional dualismo eurocêntrico natureza/cultura; para muitos, evitar diariamente o consumo de carne leva essa política à prática. No entanto, a “filosofia ciborgue” de Haraway evita a reidentificação ecofeminista com a natureza, preferindo, em vez disso, a “reinvenção” da natureza misturada com a máquina feita pelo homem. Como ela escreve:
Talvez, ironicamente, possamos aprender com nossas fusões com animais e máquinas como não ser Homem... [13].
Para as ecofeministas, essa concessão à tecnociência é uma contradição em termos. Já que os homens ocidentais se definiram precisamente pelo projeto tecnológico de remodelar a natureza, por que as mulheres deveriam aceitar esse tipo de arrogância como caminho para a emancipação?
O construcionismo social de Haraway é incomum, pois combina o que é fundamentalmente um método hermenêutico com armadilhas da epistemologia positivista da ciência dos anos 1950, e até mesmo do socialismo científico. Reabilitando a famosa hierarquia das ciências, ela argumenta:
Não há separação ontológica fundamental em nosso conhecimento formal de máquina e organismo, de técnico e orgânico... [14].
Mas por essa lógica ostensivamente neutralista, se as máquinas são simplesmente extensões do “corpo do homem”, próteses inocentes, então uma instalação nuclear é tão benigna quanto um formigueiro. Da mesma forma, em "Primate Visions" , ela descreve o projeto de pesquisa tipicamente masculinista ocidental nestas linhas:
... no início havia diferença, e assim começou a luta de algumas mentes para ganhar vantagem sobre outras. Este é um fragmento de narrativa estratégica, narrativa edipiana e narrativa tecnológica moderna, onde a sobrevivência - futuros possíveis - está em jogo em um mundo tecno-fetal de 'quase mentes'... Crianças, programas de computador de IA e primatas não humanos. [15].
A voz remota do texto de Haraway parece ter a intenção de transmitir tanto uma reportagem sem julgamento quanto uma ironia feminista. Seu foco, como sempre, permanece com as sincronicidades do discurso e seu status quase a priori.
Embora Haraway tenha reservas sobre um ponto de vista feminista derivado das “experiências das mulheres”, seu construcionismo social, no entanto, empresta a primeira premissa do ponto de vista – que as reivindicações de conhecimento devem ser socialmente “situadas”. Sua própria “localização histórica” é descrita como “branca, profissional, de classe média, feminina, radical, norte-americana, adulta” [16]. Mas, ao mesmo tempo, ela critica o valor que a maioria das feministas atribui à aprendizagem vivida. Consequentemente, a questão da “responsabilização” situada paira ao longo de seu texto, mas nunca é realmente resolvida. As questões críticas deveriam ser – Por que uma teoria particular é construída? Para quem? E como? – Haraway não cuida dessas coisas diretamente; embora um feminismo socialista bastante apologético, e um compromisso lésbico muito mais forte para dissipar a polaridade sexo/gênero, ocasionalmente irrompem através da pele de seu argumento.
Os teóricos de sistemas se sentem desconfortáveis com noções “humanistas” residuais como subjetividade e integridade. Mas o belo texto “sem autor” de Haraway é traído por um contra-discurso reprimido em suas notas de rodapé. Claramente, um autor-sujeito está vivo e bem, com várias bolsas de pesquisa fornecidas por fundações, círculos de leitura e amizades acadêmicas em Santa Cruz, EUA. As notas falam de um mundo infra-estrutural, ocupado em nutrir a aparente autonomia do texto. Essa dissociação psicológica entre voz autoral e texto tende a minar a credibilidade do afastamento de Haraway do modernismo e de seus imperialismos positivistas. Ela admite esse dilema metodológico esquizóide com o seguinte:
Então, acho que meu problema e 'nosso' problema é como ter simultaneamente uma explicação da contingência histórica radical para todas as reivindicações de conhecimento e sujeitos cognoscentes, uma prática crítica para reconhecer nossas próprias 'tecnologias semióticas' para fazer significados, e uma compromisso com relatos fiéis de um mundo 'real', que pode ser parcialmente compartilhado e amigável para projetos terrestres de liberdade finita, abundância material adequada, significado modesto no sofrimento e felicidade limitada [17].
2. Uma ruptura epistemológica?
A metodologia de Haraway deixa um vácuo quando se trata de unir uma política textual de inspiração estruturalista com preocupações ecofeministas sobre injustiças como perda de acesso à água potável comunitária ou estupro na guerra?5 De qualquer forma, a abordagem é adotada no livro "Women, the Environment and Sustainable Development"6. Seus autores – Rosi Braidotti, Ewa Charkiewicz, Sabine Hausler e Saskia Wieringa, tentam uma análise pós-moderna do cenário político global após a Cúpula da Terra do Rio em 1992. Este projeto da agência das Nações Unidas oferece uma oportunidade para testar a utilidade do raciocínio feminista pós-moderno na política internacional e na ética ambiental. Mas está em apuros desde o início. Para enquadrar sua avaliação das abordagens das mulheres ao desenvolvimento sustentável, elas seguem o apelo de Haraway por uma anti-relativista, específica, comunidade de sujeitos semiótico-materiais historicamente localizados, buscando conexões e articulações de uma maneira não etno/gênero-centrada [19].
Com fortes indícios da 'ruptura epistemológica' de Althusser, Braidotti et al. insistem que o discurso feminista se libertou do objetivo de inspiração humanista da “emancipação”. No entanto, elas também falam em “empoderar os futuros sujeitos (be-coming subjects) das mulheres” [20]. Além disso, como feministas, elas permanecem assediadas pela obsessão construcionista social sobre
…como identificar pontos de saída do universalismo implícito no sistema patriarcal ou “falogocêntrico” e do modo de pensar dualista ou binário que o caracteriza [21].
Em outras palavras: se o discurso é um círculo fechado, como podemos decifrar “o código” para sair dele?
A sugestão ecofeminista é sugerir que, se não há saída da “palavra falada” como “fato social”, o caminho para a política utópica pode ser encontrado deixando de lado os duplos vínculos cognitivos da lógica patriarcal capitalista e movendo-se por um momento para a modalidade do fazer e sentir?7 Um ponto de vista como o ecofeminismo, com sua epistemologia descalça como fonte de resistência crítica, baseia-se nessa dialética corporificada. No entanto, Braidotti et al., constrangidos pelos parâmetros informacionais do espaço pós-moderno, desconsideram o valor do empirismo, ou mesmo do realismo crítico – bem como o valor dos pontos de vista feministas que se baseiam implicitamente neste último. Haraway tende a considerar a teoria do ponto de vista como equivalente a uma meta-narrativa hegeliana dos velhos tempos. Mas o aspecto reflexivo, “situado” e historicamente contingente do ponto de vista o distingue claramente das reivindicações idealistas absolutas.
Para estabelecer a responsabilização de suas próprias vozes, Braidotti et al. dão biografias curtas no início de seu livro. Cada uma é uma acadêmica e ativista do Norte global, preocupadas que a “heterogeneidade” internacional da(s) condição(ões) das mulheres não seja perdida por meio de uma análise feminista redutiva e totalizante. Há, no entanto, uma homogeneidade considerável no tratamento coletivo das mulheres e no campo do desenvolvimento. Por paradoxal que pareça, uma unidade teórica de facto é necessária, a fim de argumentar o desafio construcionista social às “totalizações”. Pelo menos na superfície, o recurso de Braidotti et al. à “heteroglossia” e “balbucio de línguas” recomendados por Haraway parece mais uma versão da tolerância universalizante do liberalismo iluminista moderno do que qualquer alternativa utópica radical. No entanto, dentro dessa pluralidade pública, a análise de Braidotti et al. abriga uma modesta prioridade de “mulher”:
... as relações de gênero desempenham um papel central e paradigmático como locais de poder [23].
Essa admissão da parte das autoras traz grandes problemas, pois enxerta uma sensibilidade mulherista sobre o credo des-gênero de Haraway.
Uma aplicação escandinava do feminismo pós-moderno de Haraway é o estudo de Mette Bryld e Nina Lykke "Cosmodolphins: Feminist Cultural Studies of Technology, Animals and the Sacred" [24]. Isso também é projetado para desconstruir a narrativa dominante e seus efeitos cotidianos. Em comum com a maioria das ecofeministas, essas autoras apontam que o condicionamento psicológico masculino está fortemente implicado na crise ecológica global, assim como informa o sexismo, o classismo, o racismo e o preconceito de idade. Assim, no século 21, uma situação comum para homens brancos de classe média pensativos é: – Como aqueles que são diferentes de nós, como trabalhadores, mulheres, nativos, crianças, animais, pedras – também podem ser iguais a nós? Existe alguma maneira de nós (como sujeitos masculinos) nos relacionarmos com esses 'outros' além de controlar suas 'naturezas selvagens'? Bryld e Lykke reconhecem as ecofeministas norte-americanas Carolyn Merchant, Carol Adams e Karen Warren, entre outros antecedentes. E suas críticas à tecnociência patriarcal capitalista têm muito em comum com a declaração de Susan Griffin em "Woman and Nature", um estudo de como as mulheres são dominadas por serem “naturalizadas” [25-28]. Mas as autoras de Cosmodolphins parecem desconhecer os escritos ecofeministas anteriores, que, como os seus, usam uma radical desconstrutiva ecriture feminine.8
3. Desnaturalizando a alteridade
Ao perseguir seu projeto de “desnaturalizar a alteridade”, Bryld e Lykke se concentram na “rede de significados que circulam entre Tecnologia-Ciência-Modernidade-Branca-Masculinidade” [29]. E elas descobrem um padrão consistente de substituição metonímica acontecendo nos discursos da ciência de foguetes, estudos de golfinhos e astrologia. Elas julgam a função desse deslocamento como um alívio libidinal subconsciente para o homem moderno a partir do reconhecimento do corpo da mãe e seu papel fundamental na produção da espécie. Cada discurso – Tecnologia-Ciência-Modernidade-Brancura-Masculinidade – fornece “histórias de origem desencarnada que velam, falsificam e mentem sobre o papel ativo da matéria e dos corpos (femininos)” [30]. Desta forma, a tecnociência serve para proteger o sentido masculino de domínio do que é aparentemente um aspecto avassalador e até ameaçador da “m/other”** originária.
Bryld e Lykke observam uma forma de projeção psicodinâmica no discurso científico sobre a gravidade como emblema da “matéria aprisionadora” [no original: imprisioning mater/matter]; elas vêm mais projeção nas imagens consagradas ao longo do tempo da Mãe Terra como uma mulher imprevisível e histérica. No entanto, elas argumentam que a histeria originária está enterrada nas profundezas da masculinidade eurocêntrica e sublimada por seu mais recente empreendimento, a tecnociência. Tradicionalmente, a religião judaico-cristã serviu para compensar os homens por seu papel marginal na criação de espécies, colocando-os como guardiões da natureza e as mulheres como seus bens. O paradigma de comando-controle industrial tardio perpetua essas mesmas estratégias masculinas de auto-aperfeiçoamento. Mas o campo de comando – militar, ambiental, doméstico – opera por meio de um confuso amálgama de significados. Dessa forma, assim como a “mulher” foi sacralizada como uma Madonna, ela é, ao mesmo tempo, sexualmente canibalizada como uma prostituta. Assim também, a natureza verde e os úteros oceânicos são, por sua vez, romantizados, isolados e dotados de recursos.
Bryld e Lykke não mencionam a tese de Elizabeth Dodson Gray em "Green Paradise Lost", uma leitura ecofeminista pioneira da ética judaico-cristã e sua ideologia da Grande Cadeia do Ser [31]. No entanto, seu estudo de paralelos entre racismo, sexismo e especismo na pesquisa científica amplia o diagnóstico original de Dodson Gray da hierarquia ocidental de homens brancos sobre mulheres, nativos, crianças, animais e outros “recursos naturais”. Elas descrevem a triste situação dos golfinhos, cujo trabalho e corpos desvalorizados foram explorados pelos militares dos EUA e soviéticos na remoção de minas submarinas. Hoje, pós-Guerra Fria, os golfinhos foram vendidos; agora empregados por terapeutas da Nova Era para nadar com humanos perturbados no lucrativo negócio de realinhar auras doentes.
Bryld e Lykke ocupam um espaço teórico entre a análise do discurso pós-moderna e a política ecofeminista, e muito mais confortavelmente do que Braidotti et al. Pois o foco contínuo destes últimos em “variáveis reguladoras” como gênero, classe e raça, demonstra um certo “chauvinismo humano”9. Essa ruptura ecocêntrica com o antropocentrismo é o que distingue o pensamento ecofeminista de outros paradigmas feministas. E como Ynestra King aponta, mesmo as teorias multifatoriais do ponto de vista “feminista socialista” de Alison Jaggar e Nancy Hartsock, que sintetizam uma posição a partir da qual as mulheres podem fazer reivindicações históricas especiais – e de uma forma que não é biologicamente determinista – “não tratam a dominação da natureza como categoria significativa” [33].
Muitas feministas pós-modernas exibem uma espécie de desprezo pelo conceito de “natureza”, uma atitude que compara sua negatividade com o conceito de “mulher”. Acima de e contra um tratamento muitas vezes literal e até positivista dos “universais”, os pós-modernos celebrariam uma multiplicidade de diferenças, o “prazer em confundir fronteiras e responsabilidade em suas construções” [34]. Mesmo assim, durante esse processo de recontextualização de ‘universais’, mulheres e feministas ainda precisam ‘falar’ as palavras cotidianas que estão em processo de contestação e redefinição. E aqui, as ecofeministas se voltam contra o feminismo pós-moderno, porque a escrita ecofeminista pode facilmente desconstruir os esforços das feministas pós-modernas, que, apesar de sua sofisticação linguística, acabam discutindo universais patriarcais como “mulher” e “natureza” como se fossem “fatos sociais” durkheimianos rudimentares. Além disso, é claro que a posição politicamente autodestrutiva dos pós-modernos sobre a questão das categorias universalizantes deriva do mesmo masculinismo – um ou outro/ou binários – que Braidotti et al. reconhecem como linguagem e filosofia eurocêntricas deformantes. Em outras palavras, Briadotti et al. não reconhecem que o próprio "um ou outro/ou", no qual eles e outros pós-modernos tanto confiam para fazer suas incursões críticas, pode ser diagnosticado como um essencialismo ideológico, não menos corrupto do que noções generalizadas como "mulheres" ou "natureza".10
Antigos binários hegemônicos como sexo/gênero, natureza/cultura, produção/reprodução, eu/outro, desenvolvido/não desenvolvido são de fato infligidos às sociedades contemporâneas através dos discursos do capitalismo, liberalismo e ciência. A dualidade artificial de “sexo versus gênero” recebe muita atenção das feministas pós-modernas, mas o potencial político radical capturado no binário “humanidade versus natureza” geralmente é deixado para as ecofeministas explorarem. Neste trabalho, as ecofeministas realmente “violam limites” e restrições conceituais sobre as identidades de mulheres, homens e outros. Assim, mesmo quando ecofeministas e Haraway compartilham reservas sobre a polaridade gênero versus sexo, suas ênfases são diferentes. As ecofeministas não querem necessariamente “desnaturalizar” o corpo sexuado hibridizando-o, como Haraway faria. Esse movimento tem sido popular entre as mulheres lésbicas e feministas liberais orientadas para a carreira urbana, porque o gênero socialmente construído é controlável em sociedades ricas de alta tecnologia. No entanto, o corpo não é tão prontamente imunizado no Sul global. Aqui, o sexo biológico é um professor que deixa a maioria das mulheres à mercê de forças socioeconômicas e ecológicas mais amplas. E assim, as ecofeministas se separam de Haraway, para quem a permeabilidade utópica da fronteira cibernética mulher-máquina é classificada superior – ou seja, como mais progressista – do que qualquer simbiose “natural” mulher-homem-criança.
4. Sujeito político como híbrido homem-máquina
O momento positivista na análise do discurso e a incapacidade de muitas feministas pós-modernas de exercer um duplo movimento reflexivo no pensamento é abordado por Diana Fuss em "Essentially Speaking":
...precisamos tanto teorizar lugares essencialistas de onde falar e, simultaneamente, desconstruir esses espaços para evitar que se solidifiquem. Tal gesto duplo envolve mais uma vez a responsabilidade de historicizar, de examinar cada desdobramento da essência, cada apelo à experiência, cada reivindicação de identidade no complicado quadro contextual em que isso é feito [37].
Em contraste, a estratégia de Haraway é ejetar palavras problemáticas e inventar novas: daí, o “ciborgue”: seu nome para nossa condição pós-moderna como híbridos homem-máquina tecnocientíficos. Essa manobra, distanciando a teoria feminista do “status social e simbólico carregado de libidinagem” das mães, pode conquistar os corações dos estudantes adolescentes, mas seu efeito político é empurrar as “mulheres falantes” e suas realidades biológicas para o subsolo. A discussão feminista de Braidotti et al. sobre a “interseção entre as esferas natural e cultural” também permanece abstrata e desconectada de qualquer fundamentação epistemológica baseada na experiência de forma coerente. Contra essa análise estática, sincrônica e linguística de textos – senão como da própria vida como “texto” – um ponto de vista político ecofeminista é processual, conectando energias incorporadas a situações históricas em andamento.
Embora não seja um texto ecofeminista, "Whose Science? Whose Knowledge?", fornece um argumento impressionante sobre a relevância das epistemologias dos pontos de vista feministas neste momento do capitalismo patriarcal [38]. Harding insiste que agora é precisamente o momento para as mulheres iluminarem a sombra reprimida da história. A localização contraditória das mulheres tanto dentro como fora da esfera pública aguça suas percepções. E como as atividades socialmente diferentes das mulheres moldam o pensamento e o sentimento, as mulheres podem trazer uma nova visão das coisas. Como estranhas virtuais, em sua maioria marginais ao sistema político, as mulheres em trabalho de assistência não remunerada provavelmente serão observadoras altamente objetivas dele. Como um grupo excluído e oprimido, elas não têm interesse em ocultar estruturas sociais corruptas. Como portadoras de papéis de trabalho que mediam natureza e cultura – seja pelo trabalho doméstico na economia do Norte ou pela agricultura de subsistência na economia do Sul, as habilidades, conhecimentos e valores das mulheres são indispensáveis para os debates cidadãos sobre justiça social e sustentabilidade ecológica.
O que poderia ser mais satisfatório para a metanarrativa patriarcal capitalista do que a exclusão feminista pós-moderna de “mulher” e sua substituição por um ciborgue? De certa forma, a mudança já está em andamento por meio de pesquisas corporativas sobre tecnologias reprodutivas. No entanto, essa utopia des-sexualizada/des-gênero é precisamente o que Haraway busca. Na coleção Feminism/Postmodernism, Judith Butler escreve que mal sabemos o que queremos dizer quando usamos a categoria “mulher”. Esse raciocínio linguístico descontextualizado intimidou uma geração de estudiosos mais jovens, que agora abandonam completamente o termo “mulher” do léxico feminista. Gayatri Spivak veio em socorro de aspirantes a ativistas, mas, novamente, com uma solução pós-moderna tipicamente dissociada, aconselhando-os a usar um “essencialismo operacional” para fins políticos [39,40]. Essa ginástica acadêmica expressa a mesma metodologia esquizóide que as injunções de Haraway. O que talvez seja ainda mais preocupante é o fato de que algumas pretensas acadêmicas feministas são incapazes de discernir quando palavras como “mulher” ou “natureza” estão sendo usadas estrategicamente, operacionalmente, ironicamente ou literalmente.11
Quando as ecofeministas interrogam a subjetividade e construções subsidiárias como “mulher” ou “homem”, o faz para “re-situá-las” dentro de uma estrutura ecológica. É em parte por isso que o termo ecofeminismo – uma ecologia tanto quanto um feminismo – representa uma identidade dialética. Em contraste, as preocupações de Butler com a identidade política são limitadas tanto pelas preocupações antropocêntricas da sociologia quanto pela estática social da teoria do discurso. Por isso,
...a crítica política do sujeito questiona se fazer de uma concepção de identidade o fundamento da política... exclui prematuramente as possíveis articulações culturais da posição-sujeito que uma nova política poderia muito bem gerar [42].
Descrevendo o gênero como meramente um “efeito de verdade” do discurso, uma “performance”, o feminismo pós-moderno de Butler ecoa o papel do funcionalismo parsoniano da sociologia americana dos anos 1950. No entanto, Butler reivindica uma genealogia na psicanálise pós-estrutural lacaniana. Consistente com a filosofia ciborgue de Haraway, Butler acredita que a noção de “mulher” é regressiva, denotando um encerramento prematuro de possibilidades futuras. Ela aponta que no Ocidente patriarcal capitalista, a subjetividade não está aberta a um corpo que é sexuado "mulher". Em vez disso, a subjetividade é “sempre já sexuada masculina” exigindo uma hierarquia de [sujeitos] que a sustenta – invariavelmente femininos.
5. Um conceito supersocializado de mulher
Para a maioria das mulheres que não habitam o espaço ciborgue dos corpos tecnologicamente controlados, a latência sexual das permanentes interrogações textuais de Haraway é simplesmente cruel. “O que faz uma mulher”, escreve Haraway, “é uma relação específica de apropriação por um homem” [43]. Mas então ela continua dizendo que: “a insistência na vitimização como o único fundamento para o insight já causou bastante dano” [44]. Talvez quando Haraway protesta contra a vitimização, ela está realmente protestando contra sua própria captura intelectual por uma concepção supersocializada, de fato, totalizante do que é uma mulher? Por outro lado, as ecofeministas consideram a dose diária de violência sexual e exploração econômica colocada sobre as mulheres como os principais catalisadores na formação de uma subjetividade política resistente [22]. Ao mesmo tempo, essa subjetividade autoproduzida carrega habilidades que são inestimáveis para a gestão das relações vivas entre o homem e a natureza, assim chamada. Se as estatísticas internacionais do trabalho estiverem corretas, então as mulheres, de fato, ocupam mais da metade do céu. Longe da vitimização, as ecofeministas reconhecem a agência política das mulheres como uma força crítica no movimento de globalização alternativa, com muitas assumindo um papel de liderança nas reuniões do Fórum Social Mundial [45].
A luta dos homens patriarcais capitalistas contra seus “outros naturalizados” – mulheres, nativos, terra – trouxe a biotecnologia para a vanguarda do neocolonialismo do século XXI. Bryld e Lykke observam que, seguindo a definição da Comissão Bruntland de espaço e oceanos como bens comuns globais, as Nações Unidas como “panóptico” começaram a monitorar a nova ordem “biopolítica” com autoridade do espaço sideral. Simultaneamente, as agências da ONU chegaram ao âmago da questão da poluição, desmatamento, aquecimento global e controle populacional. Em alguns bairros, havia a suposição de que, para manter a “defesa militarizada” dos objetivos masculinos ocidentais, seriam necessários recursos extraterrestres de depósitos minerais. Supunha-se que a “terraformação” ou a domesticação de outros planetas ajudaria a proteger o planeta Terra – para o prazer dos turistas, pelo menos. A tecnociência de Haraway está tacitamente ligada a esse paradigma de crescimento de alto consumo e aparentemente inconsciente de sua própria “situação” nos EUA. Pode haver momentos de ironia no que ela escreve, mas o meio de sua mensagem certamente leva a melhor.
Em referência à eco-destruição, Haraway invoca a fantasia científica contemporânea de uma Gaia de auto-resgate. No entanto, de acordo com a ecofeminista indiana Vandana Shiva, uma crítica incisiva do mal-desenvolvimento, o mundo não necessariamente “resiste” à redução. Isso é bem ilustrado pela dizimação da agricultura indiana pela Revolução Verde e as transferências de tecnologia relacionadas do Norte. Mas a feliz consciência da mudança de alta tecnologia de Haraway de 'reprodução' para 'replicação genética', perde a oportunidade de discutir os fundamentos profundamente falhos e misóginos da ciência ocidental em sua fase corporativista12. Além disso, Haraway deixa de lado a pesquisa histórica ecofeminista de Merchant sobre a sistemática caça às bruxas do conhecimento das mulheres sobre os processos naturais; um expurgo que possibilitou o Iluminismo patriarcal capitalista e seu modelo peculiar de ciência. Como se continuasse essa mesma tradição, a tecnociência pós-moderna de Haraway luta por uma ruptura completa com o “organicismo” e com visões utópicas que se baseiam nos modos de saber ameríndios ou afro-americanos [47].
Mas voltando à “questão da mulher”, por que os pós-modernos insistem que as atividades políticas das mulheres sejam decodificadas e desnaturalizadas? Que tipo de autoaversão é essa, que perpetua a hierarquia de valores patriarcais do “discurso sobre a materialidade”, a cultura sobre a natureza? Deveria ser degradante dizer que as mulheres lutam pela paz como “mães”, quando não é degradante dizer que lutam pelo meio ambiente como “agricultoras” ou “cidadãs”? O trabalho materno das mulheres denota relações estruturais específicas e, no que diz respeito ao sonho utópico de uma democracia universal, essas relações familiares muito provavelmente serão as últimas a se desfazer. Enquanto isso, a acusação pós-moderna de “maternalismo” é abusiva para o maior maioria das mulheres em todo o mundo, cujos trabalhos são sobrecarregados com dependentes necessitados. As ecofeministas podem concordar com o programa feminista pós-moderno de reivindicar “identidades desprezadas”. Mas a identidade da mãe teria que ser [reconhecida como] a categoria política mais universalmente difamada de todas – e muitos escritos feministas pós-modernos são cúmplices disso.13
Muitas mulheres no norte econômico trocaram a realização “biocultural” por identidades profissionais altamente assalariadas. Mas, no processo, elas deixam para trás um bocado de detritos emocionais para serem absorvidos pela teoria feminista. A imagem “problemática” da mãe é uma expressão direta dessa consciência de status dentro do feminismo do Atlântico Norte. Para relembrar as palavras de Adrienne Rich em "Of Woman Born":
O corpo tornou-se tão problemático para as mulheres que muitas vezes parece mais fácil dar de ombros e viajar como um espírito desencarnado... [50].
Isso explica a fuga de Haraway em busca de refúgio em uma utopia de ciborgues – meio-humano-meio-máquina, pós-gênero, pós-nuclear. Mas que sentido prático o ícone ciborgue faz para as mulheres ativistas – cujas terras foram cercadas pelo agronegócio? De que serve o ciborgue emancipatório para as mulheres cujos bairros são terrenos baldios industriais tóxicos? Isso explica a fuga de Haraway em busca de refúgio em uma utopia de ciborgues – meio-humano-meio-máquina, pós-gênero, pós-nuclear. Haraway afirma que é irresponsável sob as condições históricas atuais “perseguir contos anticientíficos sobre a natureza que idealizam as mulheres...” [51]. Mas esse julgamento serve a quais interesses? De uma perspectiva ecofeminista, é “irresponsável” não atender à política espontânea pela qual as mulheres começaram a assumir a liderança da vida na Terra. Uma reavaliação com base histórica do trabalho materialmente incorporado das mulheres e da experiência relacionada a ele nunca deve ser confundida com idealização.
6. Quando os subalternos falam
Infelizmente, o desconstrucionismo de Haraway chega perto de reduzir – e de fato silenciar – a “mulher” como um “corpo discursivo” patriarcalmente fabricado. E, se o termo materialismo chega a ser usado em seu trabalho, podemos ter certeza de que é um materialismo do “texto”. Pelo menos, é encorajador encontrar construcionistas sociais como Braidotti et al. revisando atitudes pós-modernas negativas para a frase “Mulheres do Terceiro Mundo”. Eles reconhecem que as mulheres no Sul global não são mais vítimas arquetípicas “no fundo de uma cascata de identidades negativas”. Na verdade, essas mulheres são gerentes ambientais experientes. A antologia "There Is An Alternative", editada por Veronika Bennholdt-Thomsen et al., também destaca o compromisso político dessas mulheres com a proteção da biodiversidade e com a orientação de suas irmãs industrializadas do Norte global para uma ecologia política mais inclusiva [52].
À luz das contínuas colaborações Norte-Sul das ecofeministas, nada tem sido tão fútil quanto o debate pós-moderno sobre as "mulheres do Terceiro Mundo” e o “olhar” feminista. Desconstrucionistas no afluente Norte revelam os fundamentos idealistas e de classe média de sua análise acadêmica quando argumentam que não existe uma mulher do Terceiro Mundo [53]. Por implicação, eles também argumentariam que não existe uma relação neocolonial? Rejeitar um ponto de vista experiencialmente fundamentado, como o de mulheres trabalhadoras em países do Terceiro Mundo, com base no fato de que pode endossar o posicionamento do falante em uma 'alteridade' patriarcalmente atribuída, é exibir uma aceitação acrítica e positivista da lógica do mestre.14 Essa inibição pós-moderna, incluindo a infame pergunta de Spivak – Como pode o subalterno falar? – é muito provavelmente uma espécie de culpa, sentida pelos intelectuais do Primeiro Mundo, para quem as mulheres do Sul nada mais são do que informantes nativas ou exemplares de uma ‘voz’. Como tal, a inibição de usar a frase “mulheres do Terceiro Mundo” aborda uma era política que já passou, pelo menos para as ecofeministas do movimento de globalização alternativa.
Nenhuma voz do Sul econômico foi tão eloquente na tecnociência ocidental quanto Vandana Shiva em "Staying Alive: Women, Ecology and Development". Mas a exposição de Braidotti et al da etnociência de mulheres agricultoras indianas e moradores da floresta é bastante enganosa [55]. Nem Briadotti et al. reconhecem o significado ecológico-político e utópico da crítica de Shiva. De fato, quando esses autores europeus pós-modernos pedem um “posicionamento múltiplo” do conhecedor para ser sensível às diferenças de poder, eles ainda estão visualizando “outras” mulheres como objetos da pesquisa da “agência internacional” do Norte. Essa pesquisa é realmente necessária, ou melhor, não é hora das feministas do Norte econômico simplesmente ouvirem as irmãs do Sul e planejarem ações políticas que complementem e apoiem suas iniciativas ativistas?
E este não é o fim de tudo. Embora as feministas pós-modernas possam não acreditar no fato, as ecofeministas argumentam que existe na verdade outro “Terceiro Mundo” ou classe subalterna no chamado Norte desenvolvido. Esse mundo é habitado por mães e por cuidadoras não remuneradas. Em "Women: The Last Colony", Maria Mies, Veronika Bennholdt-Thomsen e Claudia von Werlhof fazem uma análise neomarxista única desse terreno político e sua relação com a economia patriarcal capitalista mais ampla [56]. Os serviços de reprodução doméstica são massivamente apropriados pelo neoliberalismo corporativo, embora nas áreas rurais do Sul global o abastecimento doméstico seja relativamente mais autônomo do que no Norte global. As epistemologias do ponto de vista feminista refletem essa autonomia – como é demonstrado na unidade de habilidades mentais e manuais, uma unidade de teoria política e prática.
Dado o apelo de Haraway por “responsabilização”, é curioso que sua escrita rejeite as epistemologias do ponto de vista feminista e minimize suas origens construcionistas sociais epistemologicamente sólidas. Além do que ela rotula como um empirismo ingênuo ligado a pedidos de validação da “experiência vivida de forma diferente pelas mulheres”, Haraway não gosta do “privilégio do trabalho” em relatos feministas de como se chega ao conhecimento [57]. Para Haraway, o trabalho de parto é um “momento ontológico”. Mas, ao defini-lo dessa maneira, ela garante que qualquer discussão sobre trabalho será um exercício “essencialista”. Essa desconexão do substrato material que sustenta as sociedades em geral, para não mencionar sua própria vida intelectual, é uma postura problemática, de fato. Isso compromete o próprio socialismo feminista de armário de Haraway e a distancia dos trabalhadores e das mães que fazem alianças para a mudança social.
Agora, enquanto Haraway se opõe à priorização total do “trabalho”, as ecofeministas materialistas incorporadas mudam o foco da análise política do trabalho produtivo para o “trabalho reprodutivo”. Haraway observa que a reprodução se tornou o local privilegiado da contestação política pós-moderna. No entanto, apesar de um reconhecimento do núcleo 'biocultural' das instituições econômicas contemporâneas na divisão do trabalho por gênero, e homenagens ocasionais à desconstrução feminista socialista do mesmo, ela resiste a abrir a caixa de Pandora da 'política reprodutiva' com um confidente aceno de mão.
Não deveria levar décadas de teoria feminista para sentir o inimigo aqui. Nancy Hartsock deixou tudo isso claro em seu conceito de masculinidade abstrata... [58].15
E Haraway deixa por isso mesmo. No entanto: leitores atentos podem ficar confusos no final do dia, ao encontrá-la endossando “uma teórica do ponto de vista” – como Hartsock é...
O que pede mais interrogação é por que qualquer construcionista social estaria preparado para se curvar a uma construção ostensivamente essencializante como a “masculinidade abstrata”, e então recusar um lugar à “mulher” universal no texto com base no fato de que seria essencialista falar dessa maneira! Com uma alusão depreciativa a uma anterior
... política feminista [que] defendia a plena inclusão das mulheres no corpo político com base nas funções maternas na economia doméstica estendida a um mundo público... [60].
Haraway passa por cima – ou não tem conhecimento de – leituras reconstrutivas da economia em "Tomorrow Begins Today", da ecofeminista finlandesa Hilkka Pietila, e em "Counting for Nothing", da neozelandesa Marilyn Waring. No entanto, suas análises dos sistemas contábeis globais mostram, sem dúvida, como o modo de produção patriarcal capitalista e a “informática da dominação” são totalmente dependentes do trabalho diário das mulheres como cuidadoras. O que se ganha dissolvendo a existência material de tais mulheres, ordenando a palavra “mulher” para fora do tribunal?
7. O fim da responsabilidade
Dirigindo-se à globalização neoliberal, Bryld e Lykke se descrevem como “cidadãos de uma nação pequena e nada heróica... Como eles veem:
As utopias falecidas da modernidade européia e americana, e a crença lânguida em sua missão tecnopolítica mundial "civilizadora", perseveram, por assim dizer, postumamente, em legitimar atos canibais e novas buscas por áreas selvagens abundantes em recursos. [63].
No entanto, na análise final, mesmo essas feministas pós-modernas confessam ter sido seduzidas pelo fascínio masculinista pela aventura espacial, e assim o leitor fica se perguntando sobre a autenticidade dos Cosmodolphins. As autoras são muito bem-sucedidas em mostrar o “truque de deus” da tecnociência, pois observam o planeta azul muito abaixo. No entanto, junto com sua mentora Haraway, elas perpetuam involuntariamente a “visão do nada” dissociada por meio de sua rejeição pós-estruturalista da epistemologia do ponto de vista feminista [64]. Talvez o problema decorra do fato de que sua disciplina de estudos culturais é projetada para desestabilizar o mundo das ideias – em vez de liberar corpos materiais de longa data de estruturas políticas opressivas. No entanto, por mais brilhante que a desconstrução do domínio significante de Bryld e Lykke possa ser – e é um estudo encantador – ele não oferece um terreno existencial no qual a resistência prática por parte das mulheres pode aterrar. Além disso, sua rejeição do momento utópico per se acaba por conter tanto o pensamento quanto a ação política dentro do círculo fechado da análise do discurso.
À medida que a tecnociência do século XXI arma o alcance colonizador da modernização ocidental, alguns podem se admirar com a sofisticação complacente e até descuidada da filosofia ciborgue ostensivamente “pós” de Haraway. Como ela admite: ‘Estou tentando dizer os dois, e nem, nem...’ [65]. Mas seus complexos “campos abertos”, “brincadeiras” entrecruzadas, “verdades parciais” e dispersões foucaultianas de poder, invocam um paradigma alegre e não crítico. Seu desligamento da hierarquia exploradora da humanidade sobre a natureza e o aparente desprezo pelos recursos patriarcais capitalistas daqueles que trabalham com/na natureza é elitista – mesmo que apenas por padrão. As incursões enigmáticas na tecnociência como “semiose materializada” quase reduzem a análise sociológica a “uma coleção heterogênea de adesivos de pára-choques”.16 A escrita legitima mais do que desloca a “informática da dominação”. Mas no mundo real: o gigante de alta tecnologia faminto por carbono de Haraway colide com os esforços de base para construir futuros sociais alternativos que serão globalmente justos. Da mesma forma, a emoção da replicação aleatória e do hibridismo projetado destrói a integridade do ecossistema. O aceno ocasional para a política ecofeminista no feminismo pós-moderno de Haraway não é convincente, porque seus sonhos tecnofílicos são altamente masculinistas e distópicos ao extremo.
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[64] M. Bryld, N. Lykke, Cosmodolphins: Feminist Cultural Studies of Technology, Animals, and the Sacred, Zed Books, London, 2000, p. 30.
[65] D. Haraway, Simians, Cyborgs and Women, Routledge, New York, 1991, p. 133.
[66] D. Jamieson, The poverty of postmodernist theory, University of Colorado.
* Nota de tradução: a escolha pelo termo ecologia política ao invés de ecopolítica, como no original, se deu para evitar possíveis sobreposições com o conceito de ecopolítica relacionado à ideia de governamentalidade planetária nascida a partir da lógica de uma possível gestão - ou remediação capitalista - da crise ambiental e climática.
** Nota de tradução: escolhi manter a grafia original, pois o termo mistura o conceito de mãe com o de “outro”, algo que se perderia na tradução para a língua portuguesa.
A diversidade do feminismo está destaca em [2] na p. 13.
Para exemplos recentes, ver [4,5].
A referência é a [10].
Itálico adicionado.
Noel Sturgeon, uma das alunas de doutorado de Haraway tenta aproximar essa lacuna em sua tese publicada: “Ecofeminist Natures” [18].
O livro foi produzido em associação com o International Research and Training Institute for the Advancement of Women da ONU (UN-INSTRAW).
Veja [22].
Veja [2,12,22].
A frase "chauvinismo humano” foi introduzida na ética ambiental por Val Plumwood [32].
Veja [35] para uma discussão de tratamentos reificados e essencialistas da natureza e da diferença feminina, e também [36]. A literatura revela que muitas pessoas falam sobre essencialismo sem realmente entender o que isso significa; enquanto algumas feministas de carreira competitivas usam o termo “estrategicamente” para marginalizar o trabalho de outras aos olhos dos poderosos intermediários acadêmicos masculinos.
Para uma boa análise sobre isso, veja [41].
Embora Haraway endosse a observação ecofeminista de sua ex-aluna, agora colega australiana Zoe Sofia, no sentido de que o “recurso” patriarcal capitalista é “um segundo nascimento do Homem através da homogeneização de todo o corpo do mundo” [46].
Por exemplo [48,49].
Não só as feministas pós-modernas como as do desenvolvimento sucumbiram a essa tendência, ver [54].
Itálico adicionado. A referência é [59].
Eu devo esta frase memorável a [66]. Para uma avaliação mais agnóstica da tecnociência, veja [67].