uma breve introdução ao ecofeminismo
e às particularidades da perspectiva socialista/materialista
O texto abaixo é um trecho retirado da introdução da minha dissertação de mestrado, Crise Climática e Antropoceno: perspectivas ecofeministas para liberar a vida, que pode ser lida na íntegra aqui.
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O desdobramento dos estudos ecofeministas dentro dos estudos das mulheres emergiu após o surgimento de vários movimentos de mulheres organizadas contra projetos extrativistas, injustiças ambientais, poluição, energia nuclear, em movimentos de paz e de ação direta não violenta em diversas partes do mundo. Dessa forma, assim como os estudos das mulheres, os estudos relacionando a ecologia e as mulheres nasceram a partir da própria luta política de mulheres diretamente implicadas nas consequências do modo de produção capitalista, com mulheres tão diversas quanto Diane Wilson, pescadora do Texas, que ficou conhecida por sua luta contra corporações químicas como a Dow Chemical e Chamundeyi, uma das principais lideranças do Movimento Chipko, na Índia1.
Os estudos ecofeministas surgiram em meados da década de 1970, juntamente com a segunda onda do feminismo e do movimento ecológico contemporâneo, também conhecido como movimento verde (green movements). O ecofeminismo se apoia tanto nas conclusões feministas acerca da dominação das mulheres quanto na crítica ao antropocentrismo e nos questionamentos acerca da relação entre humanos e naturezas extra-humanas do movimento ecológico. Ao mesmo tempo, o ecofeminismo impõe a crítica à dificuldade do movimento ecológico em endereçar o papel fundamental das relações patriarcais homem-mulher em suas conclusões acerca da presente crise ambiental e climática. Já o desafio ecofeminista ao feminismo diz respeito à afirmação ecofeminista de que homens e mulheres estão em relações diferentes com o mundo natural e que a inserção humana no mundo natural está diretamente relacionada à corporificação humana2.
Dessa forma, o ecofeminismo sintetiza a práxis de compreender e enfrentar às dominações interrelacionadas das mulheres e natureza, buscando uma reestruturação radical da sociedade ao invés de políticas reformistas. Para as ecofeministas está claro que as mulheres com seus próprios corpos e nos seus trabalhados carregam de forma desproporcional as consequências ecológicas e sociais da descorporificação humana apresentadas como "externalidades" do processo de produção capitalista [externalidades são poluição, alterações climática, impactos na produção de alimentos, entre outros].
Ao mesmo tempo, as ecofeministas fazem uma crítica aos socialistas (marxistas, anarquistas ou não) para os quais o trabalho e, portanto, a própria condição de classe das mulheres, permanece invisível. Seguindo uma epistemologia ecofeminista, a presente pesquisa entende o trabalho das mulheres como trabalho (re)produtivo, pois mulheres são produtoras da vida em seus dois aspectos. A escolha da grafia acompanha a epistemologia ecofeminista que busca evidenciar as dimensões atemporal [produzir força de trabalho] e histórica [produzir valores de uso] do trabalho feminino e a impossibilidade de existir trabalho produtivo [remunerado] alheio ao trabalho de reprodução da vida [não remunerado].
A história do ecofeminismo pode ser encontrada em uma vasta gama de movimentos de mulheres. Ariel Salleh (2017) colaborou consideravelmente em recuperar essa trajetória de cinco décadas ao fazer um vasto levantamento dos diversos movimentos em vários países do Norte e Sul global que, desde os anos 1970, têm buscado endereçar a questão ecológica e das mulheres de forma interconectada.
O tamanho e o impacto do movimento ecofeminista vai depender do quão ampla será a definição usada. Uma definição estreita compreenderia as mulheres que se declaram ecofeministas. Nessa definição, teríamos algumas mulheres diretamente envolvidas em movimentos por justiça ecológica e mulheres acadêmicas dedicadas a estabelecer o ecofeminismo como perspectiva científica e como movimento. Uma definição mais ampla consideraria as mulheres em movimentos sociais e ambientais que unem as preocupações feministas e ecológicas. Por fim, uma perspectiva macro consideraria todas as mulheres envolvidas em lutas ambientais e ecológicas mesmo quando políticas ecofeministas ou feministas não são abertamente definidas ou expressadas3.
A despeito do ecofeminismo como uma epistemologia distinta ter sido primeiramente desenvolvido em grande medida por mulheres no Norte global, embora não apenas a exemplo da própria Vandana Shiva, na última década a epistemologia ecofeminista tem servido de base para mulheres no Sul, como as mulheres curdas, e mulheres latino-americanas a exemplo de Yayo Herrero e Veronica Gago (2023), Ana Isla (2006), Miriam Nobre e Renata Moreno (2020), entre outras. Desde 2010, a epistemologia ecofeminista está ganhando fôlego renovado não apenas no Sul global, mas no Norte, por meio das aproximações com o chamado novo materialismo4 e com a ecologia política5.
É possível reconhecer duas vertentes teóricas dentro do ecofeminismo. O ecofeminismo cultural ou de afinidade, que olha para a cultura e para a dominação masculina per se, e até mesmo para a própria masculinidade, como a principal origem da violência contra as mulheres e da destruição ambiental. E o ecofeminismo socialista, ou ecofeminismo materialista, o qual utilizaremos como epistemologia principal da presente pesquisa, com uma tradição de análise do modo de produção capitalista a partir de uma perspectiva marxista, que entende a divisão de poder, particularmente a divisão sexual do trabalho, como a contradição fundamental sustentando os padrões de dominação, violência e exploração.
Em ambas as linhas teóricas, é possível encontrar a conclusão de que a exploração das mulheres e da natureza estão conectadas. Para as ecofeministas socialistas, a análise dessa dupla exploração é feita endereçando as relações materiais entre humanos e entre humanos e natureza dentro de seus contextos históricos. De forma concomitante, a perspectiva ecofeminista socialista considera as relações de exploração das mulheres do Norte e Sul global, reconhecendo as diferenças entre elas, mas seu caráter interdependente, garantindo ao ecofeminismo socialista uma característica nitidamente anticolonial desde as origens. Assim, o ecofeminismo socialista considera tanto as preocupações das ecofeministas do Norte como os movimentos ecológicos de mulheres no Sul em um contexto político-econômico globalizado6.
Embora a perspectiva ecofeminista possa se relacionar com algumas correntes do feminismo radical, do feminismo comunitário e decolonial, algumas visões são incompatíveis com a perspectiva ecofeminista. Entre elas, destaco as demandas por "igualdade" do feminismo liberal, bem as demandas das feministas marxistas e socialistas por "equidade"; ambas subestimam o contexto ambiental mais amplo e a impossibilidade do desenvolvimento sempre progressivo das forças produtivas, ao passo que não conseguem oferecer uma explicação satisfatória para a persistência da violência contra mulheres desde antes do desenvolvimento do modo de produção capitalista e da colonização.
O ecofeminismo também é incompatível com o construcionismo social radical, seja ele do feminismo radical, pós-moderno, marxista ou socialista, por sua epistemologia e ontologia que privilegiam a sociedade humana/a cultura. Para as ecofeministas, a materialidade física é real e a humanidade é parte do mundo natural, enquanto este tem independência ontológica, e existe antes e para além dos humanos. No entanto,
A rejeição do construtivismo social ou cultural por atacado não significa um colapso no determinismo ecológico ou biológico. O que é politicamente e teoricamente vital para entender é a relação entre relacionamentos socialmente construídos e realidades físicas, seja de corporificação ou imersão. É essa interface que diz respeito ao ecofeminismo, a conexão entre os processos biológicos e ecológicos que envolvem a sociedade humana e a subordinação e opressão das mulheres. Para as ecofeministas, a preocupação com a vitalidade da ecologia do planeta está diretamente relacionada à preocupação com a vida e as experiências das mulheres. A dominação pós-moderna/pós-estruturalista da teorização social contemporânea apresenta uma falsa escolha entre o construtivismo social radical e várias formas de universalismo e essencialismo.7
Para utilizar uma metáfora, o ecofeminismo nos impele seguir as linhas guias da história por meio da dialética entre social e ecológico/biológico, ou seja, uma análise materialista dos humanos-na-natureza, sobretudo das mulheres-na-natureza. Acompanhar esses fios nos auxilia a encontrar os nós, ou seja, as bases fundamentais mantendo as relações de dominação forjadas ao longo do processo histórico tanto em relação às mulheres como em relação à natureza. Apenas a tentativa de desatar os nós, ou seja, uma pesquisa-ação, a própria práxis ecofeminista, permite a construção de novas tessituras. Parafraseando Salleh, um ecofeminismo dialético não questiona sobre “qual visão política ou teoria é válida para sempre?”, mas sim “qual forma de saber é mais útil em um tempo que implora pela liberação da vida?”8.
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