Natureza, trabalho e corpo
Percursos feministas e pistas para ação [leituras ecofeministas]
O texto abaixo foi escrito por Miriam Nobre e Renata Moreno e publicado originalmente no livro Economia feminista e ecológica: resistências e retomadas de corpos e territórios pela SOF Sempreviva Organização Feminista, 2020. Acesse a publicação completa aqui. Os bordados que ilustram essa track e o livro foram feitos pelo grupo Teia de Aranha. Acesse o documento original para ver as referências e notas de rodapé.
Introdução
A economia feminista faz uma análise crítica das formas atuais de organização da economia, hegemonicamente capitalistas, patriarcais e colonialistas, bem como das teorias que embasam as políticas que as organizam, e propõe outros instrumentos para destruir a Casa Grande, assim como nos convida a poeta Audre Lorde. Integra as escolas da economia crítica que buscam não só analisar, mas superar a ordem econômica vigente, e propõe a sustentabilidade da vida como princípio organizador dos processos econômicos.
A economia ecológica analisa os fluxos de materiais e energia que utilizamos para manter a vida em sistemas sociais atravessados pelas desigualdades de gênero, raça, classe e geopolíticas. Critica a redução da natureza a um recurso ou uma externalidade de sistemas econômicos considerados fechados e propõe outras formas de pensar valor. Espécies não humanas têm um valor intrínseco e a noção de valor relacionada à natureza não tem medidas que possam se traduzir em preços ou avaliações de custo-benefício.
A proposta deste texto é juntar ambas as referências pela perspectiva da construção de um movimento feminista anticapitalista e antirracista. A primeira parte trata das questões que surgem quando o pensamento econômico considera a natureza em si, e não como recurso integrado ao circuito de acumulação do capital. Para isso, resgatamos leituras ecossocialistas e ecofeministas de conceitos marxistas como metabolismo socioeconômico, valor e troca ecológica desigual. A segunda parte se situa no corpo, primeiro território onde natureza e cultura convergem, aproximando-se de sua dupla posição: permanente fronteira de acumulação e resistência corporificada.
Natureza como base de sustentação da vida
Um instrumento é olhar como a vida se organiza e como ela se reproduz para além da pequena parte visível da economia que é mensurada pelos indicadores, as esferas do Estado e do mercado. Para começar, a vida se sustenta na natureza. É dela que provêm os alimentos – plantas, animais e água –, a energia e os minerais utilizados em uma série de aparatos e utensílios que necessitamos para viver. Para ela retornam os resíduos da nossa produção de alimentos e aparatos. E, se tudo corre a seu tempo, esses resíduos transformados voltam a nos prover alimento e energia. Somos também natureza: somos compostos minerais que vêm do solo por meio das plantas ou animais e que se inter-relacionam. Cada elemento químico depende de outro em proporções determinadas para ser absorvido. Nosso corpo, assim como o solo, combina inúmeras formas de vida (bactérias, fungos) em permanente rearranjo em busca de equilíbrio e a temperaturas determinadas (Primavesi, 2019). Somos, portanto, ecodependentes.
Limites biofísicos
Para a economia neoclássica (que orienta as políticas neoliberais) a natureza é considerada um recurso, em geral um recurso inesgotável ou passível de ser destacado do resto e precificado. A economia crítica recupera termos da economia clássica que descrevem a natureza por meio de bens de estoque e bens fluxo.
Bens de estoque são petróleo, gás natural e minerais que foram produzidos ao longo de milhões de anos. Atravessam eras geológicas e possivelmente até mais, passando por tempos em que o planeta Terra nem mesmo estava formado (como nas hipóteses de que jazidas de minerais foram formadas por meteoritos que, vindos do espaço, caíram na Terra).
A industrialização, a urbanização e os meios de transporte utilizam combustíveis fósseis que são finitos – muitos autores, quando relacionam a extração com a disponibilidade de petróleo, situam o pico entre 2015 e 2025. A utilização destes combustíveis libera na atmosfera uma quantidade de gás carbônico superior ao período histórico anterior, causando elevação da temperatura média da Terra. A elevação da temperatura derrete geleiras, muda o regime de ventos e chuvas, eleva o nível do mar e causa variações drásticas, como secas em alguns lugares e tempestades em outros.
Os bens fluxo são cíclicos e renováveis por tempo determinado, ajustado em milhões de anos. Alguns exemplos são a água, a madeira, os alimentos. O problema é que o uso intensivo, a velocidade e a extensão das contaminações impedem que a regeneração aconteça. Assim, um bem renovável se torna escasso. Tudo o que é vivo ocupa um lugar no espaço, transforma bens da natureza utilizando energia para seu sustento e, junto a eles, se autorregula no sentido de um equilíbrio, definindo os limites biofísicos. Só há um planeta Terra.
Chamamos de ecossistemas esse equilíbrio complexo dos seres vivos em um espaço vital, interagindo entre si e com outros fatores como a luz, a temperatura e os ventos. A interferência neste equilíbrio também nos aproxima do limite biofísico. São exemplos disso a redução de espécies pelos monocultivos em áreas de florestas desmatadas e a falta de polinização pela morte de abelhas por agrotóxicos.
O impacto das ações humanas pela emissão de gases que tornam o planeta uma estufa, a modificação das paisagens, a diminuição da produção natural de sedimentos, a acidificação dos oceanos e seus efeitos destrutivos são os casos citados pela Sociedade Geológica de Londres para considerar que vivemos em uma nova época geológica: o Antropoceno (Davis, 2008). A economia crítica nos aponta que a ação humana se dá nos marcos de relações capitalistas que se expandem para todo o planeta, em particular em sua fase conhecida como globalização neoliberal, sendo, portanto, mais preciso nomear a atual época geológica como Capitaloceno. O feminismo inclui como manifestações desta época o genocídio de pessoas e seres, relacionado à simplificação de ecossistemas, cuja drástica manifestação é a “destruição de espaços-tempos de refúgio”, ou seja, a destruição justamente de onde a vida poderia se recompor de ameaças e agressões (Haraway, 2016). Isto tem a ver tanto com as fronteiras que impedem a entrada de pessoas refugiadas de emergências socioclimáticas e conflitos armados como com os desmatamentos e queimadas que privam animais silvestres de seus habitats.
Natureza x cultura
A economia feminista nos pensa como natureza. Pensa como estamos inseridos nela, como a transformamos e somos por ela transformadas em um processo de coevolução. Assim, supera não só ideias de prevalência da cultura e da racionalidade humana sobre a natureza, como a da separação entre natureza e cultura. Como apresenta a arqueóloga que pesquisa sobre relações de gênero Almuneda Hernando (2018), a construção das subjetividades e da cultura material são processos interconectados. A evidência está na coincidência entre áreas de mata preservadas e com grande diversidade onde vivem indígenas, quilombolas, caiçaras e outras comunidades tradicionais. A Terra Preta, solo de grande fertilidade na região Amazônica, coincide com áreas de ocupação indígena. Passaram-se muitos anos até que os estudos deixassem de considerar que esta coincidência fosse provocada pela busca dos indígenas por solos de boa fertilidade para se instalarem, e entendessem que aquele solo era resultado da decomposição de carvão vegetal, cerâmica e matéria orgânica como peixes, conchas, ossos e dejetos humanos (Kämpf e Kern, 2003). Ou seja, a Terra Preta de Índio é o resultado de um manejo de solo e da matéria orgânica realizado por comunidades indígenas desde a época pré-colombiana. Esta referência de um solo antropomórfico também é utilizada para entender o solo fértil e bem estruturado encontrado nos quintais das agricultoras da Zona da Mata de Minas Gerais, resultado da diversidade de plantas e do manejo de matéria orgânica realizado por elas (Oliveira, 2019).
Outro exemplo é a domesticação de espécies e a circulação de espécies e variedades pelo mundo. Nyéleni é uma camponesa mítica do Mali que domesticou o fonio (Digitaria exilis), cereal de alto valor nutricional, base da alimentação local. As variedades guaranis de milho e batata doce acompanham os caminhos de suas viagens entre aldeias em direção à Terra Sem Males.
Mulheres africanas escravizadas nas Américas trouxeram para este continente a cultura de arroz com sementes da variedade conhecida como arroz negro ou arroz africano (Oryza glaberrima), técnicas sofisticadas e variadas de cultivo e de processamento, internacionalizando este alimento. Os conhecimentos especializados da cultura do arroz pertenciam às mulheres africanas que, pilando os grãos no convés dos navios negreiros para que fossem cozidos, escondiam no cabelo sementes, grãos que não descascavam (Henriques, 2018).
Essa recuperação converge com o pensamento de Lélia Gonzalez (1988), quando questionou a imposição da exclusividade do referente branco europeu para nossa vida e subjetividade, e trouxe para o visível toda a influência negra de resistência, na linguagem, na subjetividade e nos modos de ser, formulando a noção de amefricanidade para explicar a formação cultural do continente.
O feminismo busca superar as dicotomias – separações e hierarquias – entre homem/mulher, razão/emoção, cultura/natureza. Ainda assim, o debate entre natureza e cultura mobilizou feministas. Correntes essencialistas, também presentes no ecofeminismo, associam o sexo feminino e a capacidade de reprodução a uma maior proximidade com a natureza. Entre as correntes que analisam a construção social de gênero, há também aquelas que tendem a um “hiperconstrutivismo”, que pode se expressar pela construção de uma nova matéria ou corpo sexuado graças à cultura expressa na ciência e na tecnologia médico-farmacêutica.
Segue, portanto, o desafio de não separar a humanidade da natureza, nem identificar humanidade e natureza. Ainda que a natureza proporcione os recursos materiais que mantêm a vida humana, a cultura não é totalmente determinada pela natureza nem necessita subsumir toda a natureza para se manter (Foster, 2015). A natureza está constituída pela cultura humana, mas os processos naturais podem continuar sem interação humana. Embora não seja possível pensar em humanidade sem o planeta Terra, ele em boa parte de sua história não era habitado por seres humanos.
Metabolismo socioeconômico, falha e restauração metabólica
Esse debate continua no entendimento sobre as interações entre humanidade e natureza para a reprodução da vida. A economia crítica marxista nomeia as interações que transformam energia e materiais necessários para nossa existência como “metabolismo universal da natureza”, “metabolismo social”, “metabolismo socioeconômico”. Metabolismo é o conjunto de transformações pelas quais passam as substâncias que constituem um organismo vivo: reações de síntese (anabolismo) e reações de desassimilação (catabolismo) que liberam energia. Reações metabólicas fazem com que transformemos alimentos em proteínas que constroem nosso corpo (músculos, ossos, sangue) e que sejam quebradas as cadeias de gorduras e açúcares que nos dão energia para atividades vitais como a respiração e a circulação sanguínea.
Este metabolismo individual endossomático (que acontece dentro do corpo de cada pessoa) não é somente natureza, pois aos requerimentos nutricionais de nosso corpo respondemos com uma dieta alimentar socialmente construída. O que gostamos e/ou temos acesso para comer remete a memórias e regras coletivas. Isso sem contar todo o trabalho e conhecimento envolvidos na produção, preparação dos alimentos e na reciclagem dos resíduos, que acontecem, em boa parte, nos espaços domésticos e de cuidados e nas comunidades (Carrasco e Tello, 2012). Mas, em nossas atividades diárias, cada vez mais dependemos de energias externas ao nosso corpo, como a eletricidade e os transportes em veículos automotores, em um metabolismo exossomático. O metabolismo exossomático tem medidas espaciais, como a pegada ecológica (footprint) que demonstra que países do Norte, ricos e homens devem ter maiores responsabilidades na restauração ecológica e reparação de povos colonizados. A distribuição desigual do tempo entre mulheres e homens demonstra as formas de apropriação da energia fisiológica e endossomática em um contexto de relações de poder injustas (Salleh, 2009).
O termo metabolismo acentua o olhar desde a biofísica para processos sociais, descrevendo como os fluxos de materiais, energia e informação se produzem entre natureza e sociedade e entre diferentes sociedades em um uma forma cultural específica.
Marx descreve o intercâmbio entre sociedade e natureza no capitalismo como uma falha metabólica (Foster, 2015). Ele formulou o problema ao observar a crise de fertilidade dos solos que assolou a Europa em meados do século XIX. O início da agricultura industrial correspondeu ao aumento do número de pessoas vivendo na cidade (urbanização), à separação entre campo e cidade e a uma ampla industrialização. A escala da agricultura aumentou pela amplitude espacial e pela intensidade no tempo, reduzindo ou acabando com a prática do pousio (descanso das terras).
O fato dos alimentos terem que ser transportados para a cidade fez com que seus resíduos se acumulassem ali sem uso, interrompendo a dinâmica de compostagem de resíduos dos alimentos preparados ou não usados. Rompeu-se a ciclagem de nutrientes, ou seja, a troca contínua que se manifesta em uma interdependência dinâmica entre plantas e solo. As tentativas de manejar a fertilidade passaram pela importação de matéria orgânica vinda cada vez mais de longe. É exemplo disso o guano (fertilizante proveniente de excrementos de aves marinhas) extraído, em sua maioria, de ilhas do Peru e comercializado pelo Império Britânico. A visão do químico Justus von Liebig, que descreveu aquela forma de agricultura como um roubo, contribuiu para as reflexões de Marx. Apesar de Liebig considerar a fertilidade combinando a disponibilidade de matéria orgânica e minerais, prevaleceu o foco na disponibilidade de nutrientes minerais. A Lei de Liebig de que o desenvolvimento de uma planta está relacionado ao mineral que mais falta está até hoje na base da agricultura industrial e nas recomendações de adubação.
Marx também se interessou por outras formas de pensar a fertilidade do solo, como estudos sobre a agricultura de aluvião, realizada nas várzeas e beiras de cursos da água beneficiando-se da matéria orgânica transportada (Saito, 2016). Em sua juventude, preocupou-se com a proibição e a dura repressão às pessoas pobres que coletavam lenha, folhas e frutos silvestres em áreas comuns que foram cercadas e privatizadas. Também se atentou ao desmatamento para utilização da madeira como fonte de energia nas fábricas e locomotivas. Todas as reflexões remetem a trocas desiguais dentro das sociedades e entre sociedade e natureza.
O horizonte do socialismo aponta para produtores associados que regulam o metabolismo sociedade-natureza por meio da restauração de um metabolismo social não alienado – a “restauração metabólica”. Feministas ecossocialistas resgatam, no entanto, que, no presente e ao longo do tempo, mulheres, indígenas e comunidades tradicionais que manejam agricultura, pesca e coleta já catalisam ciclos de matéria e energia em processos de regeneração metabólica. Lidam com as necessidades criando sinergias, trocam o risco pela precaução e preferem a saúde e a sustentabilidade ao que é chamado de “desenvolvimento” (Salleh, 2009).
Debates sobre valor
As atualizações da teoria marxista têm ao menos dois pontos de partida: natureza integrada ao circuito da mercadoria pelo capital e natureza como uma riqueza em si mesma. Este debate se expressa na questão do valor. As interpretações clássicas de Marx do valor trabalho consideram que a natureza só adquire valor quando transformada pelo trabalho humano, entrando no circuito da mercadoria. A renda diferencial da terra, por exemplo, só opera graças à recuperação da fertilidade ou à criação de infraestruturas, e mesmo as formas abstratas de financeirização da natureza necessitam de uma mediação humana pela transformação de processos naturais em métricas (cálculos de absorção de carbono e equivalências negociadas na bolsa). O valor de uso só tem sentido como pré-condição para o valor de troca. A questão ecológica só é considerada pela economia quando há preocupação com o fim da energia e materiais baratos, considerados “dádivas” pela economia clássica ou “externalidade” pela neoclássica, e assim impõe crises de valorização da mercadoria.
O capitalismo se apropria e subsome a natureza. Para o capital, a natureza não existe como uma realidade em si mesma (como um referente ontológico) e os ciclos e processo naturais não são vistos como relativamente autônomos. Portanto, não faz sentido nos referirmos a um conflito capital x natureza. As visões que serão abaixo descritas pensam a natureza também (mas não só) como independente da sociedade e da cultura, e são consideradas dualistas.
Outra vertente se apoia na contribuição de Marx que separa a riqueza materializada no valor de uso e o processo capitalista de valor de troca com trabalho abstrato. Este pensamento faz sentido se consideramos que o capitalismo e sua forma mercadoria são hegemônicos, mas não totalizantes nas relações econômicas. Assim, é possível pensar que algo tem valor independentemente do circuito mercadoria e, inclusive, pode estar em resistência a essa forma.
Marx “distinguiu entre riqueza real composta por valores de uso, representando o que chamou de ‘forma natural’ na produção e valor/valor de troca, ou seja, a ‘forma de valor’ associada à produção especificamente capitalista. (...) A forma natural representa a ‘forma tangível e sensível da existência’, envolvendo propriedades materiais e técnicas naturais e constituindo riqueza real” (Foster e Burkett, 2018, tradução nossa).
Desta forma, a falha metabólica refere-se à contradição entre a forma natural/valor de uso e forma valor/valor de troca que passa a dominar a forma natural da produção de mercadorias, já que o capitalismo é um sistema de dominação. A universalização do valor capitalista pressupõe não só uma alienação do trabalho (trabalho abstrato incorporado no valor de troca), mas uma alienação da natureza – ambos perdem sentido para serem incorporados de forma abstrata na forma mercadoria.
Reconhecer a riqueza para além da forma mercadoria nos permite entender que a natureza, assim como o trabalho, está na base de toda riqueza. Em termos do debate político, isso se expressa, por exemplo, em propostas que reconhecem direitos à natureza.
Os debates sobre valor abrem outras possibilidades para pensar o trabalho doméstico. Feministas marxistas desde os anos 1960 buscavam entender o trabalho doméstico no circuito da mercadoria, de formação do valor de troca, ou seja, pela redução do custo da força de trabalho na produção de mais valia. O trabalho doméstico é também extraído pelo capital, que diminui os custos de reprodução de sua força de trabalho. Um dilema desse debate é a concretização do tempo socialmente necessário para a reprodução da força de trabalho. Fatores objetivos e subjetivos implicam variações de tempo em atividades concretas, como no preparo de uma refeição. A economista feminista Antonella Picchio (2012) demonstra que o trabalho doméstico e de cuidado, que ela denomina como reprodução, não pode ser analisado simplesmente transpondo conceitos da análise da produção. Ela destaca que esse trabalho amplia o salário real em consumo real, expande o nível de vida em forma de uma condição de bem-estar efetiva, nos fazendo sentir humanos em um sistema que nos trata como mercadoria. Isso se expressa, por exemplo, no afeto que pode estar contido no preparo de refeições e que pode implicar enormes variações de tempo de preparo.
As pesquisas sobre o uso do tempo contribuem para demonstrar a sobrecarga de trabalho das mulheres e a injusta distribuição dos afazeres domésticos. No entanto, o debate sobre cuidados levantou novas questões sobre os usos do tempo, resgatando que a distribuição desigual das responsabilidades se expressa em uma disponibilidade permanente das mulheres em relação ao cuidado do outro, muitas vezes como obrigação e sem reciprocidade. A tensão entre as lógicas temporais da produção e da vida são sentidas e absorvidas pelas mulheres em seus corpos.
A agroecologia que valoriza a experimentação e a observação como práticas necessárias à construção do conhecimento também levanta questões. Não é possível separar os tempos de contemplação e respiro dos afazeres da observação que permite constatar a necessidade de um manejo. Mais uma vez a riqueza não necessita ser mensurada nos tempos e termos do circuito da mercadoria.
Troca ecológica desigual e imperialismo ecológico
A extração do guano no Peru para recuperar a fertilidade dos solos não só criou mais um circuito colonial de expropriação da Europa nos países do sul, mas deu início ao imperialismo americano. Em 1856, o Congresso estadunidense promulgou a lei que permitiu a seus cidadãos se apossarem de ilhas que tivessem depósitos de guano em nome do Estados Unidos. A troca desigual entre sociedades e entre sociedades e natureza se amplia e inclui progressivamente todo o planeta.
A ecossocialista e feminista australiana Ariel Salleh (2009) sistematiza a atuação de povos e movimentos que questionam a dívida como sistema de controle sobre nações, povos e pessoas. Segundo ela, o capitalismo colonialista e patriarcal é devedor de dívidas social, ecológica e corporificada.
Trabalhadoras e trabalhadores são credores da dívida social que os capitalistas têm com eles por meio da extração da mais valia. Mulheres e homens que foram sequestrados e escravizados criaram, com seu trabalho, riquezas que estão na origem de bens e patrimônios de muitas empresas capitalistas e famílias ricas. Elas são credoras desta dívida histórica que se renova em situações de conflitos armados, refúgio e imigração sem documentos.
Mulheres e homens de povos do sul e povos autóctones de todo o planeta são credores de uma dívida ecológica pela extração direta da natureza e pela destruição de seus meios de vida. Mulheres são credoras de uma dívida corporificada pela extração do trabalho reprodutivo não remunerado, que produz valores de uso e força de trabalho da qual se beneficiam os homens como grupo social, as empresas e o Estado. A energia dispendida pelas mulheres é apropriada à custa de seu bem-estar físico e psíquico, levado muitas vezes à exaustão.
A percepção sobre quem são os reais credores permite situar as mulheres como agentes econômicos, já que uma das operações de ilusão do capital é a separação artificial entre o social (pobreza, reprodução, mulheres) e o econômico (finanças, investimento). As políticas sociais (como saúde e educação), recortadas pelas políticas de ajuste estrutural para a manutenção do pagamento da dívida, podem ser vistas como parte de uma reciprocidade à invisível contribuição econômica das mulheres na reprodução da vida.
Como se pode pagar a dívida com as mulheres? Trata-se de transferir recursos monetários para elas, mudar a estrutura de propriedade de modo a que haja mais mulheres proprietárias? Ou o caminho é priorizar a vida como eixo da economia, o que supõe alterar, transformar o esquema capitalista e seus pilares, entre eles precisamente a propriedade? (León, 2010)
A percepção de quem é credor e devedor expande as formas de olhar para a economia para além do circuito de valorização do capital na forma valor de troca. Assim, percebemos que as mulheres, os povos e as comunidades tradicionais detêm conhecimentos relacionados ao cuidado e a natureza que produzem valor de uso e riqueza.
Corpo-território
Silvia Federici (2020) mostra como os corpos das mulheres foram expropriados em uma violenta política sexual e reprodutiva, e submetidos para a reorganização do trabalho, remunerado e não remunerado. Trata-se de um processo articulado à colonização e escravidão, ao cercamento de terras e à conversão de homens e mulheres despossuídos em força de trabalho assalariado. Todos esses processos formam alicerces do capitalismo, atualizados nas dinâmicas de expansão do capital, ameaçando e atacando a vida ao colocá-la como meio para a acumulação.
A sustentabilidade da vida como aposta política necessariamente antissistêmica apresenta questionamentos em torno de quais vidas estamos falando. Nas palavras de Amaia Pérez Orozco (2014, p. 245), a sustentabilidade da vida não se refere a uma mera reedição de vidas sempre iguais, planas e estáticas, mas à regeneração constante de condições que tornem possível uma vida que valha a pena, que carregue em si mesma a possibilidade de mudança, de criação, de descobrimento.
Aterrissamos nossa análise nos corpos: na crítica aos mecanismos de subjugação e controle e, ao mesmo tempo, na capacidade de resistência e reconstrução dos corpos em movimento.
O desafio para o feminismo é não isolar nossas lutas por autonomia e autodeterminação dos corpos das demais. As mulheres latino-americanas, especialmente indígenas, ao colocar seus corpos nas lutas contra a expansão do capital sobre seus territórios – barrando projetos de hidroelétricas, mineração ou o agronegócio –, construíram uma síntese política importante: os corpos são o primeiro território a ser defendido. Em luta, afirmam que somos nosso corpo e somos natureza.
Politizar os corpos como territórios a serem defendidos é enfrentar a lógica dicotômica do pensamento ocidental, androcêntrico e branco, que separa a mente do corpo. Superar essa dualidade passa pela afirmação de que somos inteiras, com emoções, razões, carne e osso, sem fragmentar nossa existência. Somos resultados da coevolução entre práticas históricas de muitas gerações e povos, da natureza e de territórios concretos.
Apropriação e dominação
A dominação dos corpos das mulheres pela violência do capital e pela violação colonial se apoiou na visão cristã de dualidade entre o espírito e o corpo, que impõe a domesticação/repressão dos corpos para salvar os espíritos. As divisões sexual e racista do trabalho se articulam no disciplinamento dos corpos das mulheres para o trabalho. Nas empresas e fábricas, habilidades socialmente adquiridas, como a coordenação motora fina, não são reconhecidas como qualificação. O ideal de fragilidade de mulheres brancas burguesas se contrapõe à experiência corporal de esforço e resistência das mulheres trabalhadoras. A força é historicamente utilizada contra as mulheres negras para impor ainda mais violência e para negar cuidados, como no parto.
As vidas/os corpos, convertidos em meio para a produção de riqueza apropriada pelo capital, veem sua relação com o tempo e a natureza se transformar. Em rotinas de trabalho intensas e extensas, perdem a referência na posição do sol e passam a olhar para o relógio. Passam a ser regidos pelo tempo do capital, regulados pelo horário de trabalho, por sirenes nas fábricas, notificações nos aplicativos. Trabalhos repetitivos e rotinas aceleradas atrofiam partes do corpo, por vezes redescobertas por tecnologias biomédicas quando o corpo “falha” para o capital.
A instalação da dominação e da subjugação dos corpos nega os conhecimentos e práticas populares, e tem como ferramentas a perseguição e a criminalização. A escravidão é uma experiência violenta e profunda que deixa marcas no corpo por gerações – ainda mais porque estas marcas são revividas na atualidade do racismo de cada dia. A memória do navio negreiro dá sensação de asfixia e se repete na condução lotada. A repressão à postura altiva de quem encara e olha nos olhos do capataz e da polícia na blitz. O corpo liberto no improviso da capoeira logo criminalizada com um capítulo próprio no Código Penal de 1890 (dos vadios e capoeiras: “fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem”). A capoeira que foi crime até 1937 e ainda enfrenta o ódio, como demonstrou o assassinato de Mestre Moa de Katendê em 2018, e é um lugar que as mulheres vão ocupando mais e mais, abrindo as manifestações de mulheres negras e feministas.
Mercantilização dos corpos 4.0
São muitas as formas de regular os corpos das mulheres, pelos julgamentos morais que ensinam repressões, por legislações que criminalizam práticas de autonomia como o aborto, por padrões que geram incômodos e sentimentos de inadequação. “Somos mulheres e não mercadoria” foi a palavra de ordem construída pelas militantes da Marcha Mundial das Mulheres em plena luta contra o neoliberalismo e os tratados de livre comércio. Esta agenda de luta ampliou a crítica à permanente disponibilidade dos corpos das mulheres para os homens e as formas como as empresas de comunicação hegemônicas, as de cosméticos e as farmacêuticas impulsionam padrões de beleza inatingíveis.
Esses mecanismos são hoje atualizados. Nossa presença no mundo e nossas relações são cada vez mais mediadas pelo digital, que renova as disputas em torno das nossas vidas, dos nossos corpos e das condições para a superação do capitalismo. A tecnologia é apresentada como se fosse neutra, fetichizada como se não fosse produto de relações sociais, vendida pelos seus usos e facilidades no cotidiano, provocando frequentemente a questão “como vivíamos antes da internet?”. Consequentemente, acelera o esquecimento das práticas que nos trouxeram até aqui. A pesquisadora Shoshana Zuboff (2018) mostra como a constituição de uma esfera individual em rede no neoliberalismo e a legitimação de necessidades subjetivas socialmente construídas são processos que aceleram a penetração da internet em todas as dimensões da vida.
Nosso cotidiano passa a ser uma fonte fundamental de produção de dados que alimentam a acumulação do capitalismo digital. Delegar para os outros o poder sobre nossas vidas, nossos corpos e nossa privacidade carrega em si uma dinâmica de expropriação e de apropriação. Os termos de consentimento que precisam ser aceitos para acessar as redes sociais e as bulas de medicamentos são todos elaborados para que ninguém leia, para manter a opacidade das tecnologias proprietárias e esconder efeitos colaterais que nos mantém doentes e sob controle.
A mediação das tecnologias digitais vai reconfigurando as fronteiras do público e do privado. Mas elas continuam existindo, e a lógica de ocultar e invisibilizar não se altera: o que se mostra e o que se esconde, a forma como funcionam os algoritmos de redes sociais cada vez mais baseadas em imagens. Os pratos de comidas são mostrados, a louça suja não é. Os pais postam fotos dos momentos de lazer com as crianças, as mães seguem sobrecarregadas com o cotidiano do conjunto das tarefas que tornam estes momentos possíveis. Cada vez mais, as pessoas estão em busca da selfie perfeita, e das curtidas que são consideradas indicadores de aceitação. Tudo isso acontece em plataformas que tem donos, como é o caso do Instagram, que é do Facebook.
O feminismo que outrora questionou o uso de programas que alteravam a imagem real das mulheres nas propagandas (apagando rugas, celulites e modificando as medidas dos corpos, produzindo padrões inatingíveis), hoje, enfrenta a naturalização dessas modificações nas imagens pelos filtros dos telefones e das redes sociais. Esse é apenas um exemplo de como as aparências são modificadas com um clique, apagando o que se entende como imperfeição, reduzindo medidas do rosto, destacando expressões ou mesmo clareando a pele, um reflexo direto do racismo. As consequências se expressam na autopercepção que as mulheres de todas as idades têm sobre o corpo. Os distúrbios alimentares continuam fazendo muitas vítimas em todo o mundo, principalmente entre mulheres jovens.
Biomedicalização
A lógica dos filtros é de que nossa imagem pode ser melhorada, e é a mesma lógica da biomedicina e da indústria farmacêutica. É a visão do corpo como soma de várias partes fragmentadas, que, com a ajuda das tecnologias biomédicas, podem ter seu desempenho melhorado. Nesse sentido, os processos do corpo das mulheres, como a menstruação, foram medicalizados e, com isso, cada vez mais os conhecimentos sobre o corpo são expropriados das mulheres.
A médica feminista Ana Cristina Pimentel (2016) mostra como os hormônios são vendidos não apenas para a contracepção, mas também para outras finalidades, como regular a ansiedade e a depressão e até melhorar a aparência da pele e dos cabelos. Ela questiona, ainda, que a indústria dos hormônios e da contracepção reforça e legitima a padronização heteronormativa da sexualidade, reforçando a responsabilização das mulheres pelo controle da reprodução.
Há alguns anos atrás, a Fundação Bill e Melinda Gates investiu em uma empresa que estaria desenvolvendo microchips anticoncepcionais. Simultaneamente, também investiu em uma iniciativa para ampliar o acesso a implantes contraceptivos das mulheres de países da África. As mulheres seguem sendo cobaias de experimentos neocolonialistas e racistas do mercado, como foram tantas vezes nas políticas realizadas em nome do controle populacional.
Uma análise recente mostrou um crescimento no uso de aplicativos que prometem melhorar a saúde mental, além dos aplicativos de controle dos ciclos menstruais, que reforçam a lógica de que os hormônios explicam todas as sensações e comportamentos das mulheres (SOF, 2016). Capturam dados sobre o sono, a chamada libido, as sensações e/ou atividade sexual. O corpo fragmentado, doente, desconhecido, dissociado da nossa razão, é alvo de um complexo biomédico-farmacêutico. O corpo das mulheres, particularmente, é “maleável, um corpo aberto ou uma virtualidade de outros infinitos corpos, que podem apresentar um maior desempenho” (Pimentel, 2016, p.16). Questionamos a visão de que nossos corpos possam ser “reprogramados” e “melhorados”, assim como questionamos a visão que impõe o desenvolvimentismo e progresso baseado na produtividade e na destruição.
As drogas reguladas pelo mercado, vendidas livremente em farmácias, prometem aliviar dores e ansiedade, a falta de sono e demais sofrimentos produzidos por um sistema que se alimenta pelo ritmo frenético da exploração. A hipocrisia das drogas permitidas, frente às substâncias criminalizadas, alimenta o encarceramento em massa, justificado pela chamada guerra às drogas, que criminaliza vidas negras e pobres. Nas prisões superlotadas, o uso de psicotrópicos – por vezes impostos e sem diagnóstico – é uma estratégia de gestão e controle dos corpos, conforme mostram os estudos de Fábio Mallart (2016) sobre a medicalização nos circuitos entre cárcere, periferias e equipamentos públicos e privados de saúde e assistência.
Nesta sociedade em que a ansiedade e a depressão são uma realidade crescente, o poder biomédico se apresenta como provedor das (falsas) soluções. As pílulas, os hormônios e cirurgias são oferecidas como soluções fáceis e rápidas para acabar com o sofrimento e com os desencontros entre nós e o mundo, entre gênero atribuído e o corpo, entre nós e nosso corpo.
Quando o corpo que habitamos não é a norma do bonito, do desejável ou do adequado, viver este corpo de outra maneira é um ato político. Por isso, para as mulheres negras, recriar a relação com seu corpo é tão forte e é parte de um processo coletivo de resistência: é descobrir a si mesma e sentir-se parte de uma ancestralidade (uma história que vem de longe, sempre resistindo a ser ocultada), de uma comunidade que tenta responder coletivamente como é tocar a vida em uma sociedade que não nos quer plenamente vivas. No corpo das mulheres, está inscrita a postura dos trabalhos que lhe foram impostos. É o trabalho de carregar o máximo de peso e fazer o máximo esforço, do trabalho de limpar e servir – em silêncio, sendo invisíveis. E está, também, a marca das agressões sexuais dos senhores e dos patrões. Tudo isso é uma “herança que nos ensinou a temer nossa beleza, nosso corpo e a própria condição de mulher” (Pereira, 2019, p. 66).
Nesse caminho, está o desafio de questionar e transformar a dinâmica da vida e as relações sociais que provocam sofrimentos e inadequações. E, mais do que isso, reconstruir relações e comunidades em que caibam todos os corpos, respeitados em sua diversidade, singularidade e interdependência, cuidados em sua vulnerabilidade, que é condição humana.
Artificialização da vida
No lucro proporcionado pela produção social de dor e sofrimentos, de doenças pela contaminação dos nossos corpos e territórios pelos agrotóxicos e transgênicos, o complexo biomédico-farmacêutico e o agronegócio são aliados estratégicos, e cada vez mais se fusionam (como a empresa transnacional Bayer-Monsanto).
Esses setores convergem no impulso e uso de biotecnologias digitais. O grupo ETC formula, em torno da sigla DAMP (dados, automatização, moléculas, planeta), uma análise que nos ajuda a compreender essas dinâmicas de avanço do capitalismo sobre os corpos e territórios (Ribeiro e Thomas, 2019). A manipulação da vida pela biologia sintética segue a perspectiva de fragmentação, impulsionando uma visão de que a vida, desde os genes até os ecossistemas, pode ser reduzida a dados digitais, reprogramados/remodelados em escalas extremas. Silvia Federici (2020, p.122) amplia a crítica aos computadores e códigos genéticos como modelos atuais para nossos corpos, porque estes modelos elaboram “um corpo desmaterializado e desagregado, imaginado como um conglomerado de células e genes, cada um com seu próprio programa, despreocupado com o resto e o bem do corpo como um todo”. Enquanto o capital converge na busca de controle total da vida, também promove a fragmentação e o individualismo. Nesse sentido, a ecodependência e a interdependência vão sendo negadas ideológica e materialmente.
A lógica de propriedade intelectual é vital para essas indústrias. Acompanhando os registros de patentes, é possível ver o alcance dos planos de expansão de domínio e controle das corporações sobre a vida, em busca do lucro. Recentemente, a Microsoft registrou uma patente de um sistema de criptomoedas que utiliza dados de atividade corporal (calor corporal ou onda cerebral). Os dados gerados pelo funcionamento do corpo seriam utilizados para validar uma transação em um sistema blockchain.
Temos insistido em revelar que o digital tem uma base material, conformada pelo trabalho humano que produz os aparatos tecnológicos, pela exploração de minerais como lítio e coltan (que viabilizam as baterias), pela energia consumida a cada e-mail enviado ou pela energia necessária para manter latifúndios de servidores com capacidade de armazenamento e processamento dos dados produzidos pelas vidas corporificadas e em relação no cotidiano. Os dados não estão prontos para serem coletados: dependem da atividade humana que, nesse sistema, acontece com base na exploração e na alienação.
A privação de contato humano que as pessoas estão experimentando na situação de emergência provocada pela pandemia da covid-19 mostra como o digital não dá conta de suprir o que o contato e a vida em comum propiciam. E as experiências das mulheres com os processos e trabalhos que garantem a sustentabilidade da vida mostram que nem tudo pode ser mercantilizado nem digitalizado. Uma parte significativa dos cuidados demandam uma interação face a face, presencial, inviabilizando o “telecuidado” ou a robótica.
A artificialização da vida, dos processos dos corpos, a tentativa de produzir ecossistemas em laboratórios agudizam o conflito do capital contra a sustentabilidade da vida. O corpo, assim como a natureza, se coloca como um limite para a exploração, esse limite que o capital se esforça para superar (Federici, 2020).
Corpos em resistência para recuperar os tempos da vida
A economia feminista mostra como as mulheres vivenciam, em seus corpos, os ajustes entre a lógica temporal do capital e a lógica da sustentabilidade da vida. Reorganizar a economia tendo os tempos da vida como referência é uma aposta da economia feminista e ecológica.
O corpo resiste aos tempos do mercado. É preciso recuperar as memórias que marcam os corpos, individual e coletivamente, ouvir suas histórias, reaprender a ouvir o corpo. Recuperar os tempos da vida se relaciona com a reconexão com os processos do nosso corpo sem a mediação do mercado capitalista, desde o ato de ser consciente da respiração, a percepção dos ritmos e sons da vida nos ambientes em que vivemos, a desalienação da nossa relação com os alimentos, a superação da dualidade entre corpo e mente. Como reflete a educadora popular Llanisca Lugo (2020), compreender a complexidade da subjetividade do povo, “interpretar suas fidelidades e seus dissensos, seu cansaço dentro de sua resistência, sua esperança em meio ao drama cotidiano, sua diversidade de leituras, sua raiva, seu perdão, sua incerteza e sua dignidade” é um desafio atual da revolução cubana, e pode iluminar os desafios em outras partes do mundo.
Os tempos da luta enfrentam e rompem com a lógica de aceleração do mercado capitalista. Na construção da Marcha Mundial das Mulheres, aprendemos com as zapatistas que o ritmo da marcha é o de quem vai mais lento, sem deixar ninguém no caminho, pois juntas é possível irmos mais longe. Nas metodologias feministas de educação popular, as dinâmicas têm por objetivo nos fazer presente, inteiras, no processo coletivo de formação, onde perceber o próprio corpo e construir confiança no coletivo são conquistas que se articulam.49
Recuperar os tempos da vida exige abrir caminho para os tempos da regeneração da natureza, os tempos de cura do corpo e os tempos do luto das que perdem seus filhos, companheiros, irmãos. Exige interromper a destruição da natureza e o genocídio do povo negro e indígena
Os percursos da reconexão com o corpo e a história são percorridos em movimento. Uma jovem negra, militante da Marcha Mundial das Mulheres no Ceará, relembra que o impacto de sua participação na Ação Internacional em 2010 foi que, ao voltar, parou de alisar o cabelo. Esse é um processo que também tem um tempo de transição, conforme registra esse outro relato:
Parei de passar química no cabelo. Pensei que tivesse uns cachos para baixo, mas não. Ele cresceu como um girassol em volta do meu rosto. Que delícia me reencontrar. Amar o que eu vejo no espelho. E começar a amar também o que via dentro de mim. A nova história que estava construindo (Da Silva, 2019, p. 83).
A economia feminista e ecológica, construída por sujeitos coletivos em luta, também amplia consciência, de forma sistêmica e integral. Possibilita romper com os padrões de beleza, mas também com a alienação da relação com a comida, que não é uma soma de calorias e outros nutrientes encontrados no rótulo dos alimentos ultraprocessados. Impulsionada pelas lutas por soberania alimentar, no campo e também na cidade, o alimento passa a ser visto como parte de um ecossistema, fruto do trabalho humano, com seus tempos e lógicas próprias. Também o trabalho doméstico e de cuidado tem uma lógica e um tempo próprios, essenciais para a sustentabilidade da vida. Este trabalho não pode ser simplesmente negado e externalizado; precisa, isso sim, ser reorganizado, redistribuído, coletivizado. No mesmo sentido, as máquinas e tecnologias não poder ser simplesmente negadas, e sim disputadas, com a construção de alternativas, como redes autônomas de comunicação, software livres, máquinas agrícolas apropriadas para o cultivo agroecológico e comum.
Nas avaliações de momentos nacionais de ação política feminista, é comum que as militantes da Marcha Mundial das Mulheres identifiquem estes espaços como experiências de liberdade, onde descobrem possibilidades do corpo e da sexualidade. E o sujeito coletivo é fundamental para isso, construindo de forma conjunta a política, as tarefas, as músicas e as festas. A potência de ocupar as ruas com a batucada feminista, de encontrar juntas o ritmo da luta, com instrumentos que, tocados sozinhos, não tem nenhum sentido, e o encerramento das manifestações em cirandas enormes... Essas práticas fazem parte da rebeldia e da alegria de corpos em luta. Não à toa, Emma Goldman (1869-1940) cunhou essa frase, até hoje muito reproduzida por tantas mulheres em luta: “se não posso dançar, não é minha revolução”.