Celebrando a vida, a obra e o feminismo de Maria Mies
Um trecho da sua autobiografia traduzido para vocês em seu aniversário de morte
Hoje, 15 de maio de 2023, marca um ano da morte de Maria Mies (1931 - 2023). Como forma de celebrar sua vida, sua obra e sua radicalidade feminista socialista, trago para vocês um trecho retirado do Epílogo da sua autobiografia, escrita em 2008 e publicada em inglês em 2010, The Village and The World: My Life, Our Times (“A vila e o mundo: minha vida, nossos tempos”).
Esse é seu último livro, que Mies decide escrever não muito tempo depois de descobrir que seu cérebro estava com diversas marcas de células mortas. No mesmo período, ela estava lidando com uma dificuldade imensa de ter qualquer perspectiva positiva acerca dos acontecimentos do mundo após a pesquisa para escrita de sua última obra teórica, publicada em alemão em 2004, Krieg ohne Grenzen (“Guerra ilimitada”). Em suas palavras (p. 300):
Desde que trabalhei no meu último livro War Unlimited (Krieg ohne Grenzen, 2004), no qual eu examinei a correlação entre globalização e guerra, ficou exponencialmente mais difícil para mim ter uma perspectiva positiva. Especialmente ao passo que as observações que fiz em 2004 tinham se tornado mais e mais uma realidade: guerra ilimitada dentro e fora, contra humanos, natureza e contra a vida como tal, e a transformação de tudo em commodities para servir Deus Capital. Onde encontrar confiança frente à destruição de tudo que vive? Trabalhar nesse livro de guerra foi demais: eu adoeci.
Há algum tempo descobri que a realidade é adoecedora, e que ter um forte senso dela é desesperador em um mundo de faz de conta; talvez por isso cada vez mais cada vez mais pessoas buscam formas de fugir da realidade, negando-a veementemente. Nos livramos do “until we make it” e retemos o “let’s fake it” (fazendo alusão ao jargão let’s fake until we make it ou “vamos fingir até conseguir”).
No início do prólogo para a edição australiana, escrito dois anos após a publicação do título original em alemão, Maria não nega a falta de confiança no futuro, ou seja, sua percepção de que estamos cada vez mais distantes de uma boa vida, ou, para os que falam de Abya Yala, sumak kawsay.
No entanto, as alterações climáticas se tornaram exponencialmente evidentes — e com consequências reais bastante consideráveis. Dois acontecimentos são marcantes para Maria nesse sentido, o terremoto no Chile em fevereiro de 2010 e o ciclone Xynthia, que atingiu a Europa, incluindo a Alemanha, no mesmo período. A revolta organizada com potência transformadora haveria de se fortalecer. É quando ela decide, finalmente, por escrever o prólogo.
Quatro anos depois, em 2014, Mies participa da Conferência de Jineolojî realizada em Colônia e, acredito eu, reencontra alguma confiança no futuro, corporificada em uma guerrilha de mulheres buscando a construção de uma boa vida com base em uma outra filosofia, mesmo em meio a uma terra devastada porque, como Maria Mies observou, “quando as guerras são levadas adiante pelos homens contra a natureza e contra os povos estrangeiros, são as mulheres que limpam a bagunça. Ainda, nós precisamos não apenas garantir que a vida continue depois de uma guerra patriarcal, nós temos que lutar para que a guerra não aconteça nunca mais” (2010, p.58).
Mais do que nunca, em meio à guerra ilimitada e à incisiva contra os povos e contra os corpos das mulheres, das palestinas às yanomamis, Maria Mies vive. Viva Maria!
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Epílogo: A boa vida
Quando Susan Hawthorne e Renate Klein me perguntaram se eu gostaria de escrever um Epílogo para a história da minha vida e nossos tempos, eu hesitei em um primeiro momento. O que eu poderia escrever? Desde que eu terminei meu livro em 2008, o mundo não ficou um lugar melhor, muito pelo contrário.
Uma crise sucedeu a outra: a crise da fome, a crise do petróleo, a crise financeira dos Estados Unidos, a quebra dos maiores bancos seguida de uma crise econômica mundial, terremotos e outras catástrofes em todos os lugares, assim como uma série de guerras ilimitadas. De repente, a pobreza se tornou uma realidade para muitos, inclusive nos países ricos. Aos poucos, as pessoas começaram a perceber que a vida não podia continuar como eles a conheciam até agora. Já em 2003, Richard Heinberg disse isso em seu livro The Party Is Over: Oil, Wars and The Fate of Industrial Societies. Muitos esperavam que após os governos gastarem bilhões de dólares e euros para salvar os grandes bancos, as coisas voltariam ao “normal”, e algumas mudanças seriam feitas para que tal crise nunca acontecesse de novo. Mas eles se viram traídos. Os bancos continuaram com os “negócios como de costume”, o crescimento de dinheiro e capital continuaram como seu único objetivo. As regulamentações são poucas e estão aquém.
Não apenas para os pobres, mas até mesmo para aqueles que até então haviam se beneficiado do sistema capitalista global, a vida não continuou tão “suave” quanto era antes. Muitos cometeram suicídio quando perderam seus empregos. Nos países ricos, a depressão se tornou uma doença comum. No Japão, por exemplo, mais e mais gerentes de grandes corporações sofrem de burnout por condições desumanas e stress constante. Eles chamam isso de “karoshi”. Eles não são mais capazes de trabalhar e apoiar suas famílias. Todo o modelo da “vida boa” propagado pelos países industrializados - o modelo supermercado, como eu chamo - parece estar desmoronando diante dos nossos olhos. Esse modelo até o momento significou mais e mais dinheiro, mais bens, mais e mais carros caros, maiores e mais luxuosas casas, e supermercados repletos de bens de consumo do mundo todo. As pessoas pensaram que suas crianças também poderiam desfrutar dessa “boa vida” para sempre, o principal motivo pelos quais elas trabalharam tanto, sofreram tanto stress e tentaram alcançar os padrões daqueles “no topo”. “Nossas crianças devem ter uma vida melhor” era - e ainda é - a principal justificativa para tolerar todos os sacrifícios.
À parte disso, nós sabemos há algum tempo que o estilo de vida dos nossos países não apenas destrói a natureza, a base para toda a vida no planeta, Mãe Terra. Muitas pessoas ao redor do mundo, inclusive nos EUA, começaram a questionar esse modelo de vida em sua totalidade: sua economia, política, visão de mundo e o que afirma ser o propósito da vida humana. Uma amiga do Reino Unido me disse que pessoas nos EUA expressaram sua desilusão da seguinte maneira:
Nós trabalhamos e trabalhamos,
nós produzimos e produzimos,
nós investimos e investimos,
nós consumimos e consumimos.
Mas quando a “vida boa” virá?
Aqueles que expressaram estes sentimentos não eram indivíduos pobres da Ásia ou da África. Eram pessoas comuns de classe média de um dos países mais ricos do mundo. Por que eles não estavam felizes? Por que eles não sentiram que sua vida era uma “boa vida”? Não era a vida deles a vida pela qual todos no mundo lutavam? Todos os países do mundo, mesmo aqueles que continuaram a seguir o caminho socialista ou que foram chamados de Terceiro Mundo, aspiravam alcançar o padrão de vida do Ocidente. Por que, então, essas pessoas privilegiadas não são felizes?
Quando comecei a ponderar estas questões, percebi que, em geral, nós, nos países ricos, não vivemos vidas felizes; que para muitos, nossa vida é realmente miserável e sem sentido. Uma vida sem dignidade e verdadeira alegria. A maioria das pessoas nos nossos países fará perguntas semelhantes às acima: “Onde está a vida boa e quando chegará?”
Percebi também, porém, que é mais fácil dizer o que é uma vida ruim do que definir o que seria uma vida boa.
Durante anos, eu e muitos outros criticamos a colonização da natureza, das mulheres e dos países pobres do mundo. Falei e escrevi sobre a exploração e a opressão patriarcal e capitalista das pessoas, especialmente das mulheres. Como ecofeminista, há muito que compreendo que a destruição da natureza e das mulheres se baseia na mesma visão de mundo masculinista. Nomeadamente, que a “boa vida” não é possível sem o domínio do “Homem” sobre a natureza e todo o universo. (Dê uma olhada no que os cientistas fazem hoje para explorar o universo). Mas então, que conceitos temos em mãos para podermos definir de forma diferente uma vida boa? Há muitos anos, as minhas amigas e eu já tínhamos formulado uma nova visão sobre o que poderia ser uma vida boa: chamávamos-lhe perspectiva de subsistência.
Quais são, em resumo, as principais características desta nova visão: a sua visão do mundo e as suas características econômicas, políticas, culturais e sociais?
Para mim, subsistência significa boa vida para todas as criaturas no planeta e boas relações entre todos: com a natureza em sua plenitude. Ela não é nossa inimiga, ela é nossa mãe, somos todos crias da Mãe Terra. Homens não são os mestres da natureza. A boa vida significa que admiramos sua beleza, sua incrível diversidade, abundância, selvageria, poder; sua generosidade, criatividade e capacidade de gerar e recriar a vida. Como mulheres, nós compartilhamos essa criatividade. Nós também podemos gerar a vida e fazê-la crescer. E passamos a vida adiante às nossas crianças. Para mim, e para a maior parte das crianças, a natureza é uma fonte permanente de alegria. Toda a boa vida começa com a experiência dessa alegria, a alegria de estar vivo.
Tal visão de mundo requer um novo conceito de economia, de sociedade e de cultura, e de política e filosofia. Esta nova filosofia de vida levará a melhores relações entre “nós” e “outros”. Em vez de egoísmo haverá generosidade, em vez de competição haverá cooperação. Em vez de propriedade privada, haverá o uso comunitário dos Comuns (terra, água, ar, conhecimento), relações amistosas com vizinhos e estrangeiros, cooperação em vez de divisão em indivíduos isolados e alienados; falando juntos, compartilhando alegria e tristeza. Subsistência significa auto-abastecimento, mutualidade, comunalismo – nenhuma pessoa é uma ilha – partilha de responsabilidade pela comunidade e pelo planeta.
Há uma coisa que considero absolutamente necessária para criar um novo conceito de vida boa. É o fim da alienação do trabalho. Hoje, para muitas pessoas, o trabalho é visto apenas como um fardo. A boa vida deve vir depois do trabalho, à noite ou no fim de semana, durante as férias, depois de passar com sucesso neste ou naquele exame, depois de conseguir um carro, ou uma casa ou no final da vida profissional, ou em algum tipo de vida após a morte. Mas, como sabemos, se esta continuar a ser a nossa filosofia sobre uma vida boa, ela nunca acontecerá. Para mim, portanto, a boa vida deve começar aqui na Terra: enquanto trabalhamos, não depois de trabalharmos. Devemos aproveitar o processo de trabalho, a sensualidade de tocar as criaturas que cuidamos, crianças, idosos, animais, plantas. Ou os materiais com que lidamos enquanto trabalhamos, seja madeira, vegetais, terra, ferro, roupas ou milhares de outras coisas que podemos tocar. E sem esquecer das coisas que não podemos tocar, como música, arte, escrever, pensar, discutir... Através deste tipo de trabalho, também aprendemos as habilidades e competências para viver de forma prática neste mundo; aprendemos “Lebenstüchtigkeit”. Afinal, não temos apenas uma cabeça, somos seres sensuais completos (como outros animais). Queremos saber para quem trabalhamos. Queremos compartilhar o fardo do trabalho com outras pessoas, bem como o resultado do nosso trabalho. Não queremos fazer um trabalho alienado. O trabalho não é apenas um fardo, mas também um prazer. Hoje, ter uma vida boa significa, acima de tudo, o fim do stress permanente e da pressão infinita para fazer mais num espaço de tempo cada vez mais curto. O que todos precisamos então é de abrandar o nosso ritmo – na Alemanha isto é expresso como “desacelerar” (Entschleunigung). Esta “desaceleração” não ocorrerá até que sejamos capazes de dizer: “Agora é suficiente. Não preciso de mais para viver uma vida boa.” A constante ganância que determina as nossas vidas – e não apenas a vida dos banqueiros – deve-se ao fato de a maioria de nós nunca dizer “agora é suficiente”. A suficiência é o segredo da boa vida. Como disse Gandhi: “Há o suficiente para as nossas necessidades, não para a nossa ganância”.
A boa vida não cairá do céu. Teremos que criá-la, através do autoabastecimento (subsistência), da autossuficiência, da auto-organização, da responsabilidade e do cuidado com os outros e com a natureza. Tal economia e sociedade não deixarão espaço para o mito atual do crescimento permanente, do dinheiro e da acumulação ilimitada de capital. Como sabemos, este credo de crescimento permanente leva a guerras ilimitadas.
E como será a vida boa no final da vida de alguém? Espero e desejo que todos na Terra possam olhar para trás em suas vidas e dizer, como minha mãe disse: “Não foi uma vida boa! Agora é o suficiente. Eu irei." Alguns podem se perguntar se esta figura da vida boa não é um pouco otimista demais. Afinal, as pessoas têm de trabalhar, e trabalhar arduamente, algumas em condições desumanas, para ganharem dinheiro suficiente para viver. Verdade. Nós temos que trabalhar. A boa vida não significa que podemos sentar debaixo de uma árvore e esperar até que o fruto maduro caia na nossa boca aberta. Temos que trabalhar se quisermos viver. E esse trabalho costuma ser bastante difícil e exaustivo. Mas a boa vida significa que o fardo do trabalho não está separado do prazer, da satisfação, da criatividade e do sentido de comunidade, porque os humanos devem viver e trabalhar juntos. Como eu disse antes: a boa vida não vem depois do trabalho, mas deve ser parte integrante do trabalho. A infelicidade das nossas sociedades modernas deriva principalmente da falta de prazer, tanto no nosso trabalho como no nosso “tempo livre”. É por isso que os citados acima não ficaram felizes. Eles não viam sentido nem prazer em seu trabalho. Foi assumido apenas como um fardo necessário para alcançar uma “vida melhor”.
Enquanto eu ponderava sobre essas questões sobre a boa vida em fevereiro de 2010, dois eventos ocorreram simultaneamente e tiveram relação com minha própria vida:
1. O terrível terremoto no Chile em 28 de fevereiro;
2. a tempestade ciclónica Xynthia que assolou a Europa e a Alemanha, e também a minha aldeia, Steffeln, onde fui terminar o meu Epílogo.
Estes dois acontecimentos deixaram claro que eu deveria desistir da minha busca abstrata por um conceito de vida boa, pois aqui a própria Vida estava ameaçada. […] Antes que a boa vida possa surgir, devemos proteger e preservar a própria Vida neste planeta, a nossa Mãe Terra. […]
Outras leituras sobre Maria Mies no lado b:
→ Relembrando e homenageando Maria Mies
→ O matricídio pós-moderno
→ Origens da divisão sexual do trabalho
→ Mulher, natureza e a divisão internacional do trabalho: Ariel Salleh entrevista Maria Mies
→ Por que ler Maria Mies? Potência ecofeminista e luta de classes