mulher, natureza e a divisão internacional do trabalho
bônus track #33 [leituras ecofeministas]
Hoje pela manhã uma amiga compartilhou este email da Ariel Salleh que recebeu em um grupo de pesquisa do qual faz parte. Salleh foi companheira intelectual de Mies e está entre as feministas ecológicas de tradição marxista. Como entramos no mês do meio ambiente, achei oportuno abri-lo com a conversa de duas mulheres as quais muito admiro e muito influenciam minha percepção como mulher e como pesquisadora feminista. Apesar de ter sido feita nos anos 90 e publicada em 2009, a conversa permanece (assustadoramente) atual.
Esse mês, dentro do que conseguir em se tratando de tempo, quero compartilhar mais sobre o nexo natureza-mulher com vocês. Por ora, fico feliz de abrir os trabalhos com essa tradução. Se você tem aprendido com o que trago por aqui, considere apoiar o trabalho de uma jornalista e pesquisadora non grata 🫶🏼
Maria Mies entrevistada por Ariel Salleh. Texto publicado originalmente em 23 de setembro de 2009 sob o título 'Woman, Nature and the International Division of Labour', 1/9 (1990) 73-87. O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui.
Mulheres, natureza e a divisão internacional do trabalho
O ecofeminismo de Maria Mies está na encruzilhada dos movimentos feminista, ecológico e de libertação colonial. Mies tenta colocar a teoria marxista cara a cara com as crises políticas emergentes do final do século XX. Isso envolveu uma leitura heurística do texto de Marx à luz da antropologia moderna e do que ela chama de "relações objetais"; Mas Mies é tanto uma ativista quanto um socióloga acadêmica. Suas preocupações variam de ensaios prescritivos sobre metodologia em ciências sociais a estudos empíricos de exploração entre rendeiras indianas, campanhas organizadas contra a pornografia e a indústria de tecnologia reprodutiva na Alemanha Ocidental. Ariel Salleh falou com ela em 1987 e formalizou esta entrevista por correspondência.
Ariel Salleh: Claramente, o feminismo está em crise: os trabalhadores do Terceiro Mundo estão separados das donas de casa ocidentais de classe média, e ambos do movimento feminista em si. As feministas, por sua vez, estão divididas entre as socialistas e as que se organizariam de forma autônoma. Mas sua análise em Patriarcado e Acumulação em Escala Mundial dá uma nova unidade e coerência à luta das mulheres em todo o mundo. Que experiências em sua própria vida a levaram a esse insight? Ou já era dedutível de sua leitura do marxismo?
Maria Mies: Bem, não acho que o feminismo em si esteja em crise. As divisões que você mencionou são objetivamente parte integrante da estratégia patriarcal capitalista de “dividir para reinar”. Sob o capitalismo, emerge não apenas uma divisão sexual do trabalho, mas também uma divisão social particular entre privado e público e uma divisão internacional do trabalho. Todas essas divisões são estruturadas e conectadas hierarquicamente, embora apareçam como entidades autônomas. O que os une é uma relação de dependência baseada na violência, na produção de mercadorias e no dinheiro. O setor dependente em cada uma dessas divisões eu chamo de 'colônias'.
Não obtive essas percepções lendo o marxismo. Primeiro veio minha experiência na Índia, onde trabalhei e morei por seis anos; em segundo lugar, foi meu envolvimento no movimento de mulheres alemãs desde 1968. Enquanto tentava encontrar uma explicação satisfatória para a contínua exploração das mulheres aqui e nas colônias "lá embaixo", comecei a ler Marx. Mas, como argumentado em meu livro Patriarcado e Acumulação em Escala Mundial, o marxismo não ofereceu uma explicação. A relação constitutiva central estudada por Marx e Engels era o trabalho assalariado e o capital, e isso exclui todas as relações de trabalho não assalariadas. As últimas são empurrados para o reino da 'natureza' ou chamadas de 'pré-capitalistas'; dá no mesmo. Isso é particularmente verdadeiro para o trabalho de dar e sustentar a vida feito por mulheres.
AS: Um resultado disso, que você aborda no livro, é o fato de que os marxistas estruturalistas empurram “a questão da mulher” para o reino da “ideologia”; o resultado líquido é que elas são tão politicamente ineficazes quanto afirmam ser as feministas 'culturais' de classe média! Este problema está relacionado com o que você descreve como o conceito de trabalho "biologicamente carregado" em Marx? O que você quer dizer quando diz isso?
MM: O conceito marxista de trabalho certamente não pretendia ser carregado biologicamente. Seguindo Adam Smith, Marx enfatiza que o conceito de 'trabalho produtivo' sob o capitalismo não significa mais simplesmente trabalho para a satisfação das necessidades humanas, mas sim trabalho para produção de excedentes. Este conceito passa a ser o dominante e todas as outras formas de trabalho são deixadas fora do domínio da acumulação de capital. Ao chamar o trabalho assalariado de 'produtivo' e todos os outros tipos de trabalho não assalariado de 'não produtivos' ou naturais, Marx contribuiu para o que considero a 'naturalização' do trabalho feminino. Doravante, o trabalho feminino desaparece da esfera social ou humana e torna-se invisível, encerrado na família, o "reino da natureza" ou mesmo o "reino da morte", como disse Hegel.
O problema desse conceito marxista de trabalho não é apenas sua divisão dualista entre 'natureza' e 'sociedade', mas a relação de dominação existente entre esses dois pólos: a sociedade domina a natureza, a cultura domina a natureza, o homem domina a mulher etc. A mulher agora aparece como uma categoria biológica como resultado do discurso dos séculos XVIII e XIX. Marx e Engels não romperam inteiramente com esse discurso. De fato, esperavam a reconciliação do Homem com a Natureza chegar a partir de uma maior extensão da dominação dos homens sobre ela através do desenvolvimento da tecnologia e da ciência como forças produtivas.
AS: Agora você não está falando sobre algum sexismo universal dos homens por trás disso, está? O naturalismo de A ideologia alemã de Marx e Engels, digamos, é em si uma expressão do modo de produção capitalista, certo?
MM: Sim, não acho que exista algo como um sexismo inerente aos homens. Rejeito a afirmação de Freud de que a anatomia é o destino, tanto para os homens quanto para as mulheres. Houve longos períodos na história em que os homens não eram sexistas, e ainda há culturas em que os mendo não dominam as mulheres. O patriarcado é um sistema histórico e social, não biológico. No entanto, quando Marx e Engels, em A ideologia alemã, se referem à "divisão natural do trabalho na família" ou à "consciência de ovelha ou tribal" que prevalece até que uma "divisão de trabalho entre trabalho mental e material apareça", eles aceitam acriticamente o conceito iluminista de progresso. Este discurso é baseado em um domínio cada vez maior da mente humana 'masculina' sobre a natureza ou matéria 'feminina'. Antes de haver 'indústria e troca', havia estupro, roubo e pilhagem. O capitalismo não teria surgido sem a destruição dos sistemas de subsistência autossuficientes e autossustentáveis nas colônias e na Europa, e a teoria marxista do desenvolvimento ilimitado das forças produtivas ajuda a justificar isso, receio.
AS: Como tudo isso se relaciona com seu argumento sobre as diferenças entre a relação objetal de homens e mulheres com a natureza, sua observação de que homens e mulheres são produtivos de maneiras diferentes?
MM: Esse argumento é muitas vezes mal interpretado como sendo biologista, porque parte do reconhecimento de que o ser humano aparece em dois sexos e que homens e mulheres interagem com a natureza em corpos que são, pelo menos em parte, qualitativamente diferentes. A diferença biológica, no entanto, não é apenas dada. Masculinidade e feminilidade são definidas de forma diferente em cada época histórica, interpretadas e valorizadas de forma diferente, de acordo com o modo de produção dominante. Nas sociedades matrifocais, a feminilidade era interpretada como o paradigma de toda produtividade e criatividade. A sociedade patriarcal capitalista define a feminilidade como desprovida de produtividade, atividade, subjetividade, humanidade, historicidade.
AS: Bem, vamos abordar a questão das relações objetais desta forma: acho que você vê a confiança dos homens em 'ferramentas' para mediar sua relação com a natureza 'externa' como básica para a lógica de uma economia apropriativa - o modelo predatório.
MM: Eu digo que os homens não podem experimentar seus corpos como 'produtivos' da mesma forma que as mulheres, que eles precisam de 'ferramentas' para mediar sua relação com a natureza como produtiva ou criativa. Mas essa relação instrumental dos homens com seus corpos não teria levado a uma economia apropriativa ou predatória, se as ferramentas que os homens inventaram tivessem permanecido "produtivas" no verdadeiro sentido. Com a invenção das armas e o monopólio de alguns homens sobre essas armas, a relação dos homens com seus corpos, entre si, com as mulheres e com a natureza externa mudou fundamentalmente.
As armas não são meios de produção, mas meios de destruição e coerção. Por meio das armas, uma relação de exploração e dominação pode ser estabelecida e mantida. Somente quando os caçadores se tornaram guerreiros e onde a conquista se tornou uma atividade econômica regular, a produtividade dos homens, baseada no monopólio das armas, pode aparecer como um processo independente da produtividade das mulheres e da produtividade da natureza.
AS: Eventualmente, 'colonização' e 'dona de casa' tornam-se duas faces da mesma 'moeda' na ascensão do capital internacional, sendo a violência contra as mulheres essencial para a manutenção desta divisão internacional do trabalho. Quais são os exemplos disso, Maria?
MM: Exemplos abundantes podem ser encontrados na história do colonialismo, na política da escravidão, na destruição violenta de sistemas de sobrevivência autossuficientes, no processo de caça às bruxas na Europa e sua contrapartida histórica nas colônias. Mas ainda hoje, a violência contra as mulheres é o método 'necessário' para manter a exploração internacional e a divisão sexual do trabalho. A dona de casa e a colonização fazem parte do sistema de mercado mundial. Ambos são necessários para a acumulação de capital. Nas colônias modernas, essa violência assume a forma de estupros em massa, assassinatos por dote, esterilização forçada, sextourismo, uso de mulheres do Terceiro Mundo como cobaias para testar drogas, tecnologia pró-natal e pré-natal por empresas transnacionais.
Outro exemplo recente de violência neopatriarcal contra as mulheres é o ressurgimento do suttee [queima de viúvas] na Índia. Como eu disse, essas manifestações não são resultado de algum sadismo inato nos homens, nem resquícios de atraso feudal. São o resultado do processo contínuo de acumulação primitiva do capital, que sempre dependeu da violência direta. Nesse processo, os homens desempenham o papel de agentes do capital; os mediadores. A maioria dos homens no Terceiro Mundo não pode esperar alcançar o padrão de vida de seus grandes irmãos brancos por meio do trabalho assalariado. Mas ainda querem ter acesso aos bens de consumo que o mercado mundial oferece, televisores, carros, motos, vídeos, computadores, que servem como símbolos de modernização e progresso. Nem os homens individuais, nem os governos do Terceiro Mundo podem atingir esse nível material por meio de trocas não violentas. A armadilha da dívida é um resultado direto dessa impossibilidade. Os governos que adotaram uma política de modernização em face da dependência real terão que vender suas mulheres, ou suas terras, ou ambos.
O caso do suttee na Índia é revelador. Como Madhu Kishwar mostrou, os homens que fazem campanha pelo renascimento do sati não são camponeses "atrasados", mas jovens modernos, urbanos e educados que querem enriquecer rapidamente, apoiados por poderosos interesses industriais que investem muito dinheiro em templos e religião. Ao queimar uma viúva, um novo suttee-santuário pode ser estabelecido, um novo culto pode ser criado. Os peregrinos se aglomeram no novo santuário e trazem dinheiro. Neopatriarcado e fundamentalismo religioso andam juntos com modernização e acumulação de capital: eles não estão em contradição. Não é apenas nas neocolônias ou no Sul que a violência contra as mulheres está aumentando. Todos nós sabemos sobre seu aumento nos países industrializados, espancamento da esposa, estupro, pornografia. Mesmo o surgimento da tecnologia reprodutiva que transforma as mulheres em matéria-prima reprodutiva comercializável não é possível sem a vivissecção virtual do corpo feminino.
AS: Você afirma que a 'naturalização' é o eixo ideológico desse processo econômico. Como funciona?
MM: O conceito de 'naturalização' não pode ser bem compreendido sem o seu outro pólo, nomeadamente 'humanização' ou 'civilização'. A humanização aqui implica tornar-se independente da natureza por meio da ciência e da tecnologia. A dominação sobre a “natureza” nesse sentido é sempre uma relação destrutiva e coercitiva. 'Naturalização' significa, portanto, que não apenas a natureza externa, mas também as mulheres e os povos do 'Sul' são vistos como 'natureza'. Assim definidos, eles são privados de subjetividade, valor espiritual, dignidade e soberania. Essas 'colônias' tornam-se meros objetos ou matéria-prima para o processo de 'humanização' da classe trabalhadora nas metrópoles ocidentais. Como disse minha amiga Claudia von Werlhof, tudo o que é livre de custos para o capital é definido como "natureza". É importante, no entanto, ter em mente que tal conceito de natureza já é ideológico; implica que a integridade dos sistemas de sobrevivência autossustentáveis, nossos corpos, o fato de que as mulheres geram filhos, a terra que produz plantas e animais já foi destruído.
A natureza já foi subjugada e é dominada pelo 'Homem'. Então, após essa destruição, a 'natureza' é reconstruída ideologicamente de uma forma sentimental. É degradada e romantizado. Issa é verdade para as mulheres - 'mulheres boas e más'; para a natureza externa - 'caótica e idílica'; e para povos colonizados - 'bons e maus selvagens'. Aqueles que foram 'civilizados' ou 'humanizados' obviamente não podem esquecer seu 'paraíso perdido'. Eles anseiam pelo que destruíram. Ironicamente, esse mesmo anseio é a força motriz mais forte para a atual rodada de acumulação de capital: sextorismo do Terceiro Mundo, eco-marketing, etc.
AS: O conceito feminista de 'gênero' também colabora involuntariamente com essa ideologia naturalista.
MM: De fato. O conceito feminista de 'gênero' colabora com esse dualismo e reforça a polarização entre 'natureza' e 'cultura'. Partilha do conceito de progresso desenvolvido pelos homens brancos e da hegemonia da cultura sobre a natureza. Ele também compartilha a visão evolucionista desse processo como inevitável. Por causa da distinção feita por algumas feministas entre 'gênero' e 'sexo', agora é fácil para os engenheiros reprodutivos dizer que o domínio da sexualidade e da reprodução é apenas 'biologia', portanto, é seu domínio. Enquanto isso, as manifestações simbólicas dessas áreas são chamadas de andares de 'gênero', que dizem pertencer à esfera social, cultural ou verdadeiramente 'humana'.
AS: Esse dispositivo de 'naturalização' continua sendo importante para a autodefinição do proletariado masculino, não é?
MM: Sim, o movimento operário europeu, pelo menos a partir da segunda metade do século XIX, aspirava atingir o nível cultural da burguesia. Os líderes dos social-democratas alemães, então ainda fortemente influenciados pelo socialismo científico, viram claramente que, para a ascensão da classe trabalhadora alemã de uma miserável existência proletária para uma existência civilizada, uma nação industrial como a Alemanha precisava de colônias. As colônias eram necessárias para a importação barata de mais matérias-primas, de mais mão-de-obra e para a ampliação dos mercados (ver Rosa Luxemburgo). Mas para a "humanização" ou civilização do proletário alemão, uma família decente era necessária, onde o homem era o ganha-pão e a mulher a dona de casa. Portanto, a política colonial e a política familiar na Alemanha imperial eram basicamente aceitas pelos social-democratas e pelos sindicatos. Na Inglaterra e em outros países industrializados, a situação era mais ou menos a mesma.
AS: Suponho que o otimismo tecnológico de Marx, Engels e muitos socialistas de hoje também seria influenciado pela relação objetal específica do homem com a natureza…
MM: Hoje chegamos a um estágio em que podemos falar de uma convergência ideológica do homem proletário e do capitalista. Ambos esperam mais "progresso" de uma maior dominação sobre a natureza pela alta tecnologia. Ambos colaboram na destruição de nossa base natural de existência. A classe trabalhadora ocidental tem se oposto fortemente ao movimento ecológico e também ao movimento das mulheres. Mas não é apenas a classe trabalhadora ocidental que compartilha essa utopia tecnocrática com o capital. Os trabalhadores dos países socialistas atuais compartilham o mesmo paradigma do progresso tecnológico como a chave para toda a felicidade. Suas raízes teóricas devem, de fato, ser encontradas no otimismo tecnológico de Marx, e particularmente de Engels, que vê a dominação sobre a natureza como uma pré-condição para a libertação da humanidade do “reino da necessidade” e para o início do “reino da liberdade”. .
AS: Como seria um conceito feminista de trabalho e economia, na sua opinião?
MM: Um conceito feminista de 'trabalho' não pode ser baseado na dominação. As mulheres não podem esperar que a libertação venha da exploração contínua da natureza e de outros povos colonizados. Uma colônia não pode ser descolonizada à custa de outras colônias. Um conceito feminista de trabalho deve, portanto, substituir a relação econômica predatória da "natureza" de Manto por uma cooperativa. O modelo de um relacionamento cooperativo e recíproco entre a mulher e a natureza é também a única maneira pela qual as mulheres restaurarão sua integridade e inteireza corporal, sua dignidade e sua soberania sobre os processos da Vida. Um conceito feminista de trabalho deve rejeitar a noção de que todo “trabalho necessário” é um fardo que deve ser feito por máquinas ou robôs. Temos que manter um conceito de trabalho em que o 'prazer' e a 'dureza' do trabalho estejam unidos. Isso exigiria uma economia diferente da que conhecemos hoje. Eu elaborei sobre isso no último capítulo de Patriarcado e Acumulação. A principal característica de tal economia seria a ênfase na manutenção de sistemas de sobrevivência autossustentáveis: “uma perspectiva de subsistência”. Seria uma 'economia moral', baseada em princípios, não apenas em oferta e demanda.
AS: As mulheres não têm nada a ganhar com a continuação da ética predominante de 'crescimento', não é? A propósito, quando você desenvolveu sua perspectiva de subsistência em Patriarcado e Acumulação, você estava tentando conscientemente fornecer uma ponte teórica entre o ecofeminismo e a política verde? Sem uma completa emancipação tanto das mulheres do Terceiro Mundo quanto das ocidentais de sua posição sustentadora na divisão predatória do trabalho, a política Verde não chegará nem à primeira base, não é?
MM: Concordo que a política verde não alcançará a primeira base a menos que a ética do crescimento e da acumulação seja consistentemente rejeitada e uma 'perspectiva de subsistência' seja colocada em seu lugar. No entanto, a política verde na Alemanha Ocidental no momento está longe disso. Quando os Verdes começaram a entrar nos parlamentos, iniciou-se um processo de redefinição de seus objetivos. Acabou reduzindo drasticamente suas críticas ao modelo de crescimento industrial e falando mais sobre uma “reconstrução ecológica do sistema industrial”.
Isso significa que eles esperam que a solução para a crise ecológica e social não venha tanto de uma mudança radical na vida cotidiana das pessoas, mas de inovações tecnológicas, como energia solar etc. harmonizando a acumulação capitalista com a reconstrução ecológica, é possível que os Verdes não durem muito tempo como partido parlamentar. Coloco minha esperança não tanto nos Verdes ou em qualquer outro partido, mas no movimento cada vez maior entre as pessoas, particularmente as mulheres que estão prontas para desafiar o modelo de crescimento pela resistência do consumidor. Precisamos de uma estratégia que combine os objetivos do movimento ecológico, anticolonialismo e libertação das mulheres simultaneamente.
AS: A seu favor está o fato de que o feminismo é muito mais saudável agora na Ásia, na América Latina e na África. Originalmente, as mulheres coloniais relutavam em se identificar com o movimento feminista. Por que a reviravolta?
MM: Embora o velho preconceito de que “feministas são todas mulheres solteiras, lésbicas, odiadoras de homens e donas de casa” ainda exista entre algumas mulheres do Terceiro Mundo, cada vez mais elas se veem confrontadas com as mesmas manifestações do patriarcado capitalista que nós. O aumento da violência contra as mulheres renovou a rebelião feminista em muitos países do Terceiro Mundo. Não pode mais ser rotulado como uma importação ocidental. As irmãs do Terceiro Mundo também precisam de uma resposta para a pergunta 'Por que o capitalismo ou a modernização não libertou as mulheres?' Portanto, estamos encontrando um grande interesse na teoria feminista agora entre as mulheres na Ásia, América do Sul e África.
AS: Recentemente, em Londres, me deparei com a campanha Wages for Housework novamente, vigorosamente defendida por mulheres migrantes de cor no King's Cross Women's Centre. Como você se sente sobre o renascimento desta estratégia na atual conjuntura?
MM: É compreensível que as mulheres atingidas pelo desemprego, pela flexibilização do trabalho ou pela 'domar-doméstica' de cada vez mais áreas produtivas exijam uma renda mínima garantida ou 'Salários por trabalhos domésticos'. Essa estratégia foi adotada até mesmo na Alemanha Ocidental em certa medida pelos democratas-cristãos. Eles concederam às mulheres com filhos pequenos uma pequena mesada como 'dinheiro para educação', muito pouco, é claro, até mesmo para alimentá-los. Embora a demanda seja compreensível, como um movimento tático, ela levanta as mesmas questões estratégicas da antiga campanha de Salários para o Trabalho Doméstico. Estes são:
(1) A estratégia pode ser aplicada a todas as mulheres do mundo? É concebível que todas as mulheres do mundo possam, na realidade, tornar-se “donas de casa” mantidas por um homem como provedor ou pelo estado de bem-estar social? Isso é desejável?
(2) Como o estado tem que pagar esses salários pelo trabalho doméstico ou a renda mínima garantida, essa demanda levará automaticamente ao controle do estado na esfera da reprodução e subsistência.
(3) Tal estratégia não pressuporia a continuação da divisão internacional do trabalho existente e do mercado mundial existente? É até concebível que algumas mulheres no Ocidente recebam salários para trabalhos domésticos com os serviços da dívida pagos pelas nações endividadas do Terceiro Mundo. A servidão por dívida do Terceiro Mundo pode facilmente ser usada para alimentar um número crescente de trabalhadores não assalariados ou desempregados nas metrópoles. Mas é impossível alimentar todos os desempregados e todos os trabalhadores não assalariados do mundo ao mesmo nível. Se todas as mulheres recebessem salários pelo trabalho doméstico, nenhuma das nações endividadas estaria em posição de pagar os juros de seus empréstimos. Isso, por sua vez, seria o fim dos salários do trabalho doméstico nas metrópoles.
AS: Mudando de tática, Maria: Percebo que sua tese faz uso da desconstrução ecofeminista da ciência baconiana de Carolyn Merchant. A crítica da ciência desenvolvida por feministas de língua inglesa como Sandra Harding, Evelyn Fox Keller, Hilary Rose e outras é bem vista na Europa?
MM: Os livros de Carolyn Merchant e Evelyn Fox Keller foram traduzidos e discutidos na Alemanha por mulheres e homens que, desde Chernobyl, começaram a criticar os fundamentos da ciência e da tecnologia. A crítica é liderada na Alemanha Ocidental pelo movimento das mulheres contra a engenharia reprodutiva e genética. As mulheres começam a entender que essa tecnologia equivale a um renascimento do movimento eugênico dos nazistas, mas agora ativado em escala mundial. Em outros países europeus, a resistência a esses desenvolvimentos não é tão forte. Recentemente, ouvi feministas francesas dizerem: 'Depois de racionalizarmos a produção, racionalizamos a reprodução'. Na França, a fé no instrumentalismo é praticamente inabalável.
AS: Seu próprio ataque à metodologia patriarcal nas ciências sociais coloca ênfase particular na pesquisa-ação. E esse é um dos aspectos mais impressionantes de sua escrita, eu acho; não só traz uma vasta gama de material empírico e histórico em síntese e mostra como diversas áreas da política feminista estão inter-relacionadas, como também é claramente informado por um engajamento pessoal de longa data na luta das mulheres tanto no Terceiro Mundo quanto no Ocidente ‘desenvolvido’.
MM: É verdade, meu trabalho segue os princípios metodológicos da pesquisa feminista formulados pela primeira vez em 1978, integrando pesquisa e ação, teoria e prática. Ainda uso essas ideias com meus alunos, em projetos de mulheres e ambientais e com outros grupos. No clima político atual, porém, parece que nada é mais suspeito para os poderes que mantêm o status quo do que a integração entre teoria e prática. Na Alemanha Ocidental, não há problema em dar cursos de teoria marxista ou feminista; é até considerado inovador! Mas assim que você sai dos limites da academia e liga a pesquisa feminista à política, você se torna suspeito. Ou você não é visto como um 'bom estudioso'.
AS: Você pode nos contar um pouco sobre as batidas policiais em suas colegas feministas alemãs que se opõem ativamente às tecnologias reprodutivas e à engenharia genética? Esse assédio por parte do Estado parece enfatizar o significado estrutural da necessidade patriarcal de apropriar-se e controlar o "recurso" do trabalho reprodutivo das mulheres.
MM: Os ataques de dezembro de 1987 contra as mulheres no movimento contra a engenharia reprodutiva e genética foram uma reação à erosão da aceitação pública dessas novas técnicas. Desde 1985, nossas mulheres se mobilizaram por causa de seus efeitos anti-mulheres, na verdade anti-humanos. A indústria está ansiosa para lançar a biotecnologia como uma das principais 'tecnologias do futuro', então as batidas policiais foram feitas para intimidar o movimento de protesto e, assim, criar um clima melhor para investimentos aqui. Claramente, essas novas tecnologias não podem ser 'lucrativas' a menos que o estado intervenha para impor o controle total sobre as capacidades reprodutivas das mulheres. Aqui vemos a unidade do patriarcado e do capitalismo novamente. Na Alemanha Ocidental, sempre insistimos em vincular nossa crítica à tecnologia reprodutiva à da engenharia genética e à questão da política de controle populacional no Terceiro Mundo. Somente mostrando a interconexão dessas áreas podemos expor as implicações basicamente racistas, sexistas e, em última análise, fascistas de tais técnicas.
[Um segundo congresso da Women Against Reproductive and Genetic Engineering foi realizado em Frankfurt em novembro de 1988.]
AS: Entre as feministas que encontrei trabalhando com Die Gruenen, algumas endossaram o Manifesto das Mães; outros se opõem ferozmente ao que consideram o naturalismo desse mesmo documento. Na minha opinião, este 'debate' marca uma nova etapa significativa em nosso desenvolvimento da consciência feminista. Se ao menos o movimento for maduro o suficiente para trabalhar com as antinomias políticas colocadas pelo Manifesto.
MM: O grupo Manifesto das Mães começou apontando as muitas queixas de mães com filhos pequenos no movimento de mulheres. Essas queixas são reais e não tem havido muita solidariedade com as mães por parte do nosso movimento. Mas é errado, como fazem as mulheres do Manifesto, dizer que as não-mães são “mulheres de carreira”, ou mesmo que uma carreira significa emancipação. Essa posição já foi rejeitada bem cedo pelo movimento de mulheres. Por outro lado, as mulheres que criticam o Manifesto por seu 'biologismo' são igualmente superficiais. Elas geralmente argumentam que os nazistas também colocaram a 'maternidade' em um pedestal com sua ideologia 'Blut und Boderf'. Considero ambas as posições erradas. As mulheres do Manifesto tratam a maternidade como um antagonismo existencial, mas esquecem que é apenas uma parte da vida de uma mulher. As mulheres anti-Manifesto, por outro lado, não se dão ao trabalho de ir além de sua retórica antifascista - uma retórica pela qual qualquer novo movimento na Alemanha pode ser denunciado. Cometem assim o mesmo erro que comunistas e social-democratas cometeram na República de Weimar, antes de Hitler chegar ao poder.
Esses grupos denunciaram todos os sentimentos de descontentamento centrados em tópicos como 'natureza', 'maternidade', 'terra' e 'casa' como irracionais, fora de sintonia com o mundo moderno. E ao fazê-lo, eles entregaram toda essa dimensão da realidade humana aos nazistas devido ao seu alojamento no discurso iluminista, o socialismo científico não foi capaz de acomodar esses chamados 'anseios irracionais' dentro de seu corpo teórico e políticas. No entanto, baseando sua utopia exclusivamente na racionalização e na luta de classes, os comunistas e os social-democratas não foram capazes de entender os “estrondos sob o chão de fábrica”, como disse minha falecida amiga Christel Neussus. Esses rumores surgiram da alienação emocional da classe trabalhadora industrial e Hitler explorou esses sentimentos para seus próprios propósitos. Sim, espero que a discussão em torno do Manifesto das Mães seja capaz de transcender o padrão fácil de 'direita' e 'esquerda' e enfrentar o que está por trás da rebelião das mães no movimento das mulheres.