Depois de ler algumas experiências prévias das mulheres nos movimentos socialistas e anarquistas na URSS, na Revolução Espanhola, nas organizações da Primeira Internacional, na luta curda, entre outras, notei a enorme similaridade com a narrativa atual da esquerda brasileira onde o próprio movimento “proletário”, ou seja, os sujeitos politicamente orientados a esquerda, não detentores de meios de produção, pobres ou de classe média, historicamente se encarrega de minar o feminismo e a luta das mulheres sobretudo ao dizer que o feminismo é um movimento de mulheres burguesas ou de classe média que visa cindir a classe trabalhadora ou, ainda, que o feminismo no qual se prioriza as mulheres, não é o “verdadeiro feminismo”. É claro que eles não estão interessados em um movimento da classe trabalhadora que inclua também os patrões, mas, obviamente, o feminismo precisa incluir a todos.
O discurso pode ter ganho uma nova roupagem na pós-modernidade, sobretudo com a ajuda das ONGs e de organizações multilaterais, como a ONU, mas a mensagem de fundo é basicamente a mesma: mulheres não podem existir politicamente de forma independente dos homens inclusive na esquerda. Mais uma vez na história, a própria esquerda se torna instrumento para fazer as vontades do capital às custas das mulheres e crianças, de forma alinhada com a nata tecnocrática do capitalismo patriarcal.
Ao mesmo tempo, as próprias mulheres estão repercutindo uma ideia de privilégio que não é a realidade estatística e que expõe o quão desconectadas essas mulheres estão da própria realidade e da realidade das mulheres ao seu entorno. Inclusive, só assim é possível um feminismo “pós-moderno” que ignora a realidade material da maior parte das mulheres e a resume a uma questão puramente econômica, ou pior, de identidade. Só assim é possível dizer que mulheres escolhem a prostituição, ser barriga de aluguel ou se vender no OnlyFans de forma curiosamente alinhada aos interesses hegemônicos.
Refletindo sobre isso, pareceu pertinente trazer um enxerto do livro Patriarcado e Acumulação em Escala Mundial, da Maria Mies. Escrito em 1986, há algumas atualizações possíveis, mas a ideia geral permanece incrivelmente válida e viva. A tradução está disponível no site do coletivo Sycorax na íntegra e a reprodução é livre. Para quem ainda não leu Mies, espero que esse trecho seja apenas um começo.
Sobre um movimento feminista de classe média
O movimento feminista ocidental é frequentemente acusado por pessoas de esquerda, particularmente em países do Terceiro Mundo, de ser apenas um movimento de mulheres educadas de classe média e de não ter sido capaz de construir uma base entre as mulheres da classe trabalhadora. Mulheres de classe média em países subdesenvolvidos são aconselhadas a ir antes às favelas das grandes cidades ou às aldeias e ajudar as mulheres pobres a escapar das garras da miséria e da exploração. Já ouvi muitas mulheres de classe média urbana na Índia dizerem que elas próprias eram privilegiadas, que não eram oprimidas, e que o trabalho pela libertação das mulheres deveria começar despertando nas mulheres pobres a consciência de seus direitos. Essas mulheres de classe média, que começaram a discutir a opressão das mulheres entre si, eram frequentemente acusadas de serem egocêntricas e elitistas. Muitas vezes, elas reagiam com enorme sentimento de culpa por pertencer à classe das mulheres “privilegiadas”.
O raciocínio por trás dessa crítica ao assim chamado feminismo de classe média é baseado no pressuposto de que as mulheres que têm de lutar para garantir sua sobrevivência no dia a dia não podem se dar ao luxo de lutar pela “libertação das mulheres” ou pela “dignidade humana”. Diz-se que as mulheres pobres precisam primeiro de “pão” antes de poderem pensar na libertação. Por outro lado, as mulheres que, devido ao seu status de classe, têm acesso a educação moderna e emprego são consideradas já emancipadas, principalmente se vivem em um ambiente familiar liberal. É óbvio que esse conceito de emancipação das mulheres exclui precisamente as dimensões sensíveis da relação patriarcal homem-mulher, em torno das quais o novo movimento de mulheres se mobilizou, particularmente com relação à violência contra as mulheres.
Vimos que o aumento da violência contra as mulheres foi o problema na Índia e em outras partes do mundo que deu início a movimentos feministas genuínos em muitos países. O aumento dos feminicídios por dote, dos estupros, da violência doméstica e de outras tendências antimulheres na Índia fez com que as mulheres de classe média urbana percebessem que sua assim chamada posição de classe privilegiada não as protegia contra a violência sexual dos homens de sua própria classe ou família, nem da de outros homens, e nem mesmo dos protetores da lei e da ordem, a polícia. Apesar de todas essas experiências nos últimos anos, ainda se pode ouvir o argumento de que não há necessidade de lutar pela libertação das mulheres de classe média urbana instruídas porque elas já estariam libertadas ou porque já teriam os meios para se libertar. Essa argumentação é um exemplo do tipo de cegueira em relação à realidade frequentemente encontrada entre pessoas de classe média, também em países do Terceiro Mundo. É também um exemplo da equação economicista da libertação pela riqueza. Ao contrário dessa posição, considero um movimento feminista de classe média, tanto nos países superdesenvolvidos quanto nos subdesenvolvidos, uma necessidade histórica absoluta.
Há uma série de razões para apoiar essa posição, e a mais óbvia é o fato já mencionado de que a opressão e a exploração patriarcais, o assédio sexual e a violência são tão desenfreados entre as classes médias, em todos os lugares, quanto entre as classes trabalhadoras ou camponesas. Poderíamos dizer até que são mais predominantes entre as classes médias do que entre as classes camponesas, em que velhos tabus sexuais ainda funcionam melhor. A segunda razão é que os próprios privilégios, a que as mulheres de classe média tantas vezes se referem como algo que as distingue favoravelmente das mulheres pobres, na verdade as expõem mais a esse tipo de violência. Enquanto mulheres “protegidas” – protegidas pelos homens de suas famílias –, elas não aprenderam a se deslocar livremente e/ou a se defender quando são atacadas. Além disso, são donas de casa “privilegiadas”; isso significa que estão isoladas em casa e quase não têm nenhuma rede de sociabilidade com outras mulheres ou homens para apoiá-las. Elas são tão autossuficientes em tudo que não têm de pedir nada emprestado de amigas e vizinhas. Tudo isso as torna muito mais vulneráveis à opressão patriarcal do que as mulheres da classe trabalhadora ou rurais, que geralmente ainda vivem e trabalham dentro de um contexto coletivo, pelo menos nos países do Terceiro Mundo.
Além disso, a educação recebida pelas mulheres de classe média dificilmente as prepara para lutar contra a opressão masculina. As virtudes ensinadas às meninas em todas as instituições educacionais, incluindo a família, são tais que fazem com que elas percam toda a confiança em si mesmas, toda a coragem e independência de pensamento e ação. Como o casamento e a família ainda são vistos como destinos naturais das mulheres, a formação que as meninas recebem as prepara para esse papel de dona de casa e mãe.
Essa preparação para a domesticidade pode ter sido complementada por algum tipo de formação profissional, mas, fundamentalmente, não mudou. A ideologia de que a mulher é basicamente uma dona de casa é defendida e difundida pela classe média. As meninas dessa classe recebem aulas de economia doméstica para dar a essa ideologia uma perspectiva científica. Todos os meios de comunicação, em particular o cinema, fomentam uma imagem de mulher com base nessa ideologia. Parte dessa imagem também é o ideal do amor romântico, que, mais do que qualquer outra coisa, acorrentou emocionalmente as mulheres do Ocidente às relações homem-mulher patriarcais e sexistas1. Tudo isso, aliado ao fato de que a mulher de classe média, como tipo ideal, é economicamente dependente de um marido como provedor, é suficiente para nos permitir a conclusão de que ser mulher de classe média ou dona de casa não é um privilégio, mas um desastre2.
Na maioria dos países subdesenvolvidos, entretanto, a imagem da mulher de classe média, a dona de casa, ainda é mantida, consciente ou inconscientemente, e difundida como símbolo do progresso. Isso é feito não apenas por agências e organizações explicitamente “burguesas”, como as organizações conservadoras de mulheres, mas também pela comunidade científica, por políticos e administradores, particularmente pelos planejadores de desenvolvimento, tanto nacional quanto internacionalmente, e, sobretudo, pela comunidade empresarial. Além do mais, as organizações de esquerda, que almejam difundir a consciência de classe entre trabalhadores e camponeses, não têm basicamente nenhuma outra imagem da mulher em mente quando se dirigem a elas. Não só os seus quadros são principalmente homens e mulheres de classe média, mas também as questões que consideram como questões específicas das mulheres (o cuidado das crianças, saúde, planejamento familiar, trabalho doméstico) estão relacionadas com essa imagem. Vimos que, mesmo em países socialistas que passaram por mudanças revolucionárias nas relações de propriedade, a imagem da mulher de classe média como dona de casa (dependente) foi mantida no centro das novas políticas econômicas de criação de um setor subsidiário ou informal.
Os “privilégios” das mulheres de classe média não são apenas o fato de serem domesticadas, isoladas, dependentes de um homem, emocionalmente acorrentadas, enfraquecidas e amarradas a uma ideologia que as objetifica totalmente. Tudo isso se soma ao fato de que elas, como donas de casa, têm de gastar o dinheiro que seus maridos ganham. Elas se tornaram – pelo menos nas áreas urbanas – as principais agentes do consumo doméstico, que proporcionam o mercado necessário para as mercadorias produzidas. É essa classe de mulheres que, em grande medida, é sujeito e objeto do consumismo. No Ocidente, é um fenômeno comum que as mulheres compensem suas muitas frustrações indo às compras. Mas as mulheres de classe média em países pobres também seguem o mesmo padrão. As mulheres africanas, asiáticas ou latino-americanas de classe média urbana seguem mais ou menos o mesmo estilo de vida e modelo de consumo. Uma olhada nas revistas femininas africanas ou indianas é suficiente para perceber como as mulheres de classe média são mobilizadas como consumidoras.
Os capitalistas nacionais e internacionais têm um grande interesse em defender e difundir essa imagem de mulher, e o modelo de consumo que a acompanha, como símbolo do progresso. Onde as corporações nacionais e multinacionais venderiam seus cosméticos, detergentes, sabonetes, tecidos sintéticos, plásticos, fast food, comida para bebês, leite em pó, pílulas etc. se as mulheres de classe média não fornecessem o mercado?
Logo, é a mulher de classe média, como dona de casa, mãe e símbolo sexual, que é constantemente mobilizada para acompanhar todas as modas e modismos, de modo que não poderia deixar de ser um dos principais itens da estratégia publicitária de todas as agências de marketing. Como Elisabeth Croll observou, essa imagem da mulher também apareceu nos outdoors de Pequim, onde a mulher como a “trabalhadora modelo” foi substituída pela “mulher consumidora” de cosméticos, televisão, máquinas de lavar, pasta de dente, relógios e panelas modernas. Nesses outdoors, a nova mulher chinesa está cacheando seus cabelos lisos, usando batons e embelezando os olhos. Os protestos da Federação de Mulheres contra esse tipo de publicidade tiveram pouco efeito, porque essa imagem da mulher está intimamente ligada aos crescentes interesses e conexões comerciais que o governo chinês está estabelecendo com o Ocidente (Croll, 1983, p. 105). Assim, a mulher de classe média ocidental como consumidora aparece como símbolo de progresso também na República Popular da China. Feministas ocidentais estão desafiando essa imagem da mulher e a realidade social por trás dela não apenas porque perceberam o blefe gigantesco por trás dessa imagem da “mulher feliz” diante de tanta brutalidade direta e indireta contra as mulheres, mas também porque muitas estão percebendo que o consumismo é a droga pela qual mulheres e homens são levados a aceitar condições de vida desumanas e cada vez mais destrutivas. As novas “necessidades”, criadas pela indústria em seu esforço desesperado para manter o modelo de crescimento em funcionamento, seguem todas o padrão dos vícios. A satisfação desses vícios não está mais contribuindo para uma maior felicidade e realização humana, mas para mais destruição da essência humana.
No início da década de 1970, o movimento de mulheres, juntamente com outros movimentos de protesto, pode ter acreditado que, uma vez que “temos o suficiente de tudo”, a questão da mulher poderia ser resolvida por meio de um processo de redistribuição simples e do eventual cumprimento das promessas das revoluções burguesas. Contudo, agora é evidente que a própria superabundância de mercadorias e o paradigma por trás dessa superprodução destroem o meio ambiente, bem como a vida humana e a felicidade. Além disso, o ódio sádico e cínico de toda a civilização capitalista-patriarcal pela mulher é tão abertamente demonstrado hoje que as feministas não podem mais ter a ilusão de que a libertação das mulheres será possível dentro do contexto desse paradigma social.
Essa percepção ainda não é muito difundida entre as feministas de classe média nos países subdesenvolvidos. Mas penso que elas também têm motivos suficientes para não se desculpar pelo movimento feminista existente e crescente em sua classe. Esse movimento é, de fato, necessário se as mulheres urbanas quiserem se defender das crescentes tendências antimulher que podemos observar em todo o mundo. Mas também é necessário que as próprias mulheres de classe média comecem a destruir os mitos, as imagens e os valores sociais que as tornam um falso símbolo de progresso. Se as mulheres de classe média na Índia, por exemplo, começarem a questionar valores patriarcais como a virgindade, os ideais de feminilidade abnegada propagados por meio de figuras mitológicas, como Sita ou Savitri, ou a ideologia da dona de casa moderna, contribuirão não apenas para a própria libertação, mas também para a libertação das mulheres operárias e camponesas. Porque, como símbolos de progresso, essas imagens da mulher, esses mitos e valores são agora levados a todos os povoados e aldeias indianas pela mídia, pelo cinema, pelo sistema de educação, bem como por planejadores de desenvolvimento, ativistas e assistentes sociais. O problema da disseminação da ideologia da dona de casa de classe média nas áreas rurais e periferias urbanas não é apenas a desvalorização intrínseca da mulher, mas também o fato de que, para a maioria das mulheres rurais e urbanas pobres, essas imagens nunca se tornarão realidade. E, no entanto, essas imagens exercem um grande fascínio sobre elas, e muitas podem tentar desesperadamente chegar ao padrão dessas mulheres modernas de classe média. Com a televisão também disponível em muitas áreas rurais, as produções da televisão estadunidense (como Dallas3), ou as imitações locais, chegarão a todos os cantos. É, portanto, necessário que as mulheres de classe média urbana, particularmente aquelas que desejam trabalhar entre mulheres rurais e urbanas pobres em países do Terceiro Mundo, comecem a criticar a ideologia e a realidade da condição da mulher de classe média. A existência de um forte movimento feminista de classe média com uma perspectiva bem definida é uma salvaguarda contra a propagação da falsa imagem da mulher dona de casa e consumidora como modelo para a libertação e o progresso das mulheres. Sem esse movimento, e sem a crítica feminista da mulher de classe média como a portadora de um futuro mais feliz, as ativistas que trabalham entre as mulheres pobres transportarão subconscientemente essa imagem a mulheres para as quais ela não tem nenhuma utilidade.
Há ainda outro aspecto. Sem uma crítica feminista radical ao ideal de feminilidade de classe média – com suas manifestações nacionais e culturais específicas –, existe o perigo de que as mulheres de classe média, mesmo que estejam genuinamente comprometidas com a libertação das mulheres e com a libertação de todos os povos oprimidos e explorados, permaneçam cegas para os elementos verdadeiramente progressistas e humanos que podem ser encontrados nas chamadas classes e comunidades “atrasadas” no que diz respeito às mulheres. Podem ser elementos de uma tradição que ainda não foi totalmente subsumida ao patriarcado, resquícios de tradições matriarcais ou matrilineares, ou pode haver bolsões de poder das mulheres que derivam de seu modo de vida e trabalho ainda comunitário e coletivo ou mesmo de sua longa tradição de resistência à opressão masculina, de classe e colonial (Mies, 1983; Chaki-Sircar, 1984; Yamben, 1976; van Allen, 1972).
Como Christine White observou com relação aos líderes comunistas vietnamitas, sua cegueira em relação às tradições matriarcais no Vietnã e o foco quase exclusivo nas tradições feudais e confucionistas é uma manifestação da preocupação da classe média masculina com a civilização patriarcal (White, 1980, p. 3-6). Enquanto a burguesia europeia tentava emular o estilo de vida da aristocracia, as classes trabalhadoras imitavam a burguesia. O mesmo processo de emulação e imitação está ocorrendo entre os países do Terceiro e do Primeiro Mundo. Em todo esse processo, todas as tradições nacionais e locais pelas quais as mulheres tiveram ou ainda têm algum tipo de autonomia e força são definidas como “atrasadas”, “primitivas”, “selvagens”. Não pode ser do interesse das mulheres contribuir para essa destruição da história das mulheres. Um movimento feminista de classe média poderia obter força, inspiração e orientação na história e na cultura dessas mulheres “atrasadas”.
Isso é urgente e necessário porque o mito do “homem provedor”, o sol em torno do qual as mulheres de classe média se movem como um planeta, está colapsando. Cada vez mais evidências estão surgindo de que o casamento e a família não são mais um seguro de vida econômico para as mulheres, de que um número cada vez maior de homens está se esquivando da responsabilidade com as mulheres e as crianças, e isso também entre as classes médias instruídas. Portanto, as mulheres de classe média fariam bem em procurar suas irmãs mais pobres e aprender com elas como sobreviver nessas circunstâncias. E como sobreviver com dignidade.
Quando trabalhávamos com mulheres vítimas de violência em Colônia, na Alemanha, descobrimos que não era a dependência econômica de um “ganha-pão” masculino que as acorrentava aos homens que lhes infligiam maus-tratos e tortura, às vezes por muitos anos, mas seu autoconceito de mulher. Elas não eram capazes de ter identidade própria, a menos que fossem “amadas” por um homem. As surras que levavam dos homens eram frequentemente interpretadas como sinais de amor. É por isso que várias mulheres voltavam para seus homens. Em nossa sociedade, uma mulher que não é “amada” por um homem não é ninguém.
Essa afirmação pode ser lida como uma analogia do que Marx escreveu sobre o “trabalhador produtivo”, o proletário clássico. Em O capital, ele diz: “ser trabalhador produtivo [sob o capitalismo] não é, portanto, sorte, mas azar” (O capital, vol. I, 1974, p. 532 [ed. bras. O capital, vol. I, tomo II, 1996, p. 138]).
Dallas foi uma série de televisão estadunidense exibida entre 1978 e 1991. Com quatorze temporadas, o enredo gira em torno de uma rica família proprietária de uma empresa petroleira no Texas. [N. das T.]