conheça Jinwar, a vila ecológica de mulheres livres em meio à guerra no Oriente Médio
lado b, track 21 [leituras ecofeministas]
Formada por trinta casas e um grupo de dezenas de mulheres e crianças, Jinwar – a vila das mulheres livres – está localizada no nordeste de Hasaka, Síria. Em uma sociedade cujos resquícios do patriarcado feudal ainda são possíveis de serem vistos com facilidade – diferente do que acontece nas sociedades onde o patriarcado capitalista está mais desenvolvido e menos explícito, como a nossa - Jinwar é práxis eco(feminista) centrada no modo de vida comunal e nas necessidades de mulheres e crianças. Em kurmanji (curdo), jinwar significa “terra das mulheres” e expressa os preceitos das teorias e práticas de Jineolojî - a ciência da mulher e da vida.
De religiões e etnias diferentes, as mulheres que vivem na aldeia são viúvas de guerra, ou escaparam de famílias abusivas. Outras estão lá justamente para viver uma vida comunitária e livre do domínio masculino. A construção da vila começou em março de 2017, depois das comemorações do Dia Internacional da Mulher, cinco anos após o que chamamos hoje de revolução de Rojava.
Além das casas, Jinwar conta com uma escola (a Academia de Mulheres), uma padaria e cozinha comunais, uma pequena loja, além dos espaços para agricultura ecológica, base da economia das mulheres que vivem ali de forma quase auto-suficiente. Todas as residentes podem participar do conselho comunal e se envolver nas decisões sobre Jinwar. Homens podem visitar e ajudar nos trabalhos, mas não podem participar do conselho nem passar a noite.
Jinwar e a referência à Deusa
Embora seja pouco mencionado nos materiais disponíveis sobre o tema, a organização espacial da vila das mulheres livres foi pensada para expressar um forte valor simbólico e, vista de cima, é uma referência à Deusa. Como explica Fabiana Cioni no seu artigo Jinwar, the Place of Women as a Revolutionary Practice, ficou decidido que o núcleo das trinta casas:
... seria articulado para formar um triângulo com, no ortocentro, um espaço coletivo - parcialmente descoberto - conectado por um plano central. Essas geometrias elementares têm um forte valor simbólico, de fato tanto o triângulo quanto o círculo (ou a espiral) estão entre as formas ancestrais mais antigas referentes à Deusa Mãe. O triângulo, que lembra o pélvico da mulher, é sagrado desde o Paleolítico anterior e é o símbolo da Deusa.
A disposição das casas, todas voltadas para o centro, serve de proteção ao espaço coletivo. Em um dos vértices do triângulo é a entrada onde fica o nome da aldeia e no outro eixo está a escola e a Academia das Mulheres. Do lado de fora do triângulo, as plantações e o jardim servem como espaço de refugo entre Jinwar e o exterior.
As construções utilizam material típico da Mesopotâmia: um tijolo de barro, palha e gesso da terra (tijolo adobe) capaz de oferecer conforto térmico em verões secos e invernos frios. Dessa forma, o material é condizente com o local, não exige transporte e não está sujeito ao embargo sofrido por toda Rojava.
Os 10 anos da revolução de Rojava
Em 19 de julho de 2022, celebrou-se os 10 anos do aniversário do que ficou conhecida como a revolução de Rojava. Após os protestos tomarem as ruas durante a Primavera Árabe, em 2011, o governo Sírio inicia uma guerra contra a população que acaba resultando em uma disseminada guerra civil. Os curdos na região norte e leste da Síria foram deixados à mercê nos territórios sem nenhuma proteção do estado Sírio, que estava mais preocupado em defender sua capital, Damasco, das diversas tentativas de desestabilização do governo por parte não só de civis organizados como de diversos grupos terroristas que se formaram na região.
Organizados por meio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) desde 1978, os curdos aproveitaram o momento de total abandono para tomar as estruturas públicas para si e criar novas totalmente independentes do governo, instalando um modo de autogoverno e autodefesa do povo orientados por princípios comunalistas baseados nas ideias do Confederalismo Democrático, projeto social e político do líder curdo e co-fundador do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), Abdullah Öcalan.
As forças de autodefesa curdas foram cruciais para derrota do Estado Islâmico, que tomou conta de parte da região após 2011. À época, foram as mulheres curdas segurando armas o que mais chamou atenção da mídia internacional: como, em uma das sociedades mais abertamente conservadoras, mulheres estão no front armado?
Mas o papel das mulheres na revolução de Rojava extrapola em muito a imagem fetichista imposta às guerrilheiras curdas pela mídia ocidental. Na verdade, para serem tratadas como iguais por seus colegas de partido e conseguirem de fato estar nos espaços de tomada de decisão e serem respeitadas, elas precisaram pegar em armas e criar espaços de atuação exclusivos, bem como garantir a participação ativa das mulheres em todas as frentes de organização.
Criada em 2012 sobre o nome de Yekîtiya Star, a Kongra Star hoje é uma organização guarda-chuva para os diversos grupos de mulheres, entre eles o YPJ, milícias de autodefesa armada formadas por mulheres; as Unidades de Proteção Popular, que substituem a polícia – e são responsáveis por lidar com casos de feminicídio, violência sexual e outras; e o Comitê Jineolojî, cujo trabalho de pesquisa acontece em paralelo com o trabalho em centros educacionais para mulheres, escolas, universidades e movimentos de base.
O futuro de Jinwar
Os curdos formam a maior nação sem estado com cerca de 40 milhões de pessoas. Desde o fim do Império Otomano, a população curda vem sendo perseguida e assimilada nos 4 países que formam o Curdistão: Iraque, Síria, Turquia e Irã. Com o estabelecimento de Rojava e o fortalecimento da organização curda, as tensões continuaram escalando e a pressão para minar o projeto revolucionário do Confederalismo Democrático, bem como tomar de volta os territórios liberados do Estado Islâmico pelos curdos, sobretudo por parte do Estado turco, é incessante.
Sendo o segundo maior exército da OTAN, a Turquia tem levado adiante uma série de operações militares em território sírio – fazendo uso de armas químicas e operando bombardeios em espaços turísticos e de civis – contra os curdos. No último ano, o presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, fez uma série de demandas para que Suécia e Finlândia pudessem se tornar membros da OTAN. Entre as demandas do acordo trilateral está apoiar a Turquia na luta contra o PKK.
Nos 10 anos da revolução de Rojava e 5 anos de Jinwar, o projeto de mulheres livres segue existindo, mas não ileso de ameaças. Localizada a pouco quilômetros de distância dos territórios ocupados por Erdogan desde 2019, da aldeia de mulheres é possível ouvir os ataques diários à cidade de Tel Tamer feito por parte dos grupos terroristas e milícias ligadas à Turquia e pelo exército turco.
O principal interesse em ocupar a região é retomar os territórios perdidos com a assinatura do Tratado de Lausane, em 1923, e cessar o projeto do Confederalismo Democrático na região, evitando também que os curdos conquistem novos territórios - e adeptos ao movimento revolucionário.
Ainda que em meio ao conflito e a guerra, Jinwar segue não só (re)existindo, mas oferecendo para as mulheres de todo o mundo um exemplo de vida comunal, ecológica e livre de homens. Ademais, Jinwar, e a organização das mulheres curdas como um todo, também nos mostra a necessidade de mulheres terem espaços políticos exclusivos para defesa de seus interesses de classe, que nunca serão exatamente os mesmos dos nossos camaradas homens.
Complete a leitura:
→ Bônus Track #3: ecofeminismo e Rojava: Maria Mies, Öcalan e Jineolojî [leituras ecofeministas]
→ Bônus Track #13: a luta de libertação das mulheres curdas
→ Bônus Track #7: jin, jiyan, azadî: a história do movimento de mulheres do Curdistão
Até a próxima,
Marina Colerato
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