Esse texto é um trecho traduzido do livreto Jineolojî, publicado pelo Comité de Mujeres en Solidaridad con Kurdistán, em 2017. O livreto completo, em espanhol, pode ser acessado aqui.
A base principal de Jineolojî é luta de libertação das mulheres curdas
O paradigma do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (Partiya Karkerên Kurdistan, PKK), que se esforça para desenvolver uma forma organizada em busca da realização da liberdade coletiva, surgiu sob a influência de ideias e movimentos de esquerda da década de 1970. No entanto, desde a sua fundação, a luta de libertação das mulheres foi expressa como um dever.
A crença de que a liberdade das mulheres é um pré-requisito para a liberdade coletiva é crucial para os conceitos e estruturas do PKK. Desde o início desta configuração, Sakine Cansız desempenhou um papel crucial na luta para garantir uma organização em torno das mulheres.
No seu terceiro Congresso, o PKK deu os primeiros passos para uma organização diferenciada. A essência da Luta de Libertação das Mulheres do Curdistão manifestou-se nas primeiras análises de personalidade. As análises no nível pessoal revelaram dados importantes sobre como a realidade social influenciou a formação da personalidade. A avaliação feita por Öcalan no terceiro Congresso do PKK, “O que está sendo analisado é a sociedade, não o indivíduo; é história, não o momento” pode ser considerado como uma importante contribuição para a análise da transformação social e sua conceituação.
O primeiro passo para transformar a luta pela liberdade em um poder organizado, que começou com a mudança individual, foi a fundação da União Patriótica das Mulheres do Curdistão (Yekitiya Jinên Welatparezên Curdistão, YJWK) em 1987. Essa organização questionou a construção da mulher e da família em condições históricas e iniciou debates sobre os problemas da organização das mulheres. Com a manifestação do YJWK, a libertação das mulheres, bem como as perspectivas de libertação nacional e de classe começaram a ser destacadas. As primeiras avaliações teóricas sobre a exploração patriarcal da mulher foram feitas durante esse processo. Essas avaliações teóricas foram integradas ao tecido social e compiladas no livro de Öcalan, “A Questão das Mulheres e da Família no Curdistão”.
A YJWK, primeira organização de mulheres do Curdistão, que se desenvolveu com caráter revolucionário e libertário, organizou e realizou trabalhos marcantes no período entre 1987 e 1993. As conquistas que as mulheres alcançaram e as transformações que alcançaram com sua luta pela liberdade neste período resultaram em uma perspectiva e estrutura teórica únicas sobre a libertação das mulheres dentro do PKK. Rompendo com os esquemas mentais da sociedade, esse arcabouço teórico encontrou rapidamente respostas na realidade prática. Com a fundação do exército feminino em 1993, outras mudanças sociológicas fundamentais ocorreram no PKK.
A principal força e vontade que foram conquistadas com a luta armada foram então usadas para a continuação e ampliação da organização YJWK. O exército das mulheres desempenhou um papel importante na multiplicação das experiências das mulheres curdas e do conhecimento adquirido através dela. Criou um espaço no qual as mulheres que queriam sair da espiral da modernidade capitalista e do patriarcado pudessem se expressar. A base da participação massiva das mulheres nas forças armadas do PKK consistiu na decisão das mulheres de se separarem de todo tipo de relações hegemônicas.
Pegar em armas nas montanhas para lutar pela libertação do Curdistão criou experiências muito fortes para mulheres que queriam enfrentar todo tipo de ataque da modernidade capitalista. Enquanto as mulheres curdas lutaram por sua existência contra o Estado-nação, elas também lutaram contra os homens por sua existência na linha de frente das guerrilhas.
O conflito mental dentro da guerrilha mostrou que a aliança entre patriarcado, capitalismo e Estado penetrou em todas as rachaduras sociais; portanto, não basta resolver o sistema pela perspectiva da luta de classes e dos movimentos de libertação nacional. Ficou claro que a libertação das mulheres tinha que ser desenvolvida através de uma análise mais profunda do sistema.
Ao mesmo tempo, tornou-se evidente a necessidade das mulheres por uma alternativa, por estruturas organizacionais autônomas. A luta das mulheres contra todo tipo de marginalização e discriminação desafiou o tecido social construído com base no poder fora e dentro do movimento. Nesse processo, que foi definido como a "luta de gênero" dentro da guerrilha, as mulheres tomaram consciência da [necessidade da] autodefesa contra as implicações da dominação masculina e contra os ataques diretos. Mais importante ainda, foi entendido que a liberdade das mulheres não era uma questão que pudesse ser adiada até depois da resolução da questão curda. A necessidade de lutar sempre contra as perspectivas masculinas dominantes se manifestou como uma verdade básica nas organizações de mulheres no Curdistão.
A trajetória das mulheres em busca de liberdade até a linha de frente da guerrilha está relacionada à existência de uma organização e funcionamento dentro do PKK que foram vistos como uma resposta a essa necessidade. Dessa forma, foi uma fuga [para as montanhas] dos centros urbanos - onde a modernidade capitalista e as estruturas patriarcais delimitavam fronteiras. Ao mesmo tempo, houve um crescimento significativo do ativismo social e da busca pela liberdade de forma abrangente.
As experiências e acúmulo do exército de mulheres criaram uma base para o avanço da luta de libertação das mulheres.
A União de Libertação das Mulheres do Curdistão (Yekitiya Azadiya Jinên Kurdistan, YAJK), fundada em 8 de março de 1995, foi um passo decisivo na emergência do vínculo entre liberdade e organização. Com a declaração do YAJK, a organização autônoma de mulheres se refletiu em todos os campos de luta, o que desempenhou um papel importante na realização da auto-organização das potencialidades e na politização das mulheres.
O campo de atuação das mulheres expandiu-se em termos organizacionais das montanhas às cidades. O exército das mulheres as levou a se apresentarem como poderosas e obstinadas na luta e batalha por sua existência. As mulheres em resistência de um povo colonizado vivenciavam no sentido social o quanto podiam mostrar sua força de vontade quando se organizavam.
A organização do YAJK e seus resultados forneceram uma base para a teoria de Abdullah Öcalan; "Mate o macho dominante." O lado explorador, hegemônico e intoxicado de poder dos homens começou a ser questionado. Ao mesmo tempo, definiu-se que os homens também precisavam se libertar dos padrões patriarcais. A teoria do “divórcio ilimitado”, que visava tornar visível a questão da liberdade tanto para mulheres quanto para homens, tornou-se um importante passo que permitiu que ambos os sexos tomassem consciência de sua própria realidade. Essa conceituação contribuiu para que as mulheres se conscientizassem de seu próprio poder e fortalecessem sua vontade, fazendo eco de suas experiências de vida.
A Ideologia de Libertação das Mulheres, declarada em 1998 e válida até hoje, foi aberta ao debate como teoria. Além disso, essas discussões não foram realizadas por um pequeno grupo de elite; todos os homens e mulheres do PKK foram incluídos neste processo de discussão. A Ideologia de Libertação das Mulheres foi conceituada em cinco princípios básicos que criaram novos fundamentos de vida para as mulheres, os primeiros povos a serem colonizados.
Resumo dos princípios da Ideologia de Libertação das Mulheres
Os princípios básicos da Ideologia de Libertação das Mulheres são welatparêzî; viver baseado em um pensamento livre e uma vontade livre; auto-organização; a determinação de lutar e a ética-estética. Esses princípios são apresentados a seguir. O princípio Welatparêzî é visto como o princípio que conecta a terra com a ideologia, produção e cultura das mulheres. Contra o nacionalismo e a colonização, destaca-se o amor à própria terra. É através desta ideia que as pessoas aprendem, desenvolvem e protegem o tecido das suas sociedades, os seus valores e objetos históricos. Foi graças a isso que as mulheres puderam participar da sociedade com livre arbítrio e liberdade de expressão. É através desta noção que mulheres puderam questionar e desenvolver tanto a sua própria luta pela emancipação como o seu movimento de libertação nacional.
O princípio do Livre Pensamento e Livre Voluntariado é uma noção desenvolvida para superar o controle patriarcal sobre a mente das mulheres. Não podemos esperar que mulheres privadas de vontade própria desempenhem um papel determinante na superação da sociedade patriarcal. Ter vontade própria depende de ter conhecimento e, portanto, para desenvolver uma vontade própria, a mulher deve primeiro ter o autoconhecimento e a autoconsciência. De acordo com isso, há uma forte ligação entre estar informado e ter livre arbítrio.
O princípio organizador é a base necessária para realizar perspectivas e sem ele nenhuma perspectiva pode se tornar realidade. O líder do povo curdo Abdullah Öcalan disse: “Sem organização, o indivíduo/a é impotente. Os primeiros passos da organização começaram com as mulheres. São as mulheres que devem enfatizar a importância fundamental da organização para obter força”. Desta forma, o líder curdo defendeu a organização das mulheres em todos os níveis da sociedade. Ele também aponta que "as mulheres que confiam na gratidão dos homens estão destinadas a perder".
O princípio da Luta é também um dos principais princípios da ideologia da libertação das mulheres, porque as mulheres precisam lutar contra o sistema patriarcal para poder adquirir conhecimento e voluntariamente possuir e formar uma força poderosa.
Öcalan aponta que, “é pela falta de luta que a identidade de mulheres foram trancadas entre quatro paredes”. Ele ressalta que as mulheres precisam construir resistência ideológica, política, organizacional e cultural – em suma, as mulheres precisam lutar em todos os níveis, em todas as áreas da sociedade.
O princípio da Ética e da Estética também tem sido considerado como princípio de uma vida livre. Foi dada importância à necessidade de conduzir uma luta na guerra, como guerrilheira, e na política, considerando a ética e a estética. Ficou estabelecido que somente assim as mulheres poderiam se libertar e a sociedade se transformar. A beleza vai além da noção de ser atraente para os homens, e se torna sinônimo de valores de liberdade, cultura e ética. Este princípio foi criado com o famoso ditado de Öcalan; "Quem luta torna-se livre, quem se torna livre torna-se belo e quem se torna belo é amado."
O primeiro partido de mulheres, chamado Partido das Mulheres Trabalhadoras do Curdistão (Partiya Jinên Karkerên Kurdistan, PJKK), foi estabelecido em 8 de março de 1999 para representar de forma mais prática a ideologia da luta das mulheres. A fundação deste primeiro partido de mulheres foi um passo importante em termos de uma nova visão para desafiar o sistema civilizatório patriarcal, e todas as suas variantes e métodos.
A organização das mulheres em seu próprio partido começou logo após a conspiração internacional contra o líder curdo Abdullah Öcalan, que terminou com sua prisão em confinamento solitário na ilha de Imrali, na Turquia. Öcalan, que descreveu a “formação de um partido de mulheres” como um de seus trabalhos inacabados, viu a formação desse partido como uma forma de garantir as perspectivas teóricas e pragmáticas do movimento. A organização do partido das mulheres difundiu constantemente as formas e conteúdos da luta de libertação das mulheres, interagindo com o nível de consciência, desenvolvimento e progressismo da sociedade.
Dessa forma, o PJKK ampliou a perspectiva de sua organização e sua luta. Diante dessas bases, no terceiro Congresso do movimento de libertação das mulheres em 2000, o nome foi mudado para Partido das Mulheres Livres (Partiya Jinên Azad, PJA). A PJA foi criada para assumir a responsabilidade geral e incorporar as experiências das mulheres curdas com as das mulheres de outras nações. No Curdistão, a PJA fez progressos significativos na organização das mulheres e na busca de respostas para a pergunta “em que tipo de sociedade as mulheres devem viver?”. Em 2002, a AJP preparou um Projeto de Contrato Social da Mulher e o apresentou a outras mulheres e organizações de mulheres. O esboço foi incluído na agenda de diversas atividades e conferências para fortalecer a cooperação e o diálogo com mulheres de todo o mundo. Nesse contexto, a AJP também se juntou aos debates sobre a Constituição Mundial para as Mulheres. Além disso, a PJA estabeleceu relações e redes com diferentes organizações de mulheres envolvidas no campo dos direitos humanos, paz e democracia, bem como organizações revolucionárias de mulheres.
Modelo Organizacional do Movimento de Mulheres do Curdistão
Junto com a crítica às estruturas organizacionais da modernidade e marxista-leninistas, bem como o paradigma para a criação de uma sociedade democrática, ecológica e de liberação de gênero, a reestruturação do Movimento de Mulheres Curdas foi colocada em pauta em 2004. O novo As estruturas eram compostas pelo Partido de Libertação das Mulheres do Curdistão PAJK (Partîya Azadîya Jin a Kurdistan) no campo ideológico, a União de Mulheres Livres da YJA (Yekitiyên Jinên Azad) no campo social e político e as Unidades de Mulheres Livres da YJA-Star 'Star' (Yeknîyên Jinên Azad Star) no campo da autodefesa e o Comitê das Moças no campo da organização da juventude feminina. YJA-Star, como unidades de defesa antimilitares, desenvolveu uma força de defesa contra todas as formas de violência contra as mulheres e contra os ataques ao desenvolvimento de uma sociedade livre.
O PAJK foi organizado como um partido ideológico que garante o avanço da luta das mulheres em todas as áreas do Movimento de Libertação Curda. No entanto, no Curdistão, onde um renascimento das mulheres precisa ocorrer, foi proposta a necessidade de uma organização confederal de mulheres mais flexível e abrangente. Na direção de desenvolver ainda mais uma confederação de mulheres, o Alto Conselho das Mulheres (Koma Jinên Bilind, KJB) foi estabelecido em 2005 como uma organização confederal com a participação de mulheres e organizações de mulheres das quatro partes do Curdistão e de mulheres curdas que vivem no exterior . O Movimento Juvenil (Komalên Ciwan) também assumiu a responsabilidade de uma organização autônoma de mulheres, pois é de grande importância para a criação de uma sociedade democrática. A luta das mulheres jovens pela criação de uma identidade livre ocorreu dentro das estruturas do Conselho Superior da Mulher, KJB.
Em 2014, o KJB foi renomeado para Comunidades Femininas do Curdistão (Koma Jinên Kurdistan, KJK). A partir do estabelecimento de comunas e conselhos de mulheres em nível social de base, a KJK se preocupa com todas as questões relacionadas à autodefesa das mulheres, atividades sociais, políticas e organizacionais. KJK é um sistema que reúne as perspectivas e respostas das lutas das mulheres nas quatro partes do Curdistão. A KJK visa empoderar as mulheres para se tornarem a vanguarda de um movimento que constrói uma sociedade democrática, ecológica e livre de gênero. Ela se esforça para permitir que as mulheres quebrem o sistema patriarcal, empoderando-se para obter uma identidade livre em todas as condições sociais.
O movimento de libertação das mulheres do Curdistão progrediu continuamente através de um processo evolutivo de formação de diferentes estruturas organizacionais. Cada passo foi dado com o objetivo de desenvolver um modo de vida alternativo e mais progressivo para as mulheres e toda a sociedade.
Não afirmamos ter superado os desafios sistemáticos apresentados pela sociedade patriarcal às mulheres. Portanto, precisamos continuar nos organizando. Não aceitamos ser passivos ou inativos. Herdamos as teorias e ideologias do feminismo e vemos como nossa missão contribuir e avançá-lo.
Através de obras como a criação do Manifesto de Libertação das Mulheres e do Contrato Social, a própria liberdade do movimento progrediu significativamente. Todos esses passos teóricos e práticos foram levados em consideração para a emancipação da mulher. Uma vez que a emancipação feminina não é atribuída apenas a ganhos materiais para as mulheres, mas também a transformações ideológicas, teoria e prática se reforçaram. Como resultado, para a superação do patriarcado, identificou-se a necessidade de um movimento mais organizado intelectual e cientificamente. Jineolojî visa atender a essa necessidade e contribuirá com os 40 anos de experiência prática do movimento de libertação curda para ser usado no desenvolvimento de novos conhecimentos e teorias. Você fará uma contribuição crucial para a história da libertação das mulheres. Fornecerá bases ideológicas para a formação de um sistema centrado nas mulheres.
Complete a leitura
→ bônus track #11: a revolta da colônia mais antiga
→ bônus track #7: jin, jiyan, azadî: a história do movimento de mulheres do Curdistão
→ bônus track #3: ecofeminismo e Rojava: Maria Mies, Öcalan e Jineolojî [leituras ecofeministas]