jin, jiyan, azadî: a história do movimento de mulheres do Curdistão
bônus track #7
Jin, Jiyan, Azadi: A história do movimento de mulheres do Curdistão*
Nos aniversário de 10 anos da Revolução de Rojava, compartilho com vocês esse texto que é uma transcrição adaptada. Veja o vídeo aqui.
tempo de leitura: 12 minutos
Nos últimos anos, o movimento de mulheres curdas lutando contra a opressão e o fascismo ganhou muita atenção em todo o mundo. Tornou-se o movimento de mulheres mais organizado e dinâmico do Oriente Médio e fonte de inspiração e esperança para muitos movimentos ao redor do mundo que lutam pela liberdade.
Como isso aconteceu? Como um movimento tão inspirador cresceu dentro de uma das sociedades onde as mulheres são mais oprimidas? Para realmente entender o movimento das mulheres curdas, precisamos olhar mais de perto para a história do movimento e as condições nas quais ele se desenvolveu.
CAPÍTULO I : A REVOLUÇÃO NEOLÍTICA E O PAPEL DA MULHER
A origem do povo curdo remonta à Mesopotâmia, o berço da sociedade. Na época, na Mesopotâmia, havia deusas muito antes dos deuses. Inana1 - também conhecida como Ishtar ou Astarte - era uma delas, simbolizava o importante papel da mulher na sociedade mesopotâmica.
Nesse período, a mulher teve um papel de vanguarda na sociedade, construindo a vida, criando conhecimento e compartilhando valores materiais e imateriais. As mulheres lançaram as bases para um estilo de vida de aldeia baseado na agricultura e conectado à natureza e à vida comunal. Neste período, por volta de 12.000 a.C., é conhecido como a Revolução Neolítica, que foi uma revolução feminina devido ao seu papel.
No entanto, há cerca de 5000 anos atrás, elites masculinas, sacerdotes e reis confiscaram as criações e conhecimentos das mulheres, as excluindo e iniciando a fundação da sociedade patriarcal2. As mulheres tornaram-se propriedade dos homens, e sujeitos dos familiares, eram vistas como objetos ou máquinas de parir. Elas foram privadas de seus direitos. Abdullah Öcalan descreve este processo como uma "contrarrevolução" contra as mulheres. Ele resume essa severa destruição e alienação ao descrever as mulheres como “a primeira e a última colônia”.
Nos tempos antigos, os curdos eram principalmente animistas e zoroastrianos com uma forte conexão com a natureza e a cultura da deusa mãe. Embora a partir do século VIII, o Islã foi imposto na maioria da sociedade curda e os códigos patriarcais também foram impostos às mulheres através da religião.
CAPÍTULO II: QUEM SÃO OS CURDOS?
Hoje os curdos são mais de 40 milhões de pessoas, tornando-os uma das maiores populações sem um estado-nação. Os curdos são principalmente muçulmanos, embora existam muitas outras religiões, como Alawi, Ezidi e muitas outras. O curdo é uma língua indo-europeia que possui vários dialetos: Kurmanci, Sorani, Zazaki, Kelhuri e Hewrami/Gorani.
Até 1914, o povo curdo vivia principalmente sob o Império Otomano e Persa, durante o qual conseguiu preservar sua língua e cultura devido a revoltas tribais muitas vezes lideradas por mulheres. Graças a essa resistência, o povo curdo conseguiu manter uma certa autonomia.
Após a Segunda Guerra Mundial, em 1923 no Tratado de Lausanne, as potências internacionais traçaram um novo mapa do Oriente Médio, criando quatro novos estados-nação: Iraque, Síria, Turquia e Irã. O Curdistão se dividiu entre essas quatro partes, e os curdos foram forçados a viver nelas.
Os curdos como nação ficaram sem status legal ou direitos. A língua e os nomes curdos foram banidos, sua própria existência foi negada, enquanto os estados-nação iniciavam um processo de homogeneização. Qualquer resistência ou revolta foi recebida com opressão, massacres e genocídios. As mulheres sofriam tanto da opressão estatal quanto do patriarcado.
A negligência econômica, a opressão nacional e política em todas as quatro partes do Curdistão levaram ao deslocamento e à migração. É por isso que hoje existe uma diáspora curda de 4 milhões; 2,5 milhões deles vivem em países europeus.
CAPÍTULO III: O PKK E A LUTA PELA LIBERTAÇÃO DAS MULHERES NO CURDISTÃO
Na década de 1960, os movimentos de liberdade e libertação se espalharam pelo mundo, incluindo a Turquia, onde havia um forte movimento revolucionário juvenil. Neste contexto, Abdullah Öcalan iniciou o movimento de libertação curdo “O Curdistão é uma colônia”. Em 1978, junto com estudantes curdos e turcos, Öcalan financiou o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um movimento revolucionário pelo direito do povo curdo à autodeterminação. Inspirado pelas teorias marxistas-leninistas e maoístas, o objetivo do PKK era alcançar um Curdistão independente, unido e socialista.
Desde o início, as mulheres aderiram ao partido. Sakine Cansiz estava entre os financiadores do PKK. Para as mulheres, essa luta significava não apenas se opor ao estado colonial, mas também às restrições patriarcais da família e da sociedade. Sakine Cansiz descreveu assim esses primeiros dias:
“Este movimento abordou a essência da humanidade. Todos os nossos debates, nossas educações e discursos começam com a humanidade e os valores humanos. Estávamos falando sobre a situação humana no passado, em diferentes etapas históricas e discutindo os valores da humanidade. Mulheres que queriam entender, estavam se encontrando dentro desse movimento. No início da luta pelo Curdistão e da luta política, o envolvimento das mulheres era muito difícil. No entanto, conseguimos e isso nos deu força para moldar nosso movimento”.
Em 1980, durante um golpe militar fascista orquestrado pela OTAN, os movimentos de esquerda foram quase exterminados. Dezenas de milhares foram mortos ou presos. Na prisão de Diyarbakir, os prisioneiros do PKK abriram uma nova frente de resistência com o chamado “Berxwedan jiyan e (Resistência é vida)! Também na prisão, Sakine Cansiz foi uma das principais figuras dessa resistência, mostrando como as mulheres revolucionárias podiam lutar em quaisquer condições, desafiando a percepção das mulheres na sociedade curda.
Em 1984, começa a resistência armada do PKK contra o Estado turco e centenas de anos de repressão e escravidão. Durante esse período, também a sociedade curda, especialmente nas áreas rurais, se organizou sob a bandeira da Frente de Libertação Nacional do Curdistão (ERNK).
Em 1987, as mulheres curdas estabeleceram a União das Mulheres Patrióticas do Curdistão (YJWK), que se inspirou enormemente nas análises do líder do PKK, Abdullah Ocalan. Sua teoria de que “a libertação do Curdistão e da sociedade curda não pode ser alcançada sem a libertação das mulheres” deu às mulheres cada vez mais confiança para participar ativamente na organização e resistência.
Durante as revoltas dos anos 1990, centenas de milhares de mulheres se juntaram à resistência no Norte do Curdistão e saíram às ruas com vontade de liberdade e pedras nas mãos. Ao fazer isso, elas se tornaram a principal força por trás dessas revoltas. Na década de 1990, o PKK tornou-se um movimento de massa. Milhares de mulheres se juntaram à força de guerrilha e pegaram em armas, desafiando os papéis patriarcais de gênero na sociedade e até no movimento.
As mulheres militantes tiveram que lutar com as atitudes feudais e patriarcais de seus companheiros homens, que viam as mulheres como “mais fracas” e “mais vulneráveis”. Muitas mulheres combatentes e comandantes como Bêrîtan (Gulnaz Karataş) abraçaram essa luta, enfatizando a vontade das mulheres e seu lugar de direito em cada frente de resistência. Ela disse: "lute minha querida, lute forte! Lutando, existimos. Lutando, nos tornamos livres e bonitas e muito mais. Lutando, amamos".
Nas montanhas curdas, o Movimento de Libertação das Mulheres se beneficiou muito das perspectivas de Abdullah Ocalan. Na década de 1990, Abdullah Öcalan estava desenvolvendo uma nova ideologia radical para a libertação do gênero e da sociedade. Ele viu que nem a liberdade nem o amor podem ser realizados nas relações e identidades de gênero das relações de poder dominantes. A Teoria da Separação estabeleceu o caminho para as mulheres superarem suas identidades escravizadas; separando-se mentalmente, emocionalmente e culturalmente do sistema dominado pelos homens. Sua teoria de “matar o macho” encorajou os homens a subverter e lutar contra a masculinidade dominante que não é apenas um gênero, mas um enorme sistema de poder e exploração.
Em suas análises sobre como superar o impacto do patriarcado e do colonialismo na sociedade curda, ele desenvolveu métodos de “análise de personalidade”: questionando profundamente a mentalidade da mulher oprimida e do homem dominante, as estruturas familiares e os papéis de gênero subjacentes a ela. O passo mais essencial para as mulheres foi desenvolver amor e respeito por seu próprio gênero e identidade3; superar a alienação e ganhar autoconfiança e confiança em outras mulheres.
Em 1993, Ocalan pressionou pela criação de um Exército de Mulheres dentro das forças de guerrilha. Tornou-se um grande desafio para as mulheres que tiveram que se organizar como um corpo independente, decidindo sobre todos os aspectos da vida e da guerrilha. As mulheres tiveram que confrontar seus próprios padrões patriarcais internalizados, ao mesmo tempo em que analisavam a dominação masculina. Mudanças revolucionárias ocorreram na mentalidade, nas relações de camaradagem entre homens e mulheres, bem como na sociedade curda. Isso foi nada menos do que um a revolução dentro da revolução.
Em 1995, 300 mulheres realizaram o primeiro Congresso Nacional das Mulheres nas montanhas e estabeleceram a União da Liberdade das Mulheres do Curdistão YAJK, implementando uma organização autônoma de mulheres com base na vontade própria das mulheres e na perspectiva política e social. Foi uma etapa crucial.
Em 8 de março de 1998, a ideologia da Libertação das Mulheres elevou a luta pela liberdade das mulheres a outro nível. Sua estrutura inclui os princípios de amar e defender a pátria contra o colonialismo; pensar livremente e construir o livre arbítrio como mulheres; organizar e lutar pela libertação, bem como construir uma vida com uma compreensão livre da estética.
Exatamente um ano depois, em março de 1999, também foi estabelecido o Partido das Mulheres Trabalhadoras do Curdistão PJKK. Em 2004 foi reestruturado no Partido da Liberdade das Mulheres do Curdistão (PAJK), que desempenha um papel em quatro partes do Curdistão.
Em 15 de fevereiro de 1999, Abdullah Öcalan foi sequestrado e preso em uma operação da OTAN. A operação atacou a própria existência do povo curdo. Em confinamento solitário na ilha de Imrali, na Turquia, Öcalan elaborou um novo paradigma de luta pela liberdade que vai além da solução do problema curdo e propõe uma sociedade baseada na democracia, na ecologia e na libertação das mulheres.
O Confederalismo Democrático é uma alternativa às estruturas estatais. Promove uma Nação Democrática multiétnica, multicultural e multilinguística que se organiza em estruturas autónomas. A proposta de Öcalan é por uma democracia radical com representação igual de todas as identidades, incluindo minorias, e participação direta de todos. A sociedade tem direito à autodefesa contra a guerra e a violência, exatamente como uma rosa defende sua existência com espinhos. Se não se defender, uma sociedade está condenada à exploração e à opressão. As ideias centrais do Confederalismo Democrático são: nação democrática, democracia direta, confederalismo, ecologia, liberdade das mulheres, representação igual, participação direta e defesa pessoal.
A Comunidades de Mulheres do Curdistão (KJK), fundada em 2005, organiza mulheres de todo o mundo e estabelece grupos e movimentos em diferentes lugares. O objetivo comum é promover uma transformação social que reconheça as necessidades de todos os grupos sociais e étnicos. Para isso, o KJK organizou a vida e a sociedade através de comunas, conselhos e academias de mulheres em todos os campos da sociedade.
Em 2011, Jineolojî, a ciência das mulheres, foi estabelecida. A Academia Jineolojî identifica os desafios da revolução das mulheres e fortalece a compreensão do paradigma democrático e ecológico da libertação das mulheres4.
CAPÍTULO IV: O MOVIMENTO DE MULHERES NAS 4 PARTES DO CURDISTÃO E A REVOLUÇÃO DE ROJAVA
À medida que as teorias políticas continuavam avançando, apesar de constantemente ameaçadas pela violência e pelos estados fascistas, o movimento de mulheres começou a funcionar de maneira muito prática.
Em 1991, na Turquia, após o financiamento do primeiro partido pró-curdo, muitas mulheres curdas foram eleitas como prefeitas e deputadas. Em 2014, o sistema de co-presidência de representação igualitária de gênero foi implementado em todos os órgãos políticos e administrativos; mulheres no norte do Curdistão se organizam de forma autônoma sob a égide de um grande movimento.
O partido governante turco AKP tem como alvo as mulheres, seus ganhos democráticos e instituições. Milhares de ativistas curdas, incluindo prefeitas e parlamentares, foram presas e centenas de associações e organizações de mulheres foram banidas.
No Irã, a Comunidade de Mulheres Livres do Curdistão Oriental KJAR tem organizado e educando mulheres clandestinamente, apesar da cruel repressão estatal que levou a execuções. Em 2003, o sul do Curdistão, no Iraque, ganhou autonomia após a intervenção militar contra Saddam Hussein. É conhecida como região do Curdistão do Iraque. Embora algumas mulheres tenham participado da vida política, não se desenvolveu um movimento forte e autônomo de mulheres de base.
A diáspora das mulheres curdas também se organizou nas décadas de 1980 e 1990. Eles tornaram os Movimentos de Libertação do Curdistão e das Mulheres Curdas conhecidos em todo o mundo e se conectaram com outros movimentos de liberdade, criando importantes redes de solidariedade e alianças. Desde 2014, elas se organizam sob a égide do Movimento de Mulheres Curdas na Europa TJK-E. Embora a Europa não seja segura para as mulheres curdas.
Em 9 de janeiro de 2013, Sakine Cansiz com suas companheiras Fidan Dogan e Leyla Şaylemez, foram assassinadas em Paris pelo Serviço de Inteligência turco. A Revolução de Rojava trouxe o movimento das mulheres curdas para a vanguarda do cenário internacional.
Em 2011, a revolta síria contra o regime de Bashar Al Assad deu a oportunidade de organizar Rojava, Curdistão Ocidental, com o sistema da Autonomia Democrática. A Revolução de Rojava tornou-se conhecida em todo o mundo. A YPJ, Unidade de Proteção à Mulher, foi elogiada pela eficácia e disposição de combater não apenas o ISIS, mas o patriarcado dentro da sociedade. As mulheres comandantes desempenharam um papel de liderança nas grandes batalhas. Combatentes como Arîn Mirkan e Avesta Xabur, que sacrificaram suas vidas pela revolução, tornaram-se o símbolo das mulheres revolucionárias. Mulheres internacionalistas como Ivana Hoffmann da Alemanha, Alina Sanchez da Argentina e Anna Campbell da Grã-Bretanha também se juntaram e caíram mártires enquanto defendiam a revolução.
Os conselhos, comunas e organizações de mulheres são o coração pulsante de Rojava. As mulheres estão organizadas no Movimento de Mulheres Kongra Star. A Kongra Star capacita, mobiliza e educa as mulheres para a auto-organização, a fim de garantir que a revolução de Rojava continue sendo uma revolução das mulheres. Mulheres que estavam restritas ao papel de mãe e dona de casa reivindicaram seus direitos e estão participando de organizações comunitárias, cooperativas e instituições de mulheres. As “leis das mulheres” do norte e leste da Síria promovem a liberdade e a igualdade, protegendo as mulheres da violência e da discriminação no contexto familiar.
O sistema de co-presidência de representação igualitária de gênero está em vigor em todos os níveis em todas as estruturas políticas e administrativas da autogestão no norte e leste da Síria. A vida política não é mais um domínio dominado por homens.
Todas as conquistas da revolução de Rojava são o resultado de uma longa e difícil luta e grandes sacrifícios de muitos. Muitas mulheres estão dispostas a se sacrificar porque veem o caminho da mudança, do amor e da beleza. Toda mulher caida na luta vive nas mães, lutadoras e jovens de Rojava, recuperando suas vidas e futuros.
O Movimento das Mulheres Curdas ainda é uma personificação do slogan desde o início: Resistência é Vida! E o objetivo da vida é a liberdade. Sem a liberdade das mulheres não haverá vida livre e, portanto, outro grito que ecoou em todo o mundo do Movimento das Mulheres Curdas é Jin! Jiyan! Azadi! Mulheres! Vida! Liberdade!
Para saber mais sobre a deusa Inana, indico a publicação de mesmo nome, da editora Sob Influência, que traz a tradução da primeira poesia escrita na história e dedicada à deusa. Saiba mais aqui.
Para saber mais sobre o desenvolvimento das sociedades patriarcais, veja GERDA, Lerner. A Criação do Patriarcado. São Paulo: Cultrix, 2019.
É importante ressaltar aqui que, dentro do contexto do movimento curdo, é possível entender esse “amar ao gênero” não como uma reverência aos papéis sociais estabelecidos pela sociedade patriarcal para as mulheres, que as leva ao auto desprezo (ver BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. São Paulo: Bertrand Brasil, 2019), mas sim como um auto amor de classe que possibilite as mulheres romperem com os padrões de gênero (macho dominante/fêmea submissa) do ponto de vista objetivo e subjetivo.
Marina, eu li há uns anos o livro "A Revolução Ignorada" e me interessei profundamente pelo movimento das mulheres Curdas, é um exemplo de resistência e força das mulheres em uma sociedade tão conservadora, que nos sirva de inspiração.