por que ler Maria Mies: potência (eco)feminista e lutas de classes
lado b, track 17
escrevi essa track ouvindo o álbum Narrow Stairs, do Death Cab for Cutie. a minha faixa preferida, não lembro se já mencionei antes por aqui, tem oito lindos minutos:
tempo de leitura: 12 minutos
Conheci o trabalho de Maria Mies há dois anos, mais ou menos na mesma época em que comecei a ler A Criação do Patriarcado, da Gerda Lerner. Algum tempo depois, em Dívida, do David Graeber, vejo que o trabalho de Lerner serve como uma das referências para o antropólogo - e que os três autores, apesar de terem escrito em épocas distintas e nem sempre mencionarem um ao outro, dialogam bastante em suas ideias.
Foi nessa época também que comecei a acompanhar as mulheres curdas e a revolução de Rojava. Lembro de estar em um momento de completa apatia em termos de convivência social por uma série de motivos outros que não só a já suficiente pandemia. Mas conforme pesquisava sobre Rojava, mais me interessava pela forma de organização social e prática política das mulheres curdas, e algumas ideias do ecofeminismo socialista dos anos 70 e 80 pareciam ressoar nas ideias de Öcalan. No entanto, foi essa pesquisa aqui que me fez enxergar o link entre as duas coisas e ficar ainda mais animada com o que está acontecendo no Norte e Leste da Síria.
Maria Mies, junto com Claudia von Werlhof e Veronika Benholdt-Thommsen, foram responsáveis por resgatar as aproximações entre o trabalho de Rosa Luxemburgo em A Acumulação do Capital (1913) com o feminismo alemão nos anos 80. Um dos destaques da análise teórica do trio está no estabelecimento das relações entre a exploração das mulheres, da Natureza e do Sul global (colônias e povos racializados) no capitalismo patriarcal1 a partir da análise de Luxemburgo acerca do caráter permanente da acumulação primitiva e, por consequência, a violência permanente como fato econômico.
Isabel Loureiro faz esse resgate na introdução à edição brasileira de Patriarcado & Acumulação Em Escala Mundial: Mulheres na Divisão Internacional do Trabalho, escrito por Maria Mies em 1986, com tradução do Coletivo Sycorax, publicado essa semana pela Ema Livros em parceria com a Editora Timo. Na introdução, a professora ressalta a influência do pensamento da “trinca de pesquisadoras que ficou conhecida como ‘o grupo de Bielefeld’” para a práxis feminista da época e como o trabalho com mulheres do Sul, sobretudo indianas, com quem Mies conviveu durante os três anos que morou na Índia, foram importantes para as feministas serem de fato sensíveis às questões desses grupos, sobretudo das mulheres.
Foi essa publicação de Mies, e Women: The Last Colony (1988), escrito pelo trio, ambos com tradução para o turco, duas das diversas referências responsáveis por contribuir com o pensamento do líder curdo e com a práxis curda acerca da libertação das mulheres e das formas de superação possível do capitalismo patriarcal, conforme argumentou Piccardi. Nesse sentido, acredito ser bastante pertinente o entendimento de Jineolojî como uma resposta ainda que não intencional à necessidade levantada por Mies de que um “outro paradigma da ciência… tem que vir de uma visão de mundo diferente, uma visão diferente da relação entre os seres humanos e nosso ambiente natural, da relação entre mulher e homem, da relação entre diferentes pessoas, raças e culturas” (MIES e SHIVA, 2014, p. 52). Uma outra ciência, que não fundamentada nos princípios burgueses, coloniais e machistas, é absolutamente necessária para um outro mundo (não capitalista, não patriarcal e não colonial).
É particularmente importante para nós percebermos como as ideias de Mies foram consideradas para uma práxis de libertação de um grupo de pessoas do Sul global, historicamente perseguido, majoritariamente pobre e onde a opressão das mulheres mantém traços do patriarcado feudal (o que não necessariamente signifique um “patriarcado pior”, mas sim diferente do patriarcado capitalista). Isso porque (i) fica evidente que Mies tinha uma perspectiva anticolonial incontestável e (ii) entendia esse grupo de sujeitos como aqueles capazes da revolução. Nesse último ponto, essa conclusão é reafirmada pela própria história das revoluções do século XX, o século das revoluções dos “povos oprimidos” e do trabalho gratuito que “lançaram as bases de uma mudança das relações de força” (LAZZARATO, 2022, p. 17).
Outro ponto que talvez passe despercebido acerca do trabalho de Mies, mas que é importante por se conectar à práxis curda acerca da não reinvindicação de um Estado-nação e, também, à ecologia social de Murray Bookchin e ao movimento anarquista2, é a definição de Mies sobre o movimento feminista:
“Mas o movimento feminista é basicamente um movimento anarquista. Ou seja, não quer substituir uma elite de poder (masculina) por outra elite de poder (feminina), e sim buscar construir uma sociedade não hierárquica e não centralizada, na qual nenhuma elite viva da exploração e da dominação sobre outros” (MIES, 2022, p.100).
Contudo, a atualidade e acuracidade da análise de Mies em seus escritos (o que explica a importância de termos mais uma tradução para o português de sua obra) pode ser observada não só na práxis curda, como também no atual contexto de intensificação da exploração dos territórios naturais e seus povos bem como dos corpos das mulheres, sobretudo utilizando da violência e das incessantes tentativas de nos tirar a autonomia sob nossa capacidade reprodutiva por meio tanto da proibição do aborto de um lado e da esterilização forçada de outro, quanto do desenvolvimento da indústria da reprodução, da engenharia genética e do transhumanismo.
Nos anos 80, a ecofeminista alemã já vinha alertando sobre o uso do corpo das mulheres como, literalmente falando, espaço de acumulação de capital. É impossível ler Mies e não relacionar com o que estamos vendo acontecer hoje em termos de violência contra as mulheres, exploração da Natureza e dos povos não ou mal remunerados dentro da atual divisão internacional do trabalho.
Com o aprofundamento das crises, a lógica de pilhagem exposta por Mies fica evidente a ponto de ser incontestável quando observamos a nossa sociedade neoliberal3. O que torna sintomático o fato de tentarem nos impedir de falar sobre divisão sexual do trabalho quando essa fundamenta a lógica operante da exploração da Natureza, dos grupos “Outros” disponíveis como mão de obra barata (como pessoas em contextos racializados e empobrecidos) no sistema capitalista patriarcal. Há quem diga que não devemos mais falar em patriarcado sobremaneira - como se esse nunca tivesse existido ou tivesse desaparecido por meio de um passe de mágica, ignorando completamente as informações (estatísticas quantitativas e pesquisadas qualitativas) acerca da condição de classe das mulheres ao redor do globo e como o neoliberalismo tem intensificado a violência (sobretudo sexual) para dispor de mão de obra barata em diversos contextos4. Querer calar um trabalho intelectual de uma mulher normalmente sinaliza o quanto ele tem potencial subversivo.
Outro ponto pertinente e cuja hipótese se confirma hoje é que, ainda nos anos 80, Mies foi rápida em alertar para como o conceito de “gênero” traria consequências negativas para o movimento feminista como um todo, fomentando um novo apagamento das mulheres e obscurecendo a hierarquia sexual que organiza as sociedades capitalistas patriarcais, estejam elas no Norte ou no Sul global:
“Com a divisão dualística entre sexo e gênero, no entanto, ao tratar um como biológico e outro como cultura, a porta seria novamente aberta para aqueles que desejam tratar a diferença sexual entre os humanos como assunto da anatomia ou como “matéria”. O sexo como “matéria” pode então se tornar um objeto para o cientista, que pode dissecá-lo, analisá-lo, manipulá-lo e reconstruí-lo de acordo com seus planos. Uma vez que todo valor espiritual foi retirado do sexo e encapsulado na categoria gênero, os tabus que até agora ainda cercavam a esfera do sexo e da sexualidade podem ser facilmente removidos. Essa esfera pode tornar um novo terreno a ser explorado pela engenharia biomédica para fins de tecnologias de reprodução, engenharia genética e eugênica, e por último, mas não menos importante, para a acumulação de capital” (MIES, 2022, p. 79).
Já falei antes que o fechamento do cerco acerca da autonomia das mulheres sobre seus corpos e sua capacidade reprodutiva é um golpe duplo: por um lado, garante a exploração dos corpos das mulheres e um distanciamento cartesiano e positivista entre matéria-mente-espírito que dificulta o entendimento e, portanto, a superação da histórica dominação masculina5. Por outro, garante a abertura de novos mercados para acumulação de capital por meio de uma “expansão através do espaço” (LAZZARATO, 2022, p. 50), onde o corpo é território de conquista. Em uma reportagem do ano passado para a Spector World sobre a chamada “indústria do gênero” e do transhumanismo, Mary Harrignton trouxe algumas cifras significativas sobre esse novo espaço de acumulação:
“Na medicina transgênero, o mercado de terapias hormonais foi estimado em US$ 21,8 bilhões em 20196 e deve crescer quase 8% ano a ano. As cirurgias também são uma área em crescimento, com um valor estimado de US$ 267 milhões em 2019 e que devem crescer a uma taxa anual composta de 14% até 2027, de acordo com a Grand View Research. Um relatório de autoria de pesquisadores de inteligência de negócios Global Market Insight sugeriu que o mercado de cirurgias de “confirmação de gênero” deve ultrapassar US$ 1,5 bilhão até 2026. […] Mas o potencial comercial na desregulamentação da manipulação de corpos humanos vai muito além da medicina transgênero. A biotecnologia é uma área de crescimento, apesar do choque econômico global do coronavírus: de acordo com um relatório da McKinsey de 2021, em 2020 o preço médio das ações das empresas de biotecnologia europeias e americanas aumentou mais que o dobro da taxa do S&P 5007”.
Fica fácil entender porque alguns bilionários importantes, como Bill Gates8, estão investindo não só nas carnes do futuro, mas também no que eu chamo de indústria do sexo e que compreende não só a venda do corpo da mulher por meio da prostituição e pornografia e, na outra ponta, através do casamento com sua carga expressiva de trabalho não remunerado9, como também venda de óvulos e de leite materno, aluguel de útero, construções estéticas que emulam partes sexuais, ingestão permanente de hormônios, etc.
Mies estava tudo menos errada quando afirmou que a abordagem dualística de sexo-gênero poderia fazer com que fosse possível abrir novos espaços para pilhagem capitalista. Como a autora coloca, pesquisadoras como Anne Oakley e outras que introduziram tal distinção entre sexo e gênero o fizeram considerando “essas categorias como ferramentas analíticas ou construções teóricas que ajudariam a pensar sobre ideias feministas”. No entanto, como conceitos são meios de construir a realidade, é preciso que eles ajudem a superar as formas de opressão e dominação, não reforçá-la. Mies continua:
“…é essencial que nossas categorias e conceitos sejam tais que nos ajudem a transcender o patriarcado capitalista e a construir uma sociedade em que nem mulheres, nem os homens, nem a natureza sejam explorados e destruídos. Mas isso pressupõe a compreensão de que a opressão das mulheres hoje é parte integrante das relações de produção patriarcais capitalistas (ou socialistas), do paradigma do crescimento constante e cada vez maior das forças produtivas, da exploração ilimitada da natureza, da produção ilimitada de mercadorias, da expansão constante de mercados e do acúmulo interminável de capital morto. Um movimento puramente cultural não será capaz de identificar as forças e poderes que se interpõe em nosso caminho. Tampouco será capaz de desenvolver uma perspectiva realista de uma sociedade futura livre de opressão e exploração” (MIES, 2022, p. 79).
Se hoje vivemos uma onda de apagamento das mulheres é porque a porta foi aberta com conceitos, práticas e ideias anteriores a nós - e precisamos entendê-las tanto para combatê-las como subvertê-las. Em ambas as obras traduzidas para o português, Maria Mies nos auxilia a encontrar bases para essa práxis feminista anticapitalista e responder à urgência de uma revolução que é ao mesmo tempo a afirmação de classe “e a negação que as abolirá”, articulando “revolução política e revolução social, revolução e devir revolucionário” (LAZZARATO, 2022, p. 16).
Com 91 anos e início de Alzheimer, Mies não consegue mais analisar o mundo ao seu entorno nem atuar para sua transformação. Mas seu legado é instrumento afiado para que pessoas ao redor do mundo, sobretudo as mulheres, continuem buscando a construção de sociedades não hierárquicas, ecológicas e de pessoas realmente livres.
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Se você chegou até, você talvez goste do texto: feminismo é luta de classes, que pode ser acessado aqui.
Você pode comprar o livro Ecofeminismo aqui e o Patriarcado & Acumulação Em Escala Mundial aqui. Esse último, em breve estará disponível para download gratuito no site do Coletivo Sycorax.
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Até a próxima,
Marina Colerato
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Os estudos decoloniais desenvolvidos posteriormente na América Latina aprofundarão ainda mais as relações das explorações dos povos do Sul e da Natureza a partir de perspectivas ameríndias e locais. Especificamente no Brasil, a agroecologia das mulheres campesinas pode servir como exemplo de práxis ecofeminista latino-americana. Ver COSTA, Maria da Graça. Agroecologia, (eco)feminismos e “bem viver”: emergências decoloniais no movimento ambientalista brasileiro.
Ariel Salleh demonstra as aproximações entre o ecofeminismo e a ecologia social, e rebate Janet Biehl em Social Ecology and “the man question” em Environmental Ethics, volume 5, edição 2, 1996, p. 258-273. Ver também MACGREGOR, Sherilyn. Making matter great again? Ecofeminism, new materialism and the everyday turn in environmental politics. Environmental Politics, volume 30, edição 1-2, 2021, p. 41-60.
Ver LAZZARATO, Maurizio. O Intolerável do Presente - A Urgência da Revolução: Minorias e Classes. São Paulo: Editora N1, 2022; e FALQUET, Jules. Práxis Neoliberalia - Mulheres e Reorganização Global da Violência. São Paulo: Editora Sobinfluência, 2022.
Ibidem.
Ver Lerner, Gerda. A Criação do Patriarcado. São Paulo: Editora Cultrix, 2020; e BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. São Paulo: Bertrand Brasil, 2019.
Em termos comparativos, esse é quase a soma do mercado total de beleza anti-idade no mundo todo. Segundo uma reportagem de 28 de julho na Vox, “de acordo com dados da Euromonitor International, o mercado antienvelhecimento cresceu de US$ 3,9 bilhões em 2016 para US$ 4,9 bilhões em 2021 somente nos Estados Unidos. O mercado global antienvelhecimento passou de US$ 25 bilhões para quase US$ 37 bilhões durante o mesmo período”. Acesse em: https://www.vox.com/the-goods/2022/7/28/23219258/anti-aging-cream-expensive-scam.
“O S&P 500 é o Standard & Poor's 500. Ele é uma carteira teórica das 500 ações mais representativas e negociadas na NYSE (Bolsa de Nova Iorque) e na NASDAQ. Este índice foi criado em 1957. Desde então, ele é considerado como o principal indicador do mercado acionário norte-americano”.
Entre os investimentos de Gates está a BIOMILQ que, segundo a própria descrição da empresa “é uma startup de biotecnologia de propriedade de mulheres, liderada pela ciência e centrada nos pais que desenvolve novas tecnologias para produzir leite humano fora do corpo”. Acesse em: https://www.greenqueen.com.hk/biomilq-series-a/.
Ver FALQUET, Jules. Práxis Neoliberalia - Mulheres e Reorganização Global da Violência. São Paulo: Editora Sobinfluência, 2022.
Referências Bibliográficas
LAZZARATO, Maurizio. O Intolerável do Presente - A Urgência da Revolução: Minorias e Classes. São Paulo: Editora N1, 2022
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. São Paulo: Editora Luas, 2021.
MIES, Maria. Patriarcado & Acumulação Em Escala Mundial: Mulheres na Divisão Internacional do Trabalho. São Paulo: Editora Ema, 2022.