No começo do mês, o áudio vazado do integrante do MBL sobre a situação das ucranianas foi instrumentalizado por homens da esquerda e a misoginia foi reduzida a uma questão de direita versus esquerda. Rápidos em criar uma narrativa de proteção de si e demonstrar total alienação e desrespeito pela condição das mulheres, homens têm ignorado nossa exaustão, repetidamente demonstrada. Somos obrigadas a lidar com machismo, sexismo e misoginia nos espaços progressistas e nas relações com homens da esquerda. Inclusive, instrumentalizar a pauta das mulheres e adentrar no debate feminista da forma e quando melhor convir é uma forma eficaz de mostrar desprezo pela luta das mulheres.
Não se apaga a existência do patriarcado nas narrativas se não há interesse em manter suas práticas e que o que temos visto é um constante apagamento histórico, bem como uma articulação misógina para atacar mulheres quando elas apresentam algum tipo de ameaça ao conforto do dominante.
História das mulheres e pertinências acerca do dualismo sexo/gênero
Mas não são só os homens e outros grupos de interesse que têm instrumentalizado o debate feminista para manter o status quo. É preciso reconhecer que mulheres também estão na zona cinza1 e muitas são rápidas em se juntar com homens para atacar outras mulheres e reforçar a misoginia. Podemos entender tal comportamento das mulheres também como uma vontade de se afastar da categoria dos dominados. Isso porque, “os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações. O que pode levar a uma espécie de autodepreciação ou até de autodesprezo sistemáticos” (BOURDIEU, 2019, p. 64).
Acredito que muito disso está relacionado ao total desconhecimento sobre a formação de si, como pessoa, como sujeito histórico e como classe. Infelizmente, poucas de nós somos incentivadas a entender sobre nossa história, seja ela individual (ou seja, quais processos formativos no âmbito da nossa história particular nos sujeitou e nos sujeita enquanto mulheres), seja ela coletiva (ou seja, como mulheres se tornaram e permanecem uma classe inferior aos homens?).
Na tentativa de ampliar o entendimento sobre essa divisão, tomada como aparentemente “natural” para uns ou como simples performance estética para outras, precisamos lembrar da formação das mulheres enquanto classe como um fato histórico e que, até os dias de hoje, impacta de diversas formas a vida de todas e todos nós.
Para tanto, começarei destacando alguns trechos da obra A Criação do Patriarcado, da historiadora Gerda Lerner, para ilustrar melhor a criação do patriarcado e das mulheres enquanto primeiro grupo de humanos entendidos como “não-humanos”, ou humanos como mercadoria:
“No período de aproximadamente mil anos, a ideia de “escravidão” foi colocada em prática e institucionalizada de maneira a refletir a própria definição de “mulher”. Pessoas do sexo feminino, cujas funções sexuais haviam sido reificadas em transações de casamento, eram, no fim do período, em discussão, em essência, consideradas diferentes dos homens em relação à esfera pública e privada. Assim como posições de classe dos homens foram consolidadas e definidas pela relação deles com a propriedade e os meios de produção, a posição de classe das mulheres foi definida por suas relações sexuais” (LERNER, 2019, p. 133-134, grifo meu).
Mais adiante, a autora desenvolve:
“… uma vez estabelecida a dominância masculina, as mulheres passaram a ser vistas de uma nova maneira. Elas podem até, a princípio, ter sido consideradas mais próximas da “natureza" do que da “cultura”, portanto, inferiores, embora não destituídas de poder. Uma vez comercializadas, não eram mais consideradas seres humanos, mas sim instrumentos à disposição dos homens, semelhante a uma mercadoria. […] O estigma de pertencer a um grupo que pode ser dominado reforça a distinção inicial. Não vai demorar para que as mulheres comecem a ser vistas como um grupo inferior. […] Quando a escravidão se tornou comum, a subordinação de mulheres já era um fato histórico. […] Para homens, o poder estava conceitualmente relacionado à violência e à dominação sexual. O poder masculino depende tanto da disponibilidade de serviços sexuais e econômicos das mulheres na esfera doméstica, quanto da disponibilidade e do desempenho da força militar” (LERNER, 2019, p. 137, grifo meu).
Em sumo, Lerner vai enfatizar essa distinção fundamental:
“Durante o segundo milênio a.C, a formação de classes ocorreu de forma que, para as mulheres, o status econômico e a servidão sexual estivessem ligados de modo indissociável. Assim, a posição de classe das mulheres foi desde o início definida de maneira diferente em relação à posição dos homens” (LERNER, 2019, p. 162).
Não é preciso de grandes análises para provar que o capitalismo-patriarcal se reproduz até hoje e continua se utilizando da materialidade corpórea para definir, a partir de critérios arbitrários, tal divisão de classe. A práxis nos informa que são mulheres que sofrem, objetiva e subjetivamente, com a dominação masculina2 e que esta só se sustenta por meio de um processo de socialização para a sujeição3.
As estatísticas responsáveis por mostrar as disparidades entre homens e mulheres falam por si só, não sendo necessário repassá-las aqui. Mas para melhor compreensão do contexto histórico e material das mulheres ao redor do globo precisamos esclarecer alguns equívocos acerca do debate sexo/gênero, que causam certas confusões quando estamos definindo mulheres enquanto grupo social.
Começamos com as pontuações das ecofeministas Ariel Salleh e Marie Mies, que nos são bastante úteis, sobretudo quando buscamos uma análise que dê conta de justiça não só social, como ambiental:
“Pensando de forma internacional sobre justiça, as mulheres constituem a maioria da população global de acordo com a categoria sexo/gênero. Ou usando outra lente sociológica, elas constituem metade de qualquer classe ou grupo indígena. Seja qual for a sua visão, as mulheres são a maioria global. E a maioria das mulheres é oprimida, tanto como corpo feminino generificado quanto como corpo feminino sexuado. Além disso, as duas condições podem se reforçar mutuamente. Em qualquer caso, um aprofundamento ecofeminista do pensamento ecossocialista reconhecerá as fontes biológicas de dominação social tanto quanto as discursivas. As realidades naturais e culturais interagem entre si e com a identidade de classe, traduzindo-se em efeitos materiais como pobreza e desvantagem social” (SALLEH, 2020, grifo meu).
A crítica ecofeminista Maria Mies sobre a construção dos conceitos sexo/gênero se mostra pertinente para entendermos tais categorias como ferramentas de análise, reforçando a relação inseparável de sexo e gênero, e alertando para a importância de usarmos os conceitos que melhor são capazes de transcender o dualismo sexo/gênero, não reforçá-lo:
Essa distinção de sexo como biológico e gênero como socialmente construído pode parecer útil à primeira vista, porque remove a irritação que a opressão das mulheres é novamente atribuída a sua anatomia. Mas essa divisão segue o padrão dualístico bem conhecido de separar "natureza" da "cultura" [...] Se as feministas agora tentarem sair dessa tradição definindo sexo como uma questão puramente material e biológica, e gênero como a "alta", cultural, expressão humana dessa questão, elas vão continuar o trabalho daqueles filósofos e cientistas idealistas patriarcais que dividiram o mundo em matéria bruta "ruim" (para ser explorada e colonizada) e os "bons" espíritos (para ser monopolizados por sacerdotes, mandarins e cientistas).
Não é surpresa que essa terminologia tenha sido adotada por todos os tipos de pessoas que não sentiriam, de outra forma, simpatia pelo feminismo. Se, ao invés de falarmos 'violência sexual', nós falamos 'violência de gênero', o choque é de alguma forma mitigado pelo termo abstrato, que retira toda a questão do âmbito da emotividade e do compromisso político e a coloca no discurso aparentemente objetivo e científico. Se a questão das mulheres é novamente removida a esse nível, muitos homens e mulheres, que não querem mudar o status quo, se sentirão novamente muito confortáveis com o movimento feminista.
Mas não nos deixemos enganar. O sexo e sexualidade humana nunca foram puramente questões biológicas cruas. Nem foram os corpos feminino e masculino uma questão puramente biológica. "Natureza humana" sempre foi social e histórica. A psicologia humana foi influenciada e moldada ao longo da história pela interação com outros seres humanos e com a natureza exterior. Portanto, sexo é uma construção tão cultural e histórica quanto o gênero o é.
[…]
Certamente Anne Oakley e outras que introduziram a distinção sexo e gênero não podiam prever esses desenvolvimentos; elas consideraram essas categorias como ferramentas analíticas apenas ou construções teóricas que ajudam esclarecer nossas ideias, mas conceitos também são formas de construir a realidade. Portanto, é essencial que nossas categorias e conceitos sejam capazes de transcender o capitalismo-patriarcal e nos ajude a construir uma realidade onde nem mulheres, nem homens, nem natureza sejam exploradas e destruídas. Isso pressupõe que nós entendamos que a opressão das mulheres é parte e parcela das relações de produção capitalistas patriarcais, do paradigma de crescimento infinito, sem limites para a destruição da natureza, produção de commodities, expansão dos mercados e acumulação de capital. Um movimento feminista puramente cultural não será capaz de identificar as forças e poderes que estão no nosso caminho. Nem serão capazes de desenvolver uma perspectiva realista de uma futura sociedade livre de exploração e opressão" (MIES, 2014, p. )
É válido trazer ainda a própria Judith Butler voltando atrás, ou, segundo a mesma, esclarecendo alguma confusão sobre gênero como performance incitada pelo livro Problemas de Gênero. Em Critically Queer4 ela retoma a questão:
“O equívoco sobre a performatividade de gênero é este: que gênero é uma escolha, ou que gênero é um papel, ou que gênero é uma construção que se faz, como se veste de manhã, que existe um “alguém” que é anterior a este gênero, aquele que vai ao guarda-roupa de gênero e decide com deliberação qual será o gênero hoje. Esta é uma descrição voluntarista do gênero que pressupõe um sujeito, intacto, anterior ao seu gênero” (BUTLER, 1993, p. 21).
Em Corpos que Importam: Sobre os Limites Discursivos do Sexo, a autora vai dizer que linguagem e materialidade estão “profundamente conectadas em sua interdependência” (BUTLER, 2019, p. 125). A violência material e simbólica, portanto, não se supera ignorando a construção do sexo/gênero que subjuga metade das pessoas do globo às piores condições objetivas e subjetivas de existência (como violência sexual, pornografia, tráfico de pessoas, prostituição, maternidade compulsória, estupro, pobreza menstrual, dependência física e emocional, etc.).
Ao mesmo tempo, imputar aos sujeitos a ação individual para subversão por meio de uma certa performatividade de gênero, ainda que incisiva e repetitiva, como Butler sugere, falha em endereçar com contundência as opressões estruturais e estruturantes das mulheres, bem como parece esquecer a inegável construção de classe feminina ao longo dos séculos. Ao mesmo tempo, como a autora mesmo afirma, a performatividade de gênero muitas vezes reforça o dualismo homem/mulher em arranjos que servem à heteronormatividade patriarcal, sendo apenas aparentemente subversivos5.
Rojava e o movimento das mulheres curdas
A partir desse entendimento de mulher enquanto classe, homens e mulheres comunistas têm um impasse de fato. Se não acreditamos na conciliação de classes, como podemos trabalhar juntos para superar a lógica da dominação iniciada há 5 mil anos? Questiono ainda, até que ponto tal cooperação nos convêm?
Na URSS, por exemplo, mulheres tiveram papel fundamental na revolução, inclusive ao pegar em armas. Tiveram, também, uma série de conquistas históricas como maior acesso à educação e a empregos, o Estado se responsabilizava por parte do trabalho de reprodução social oferecendo creches e escolas, elas gozavam mais e tinham maior acesso a direitos reprodutivos se comparada às mulheres sob o capitalismo na mesma época. No entanto, na Romênia, Albânia e URSS, sob Stalin, a hierarquia sexual foi reforçada e muitas mulheres foram obrigadas a ter filhos. Pautas como estupro, violência doméstica e assédio eram silenciadas. O interesse maior era manter as mulheres como trabalhadoras e mães (reprodutoras) para servir ao desenvolvimento da nação6.
Podemos olhar para o movimento de mulheres curdas para encontrar alguns caminhos possíveis. Uma série de fatores culminaram na possibilidade da existência e permanência de Rojava, mas a organização das mulheres em uma sociedade tribal e patriarcal, como a curda, foi essencial para a construção de um movimento realmente emancipatório.
Embora o papel de liderança de Abdulah Öcalan seja absolutamente indiscutível (e portanto seja impossível não reconhecer que o respeito dos curdos para com ele possibilitou a atualização e reorientação do movimento com base na libertação das mulheres), a insistência delas foi fundamental. Nas leituras sobre os acontecimentos, encontramos relatos sobre como não foi fácil para as mulheres terem suas demandas consideradas e ouvidas7. Justamente esse embate com o machismo estrutural que as levou a criação de espaços exclusivos de organização.
Mas ter espaços apenas de mulheres não gerou separatismo ou exclusão. Pelo contrário, possibilitou que mulheres se fortalecessem coletivamente para que suas organizações fossem completamente inseridas social, política, cultural e economicamente falando. Por exemplo, a organização de mulheres da comuna tem poder de veto sob decisões que, mesmo tomadas de forma coletiva, podem ferir os direitos das mulheres. Rojava é um bom argumento para os homens, brancos e negros, que, desde o início da organização do movimento de mulheres, nos acusam de promover dissidência e atrapalhar a luta de classes ou antirracista.
As tentativas de silenciamento por parte dos camaradas do próprio partido bem como a vontade de mandarem as mulheres de volta para os afazeres domésticos e para o trabalho de reprodução social, alienando-as da vida pública e política, não foram poucas. Um ponto de inflexão importante na história da revolução curda foi a criação do YPJ, as forças de autodefesa da Federação Democrática do Norte da Síria exclusivamente formada por mulheres. Do ponto de vista histórico, o controle da violência legítima e do aparato militar pelos homens foi essencial para o estabelecimento do patriarcado e da dominação masculina.
O último ponto que gostaria de chamar atenção é para como se debate abertamente a morte do macho dominante e da fêmea submissa. A ideia é aniquilar esteriótipos de masculinidade e de feminilidade, do que é ser homem ou mulher. Não reforça-los. Nesse sentido, homens passam por frequentes processos educacionais anti-machismo ao passo que mulheres buscam não reproduzir elementos considerados de feminilidade como uso de decotes e roupas consideradas sensuais, uso de maquiagem, etc.
Mas, para muito além de uma performance agênero, estamos falando de libertar as mulheres da submissão objetiva e subjetiva ao patriarcado, com educação para autonomia, emancipação e independência financeira, emocional e afetiva. Dessa forma, entendo o não uso de elementos considerados femininos como um dos resultados da completa ruptura com o chamado male gaze e todo seu aparato de adoecimento feminino em nome de um padrão de beleza moldado por homens para satisfazer homens.
É bastante comum mulheres se objetificarem ou se hiper-sexualizarem afirmando que tal conduta é “livre”, ou ainda, afirmarem ser um tipo de gosto pessoal e expressão de auto-estima construídos num vácuo, de forma a ignorar os processos sociais de subjetivação dos sujeitos e, como já destacamos, como essas forças de sujeição mantêm a posição de classe das mulheres como definida por suas relações sexuais.
Com Pierre Bourdieu, em sua obra sobre a dominação masculina e a violência simbólica contra mulheres8, podemos entender melhor como esse processo de sujeição do corpo se dá para. Não me aprofundarei muito neste ponto, mas destaco um trecho que pode ajudar a compreender a questão do olhar de si a partir do outro:
“Tudo, na gênese do habitus feminino e nas condições de sua realização, concorre para fazer da experiência feminina do corpo o limite da experiência universal do corpo-para-o-outro, incessantemente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelo discurso dos outros. A relação com o próprio corpo não se reduz a uma “imagem do corpo”, isto é, à representação subjetiva (self-image ou looking-glass-self), associada a um determinado grau de self-steam, que um agente tem de seus efeitos sociais (de sua educação, de seu charme, etc.) Semelhante modelo esquece que toda a estrutura social está presente no curso da interação, sob a forma de esquemas de percepção e apreciação inscritos no corpo dos agentes em interação […] essas propriedades corporais são aprendidas através de esquemas de percepção cujo uso nos atos de avaliação depende da posição ocupada no espaço social” (BOURDIEU, 2020, p.107 - 109).
Embora saibamos que as contradições no movimento curdo (assim como em qualquer outro movimento) são inevitáveis, e eu mesma possa levantar alguns contrapontos, eles seriam irrelevantes frente à complexidade da realidade objetiva das mulheres em geral, e das curdas em particular. Para além disso, poderiam tirar o foco da questão principal: resistir ao sistema capitalista-patriarcal exige um compromisso de classe. Mas para tanto, é preciso enxergar as várias camadas de submissão feminina, construídas ao longo de um processo histórico de milhares de anos, que garantiu aos homens o controle econômico, militar, afetivo e sexual, bem como possibilitou a institucionalização da escravidão.
Igualmente necessário é reconhecer que todas as mulheres são atravessadas pelo patriarcado, mas que algumas mulheres - como as mulheres negras e pobres - são atravessadas também pelo racismo e classismo. Portanto, promover união de classe não significa homogeneizar demandas, mas reconhecer as especificidades e contextos, sem perder de vista a divisão inicial que possibilita a opressão de todas as mulheres, ainda que de formas e intensidades distintas. Em outras palavras, é fazer um bom uso da interseccionalidade.
O pessoal é político
Não me espanta, então, que homens e mulheres envolvidos diretamente com o movimento curdo entendam que não há possibilidade, hoje, durante esse árduo processo de desconstrução do sistema capitalista-patriarcal (e que acontece em meio a ataques constantes dos Estados-nação vizinhos), da manutenção de relações entre ambos para além da camaradagem revolucionária. Relações entre homens e mulheres nunca são simétricas, tanto do ponto de vista material (quantidade de posses e acessos aos meios de produção, empregos e bens materiais), como subjetivo (independência emocional e afetiva). Na sociedade curda, tal impossibilidade talvez seja mais evidente se considerarmos que o modelo de família patriarcal é a única referência disponível.
Eu diria que essa práxis, que entendo superar a práxis e se tornar contraconduta, está em consonância com o lema “o pessoal é político”, característico dos feminismos dos anos 60 e 70 e responsável por guiar grande parte dos estudos feministas da chamada segunda onda, inclusive os ecofeministas, radicais, marxistas e anarquistas.
Como evidenciado pela pesquisadora Eleonora Piccardi, as pesquisas de Marie Mies influenciaram o pensamento de Abdullah Öcalan para a concepção do Confederalismo Democrático e orientaram algumas conclusões do líder curdo acerca dos meios para o fim das opressões. Marie Mies é socióloga, ecofeminista socialista e autora de diversas obras, entre elas Patriarchy and Accumulation on a World Scale (1987). Sem tradução para o português, a obra é resultado de uma vasta pesquisa sobre as relações entre o sistema patriarcal e acumulação capitalista em escala global, mostrando as relações entre opressão das mulheres, Estado e sociedade de classes. De fato, a pesquisa de Mies ajudou a fundamentar muitas análises posteriores sobre a História das mulheres, incluindo a ampla pesquisa sobre a caça às bruxas, da Silva Federici, e orientou algumas conclusões de Öcalan.
A práxis feminista exige, portanto, que, primeiro, conheçamos e reconheçamos a História das mulheres. Citando Lerner, “é apenas por meio da descoberta e do reconhecimento de suas raízes, seu passado, sua história, que as mulheres, assim como outros grupos, tornam-se capazes de projetar um futura alternativo” (LERNER, 2019, p. 294). Em consonância com Lerner, Bourdieu alerta para a necessidade de conhecermos o “trabalho histórico de eternização” da dominação masculina. Nesse sentido:
“É preciso reconstruir a história do trabalho histórico de des-historização, ou, se assim preferirem, a história da (re)criação continuada das estruturas objetivas e subjetivas da dominação masculina, que se realiza permanentemente desde que existem homens e mulheres, e por meio da qual a ordem masculina se vê continuamente reproduzida através dos tempos”. (BOURDIEU, 2020, p. 137)
Para Bourdieu, essa “constatação da constância trans-histórica da relação de dominação masculina” não só obriga olhar para o trabalho histórico, sempre renovado, de garantir a submissão das mulheres e des-historicizar o patriarcado, garantindo-o uma capa de “natural ou divino”, como também:
“Ele obriga, enfim, e principalmente, a perceber a vaidade dos apelos ostentatórios dos filósofos “pós-modernos” no sentido de “ultrapassar dualismos”: estes, profundamente enraizados nas coisas (as estruturas) e nos corpos, não nasceram de um simples feito de nominação verbal e não podem ser abolidos com um ato de magia performática - os gêneros, longe de serem simples “papéis” com que se poderia jogar a vontade (a maneira das drag queens), estão inscritos nos corpos e em todo um universo do qual extraem sua força. É a ordem dos gêneros que fundamenta a eficácia performativa das palavras - e mais especialmente dos insultos - e é também ela que resiste as definições falsamente revolucionárias do voluntarismo subversivo” (BOURDIEU, 2020, p. 168).
Ao mesmo tempo, é preciso a prática de estar com mulheres, ouvir mulheres, conhecer histórias de mulheres, respeitar mulheres e amar mulheres. A cisão das mulheres é fundamental para a manutenção do patriarcado-capitalista e serve muito aos homens enquanto classe dominante. À exemplo de Rojava, espaços exclusivos e autonomia nos processos de tomada de decisão são formas não só de des-educação para submissão e educação para autonomia e emancipação, mas também uma prática de fortalecimento de classe.
Para evitar que tudo descambe em uma guerra dos sexos, sobretudo entre aqueles e aquelas de nós que têm conhecimento sobre a história das mulheres e do patriarcado, é preciso um constante exercício para encontrar formas de liberação e incentivar contracondutas. Sabemos que ódio e raiva são inevitáveis e, como consequência, podem tornar convivências insuportáveis, atrasando as lutas.
Canalizar esse ódio, e organizar a raiva é útil para construção de espaços liberados, usando o conceito de Jerome Baschet. Há de se prezar então pela prática continuada, pela revolução permanente, que deve atravessar os sujeitos comprometidos com o fim das opressões. As falhas do processo não são o problema, o insistente desinteresse, apegamento e desonestidade acerca da realidade e das demandas das mulheres é que são. O fim do capitalismo-patriarcal e da dominação masculina nos exige mais do que uma linguagem neutra ou uma aparência subversiva, exige, de fato, uma educação para liberdade e autonomia das mulheres enquanto seres humanos.
Como explica Tatiana Roque, “zona cinzenta é um conceito que Primo Levi cunhou para designar uma zona nebulosa de compromisso entre opressores e oprimidos”. Os oprimidos escolhem colaborar com os opressores por acreditar que isso pode lhe render alguns privilégios. As zonas cinzentas surgem em situações de um poder opressor sobre um grande grupo de sujeitos. “Não se trata de um simples desejo individual momentâneo de melhorar de vida, e sim uma reação a uma pressão duradoura e generalizada sobre um grupo amplo de pessoas” (ROQUE, Tatiana. A revolta da zona cinza. p. 16-15).
Uso o termo “dominação masculina”, de Bourdieu, justamente para me referir à violência simbólica e as forças de dominação objetiva e subjetiva das mulheres no sistema capitalista-patriarcal.
Sobre isso, ver DOWLING, Colette. Complexo de Cinderala. Editora Melhoramento: São Paulo, 2012; e BELOTTI, Elena. Educar Para Submissão. Editora Vozes: São Paulo, 1985.
BUTLER, Judith. Critically Queer. GLQ, Vol. 1, 1993, pp. 17-32. Disponível em: http://www.sfu.ca/~baw2/GSWS826/Butler.pdf. Último acesso em 14 de março de 2021.
BUTLER, Judith. Corpos que Importam: Os limites discursivos do “sexo”. Editora n-1: São Paulo, 2019.
GHODSEE, Kristen. Por que as mulheres têm melhor sexo sob o socialismo e outros argumentos para independência feminina. Editora Autonomia Literária: São Paulo, 2021.
PICCARDI, Eleonora Gea. The Challenges of a Kurdish Ecofeminist Perspective: Maria Mies, Abdullah Öcalan, and the Praxis of Jineolojî. Capitalism Nature Socialism, v. n. 2020. Sobre Rojava, ver também: A Revolução Ignorada: Libertação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no Oriente Médio / traduzido por Paulo Ferraz. Editora Autonomia Literária, 2016; e Şoreşa Rojavayê: Revolução, uma palavra feminina. Editora Biblioteca Terra Livre: São Paulo, 2019.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Editora Bertrand: São Paulo, 2019.
Referências Bibliográficas
LERNER, Gerda. A Criação do Patriarcado: História da opressão das mulheres pelos homens. Editora Cultrix: São Paulo, 2019.
MIES, Maria. Patriarchy and Accumulation on a World Scale : Women in the International Division of Labour. 2 ed. Editora Zed Books: Londres, 2014.
SALLEH, Ariel. Ecofeminist as politics: Nature, Marx and the postmodern. Editora Zed Books: Londres, 2017.