A revolta da colônia mais antiga: feminismo
Esse texto é um trecho traduzido do livreto Jineolojî, publicado pelo Comité de Mujeres en Solidaridad con Kurdistán, em 2017. O livreto completo, em espanhol, pode ser acessado aqui.
O feminismo é um importante círculo de resistência na história recente. Após a segunda metade do século XX, o feminismo começou a reconhecer e também a criticar o discurso masculino das ciências sociais modernas. Com base na dicotomia sujeito-objeto, as mulheres foram colocadas em uma posição de objeto e é um argumento importante que isso constitui a origem de todos as formas de discriminação. O feminismo é uma das fontes mais importante de Jineolojî, pois tem experiência e valor imenso na luta pela libertação social. Claro, Jineolojî irá direcionar seus esforços iniciais para investigar, analisar e avaliar o inimigo das mulheres, isto é, a divisão de classe patriarcal e a modernidade capitalista. Nossas críticas ao feminismo e aos movimentos de mulheres existentes surgem de uma perspectiva que vê seus problemas como nossos próprios problemas também, enquanto tenta encontrar soluções.
Assim como refletimos com autocrítica sobre nós mesmas e nossas experiências, acreditamos que desta forma as mulheres podem avançar. Portanto, nossa crítica ao feminismo é uma tentativa de iniciar um processo de renovação, visando o progresso. Acreditamos que há uma necessidade urgente de iniciar essas discussões. Listamos abaixo nossas críticas ao feminismo, cientes de que o feminismo foi criado apesar de muitas dificuldades e desenvolvido graças ao grande esforço, trabalho e dor das mulheres.
Epistemologia Fragmentada
Por que produzimos tantas epistemologias feministas, enquanto o positivismo, a modernidade capitalista, o liberalismo e as ciências sexistas nos dividiram? Claro que sabemos que cada epistemologia feminista considera problemas de diferentes domínios. Mas também sabemos muito bem que só essa característica não foi suficiente para permitir a vitória sobre o patriarcado. Por isso, quando tentamos nos organizar, devemos olhar criticamente os métodos de fragmentação.
Quando começamos a desenvolver Jineolojî consideramos como uma perspectiva de “ir além do feminismo, superar o feminismo e contribuir para o feminismo”, e essencialmente não concordamos com a epistemologia fragmentada. Algumas pessoas argumentarão que estamos aumentando essa epistemologia fragmentada. Claro que vamos sugerir a formação de conhecimento sobre a realidade das mulheres, a formação de métodos para estudar as mulheres. A terminologia que usamos (por exemplo, contribuir, aumentar, melhorar, etc.) não é usada num sentido competitivo, imposto a nós pelo sistema dominante masculino, mas para permitir que as mulheres se compreendam, encapsulem suas experiências e as ultrapassem.
É possível ter diferentes movimentos de mulheres e pensamentos intelectuais coexistindo em paralelo, e que esses grupos se apoiem mutuamente. O que importa é nos unirmos, construir nossa força coletiva para lutar contra as estruturas intelectuais e organizacionais do mundo patriarcal em que vivemos.
Os efeitos do orientalismo
A ideia de que o problema fundamental dos povos do Oriente, especialmente que as mulheres não são capazes de se modernizar, é fruto de uma perspectiva orientalista que não considera a dinâmica político-moral das sociedades do Oriente Médio. O orientalismo tem o impacto de não conseguir enxergar grandes obstáculos que persistem quando tentamos buscar nossa própria história social. Aquelas pessoas no Ocidente que interpretam o Oriente Médio precisam resolver e superar essa atitude, especialmente intelectuais, políticos, acadêmicos e feministas do Oriente Médio, eles precisam ter uma postura ponderada na compreensão dos problemas e no desenvolvimento de soluções do ponto de vista das mulheres, que permitam uma forte luta contra as políticas imperialistas impostas no Oriente Médio. Quando o feminismo se inclinar para as culturas locais com originalidade, autenticidade e uma abordagem libertária, ele fortalecerá a posição anti-establishment e ajudará a entender as influências orientalistas e as lutas contra essa perspectiva. Quando a pesquisa é feita por feministas acadêmicas, os pressupostos preliminares das ciências sociais que influenciam o orientalismo precisam ser questionados. Quando as feministas examinam o Oriente a partir do Ocidente, muitas vezes caem na fraqueza de não incorporar as teorias que surgiram na literatura oriental. É uma fraqueza que as teorias desenvolvidas no Ocidente tenham progredido através das necessidades sociais apesar das contradições, enquanto em outras geografias o feminismo tentou preencher as lacunas que permaneceram. É por isso que Jineolojî deve ser construída em diferentes regiões geográficas, progredindo de diferentes maneiras de acordo com os conhecimentos e experiências regionais e locais das mulheres da região a esse respeito.
Perspectivas sobre organização e socialização
Apesar do imenso conhecimento criado pelo feminismo, ele não assumiu um papel e responsabilidade suficientes para atender à urgência e o alcance da necessidade de transformação e mudança social. Por isso, a sociedade não reconheceu os movimentos feministas como uma "alternativa útil" contra os sistemas de poder dos Estados. O feminismo é frequentemente visto como um movimento antiquado ou utópico, mas se um movimento alternativo real fosse formado, a sociedade poderia apoiá-lo.
Algumas feministas argumentam que "a tarefa do feminismo não é organizar, mas criar conhecimento para que outros possam colocá-lo em prática”. Ou alegam que a organização da sociedade, e compartilhar conhecimento com as pessoas é uma forma de engenharia social. Hoje, as pessoas de todo o mundo estão cientes de que os regimes políticos se desenvolveram através do poder do Estado e das injustiças. Esses poderes querem controlar e determinar tudo: a lei, a justiça, a vida, a morte... para isso tentam dissuadir e enganar as pessoas sobre o que é realidade e verdade e o que são falsidades e mentiras. Se alguém está ciente das realidades de sua sociedade e não age, mas ao contrário, apenas produz ideias sobre o que deve ser feito e o que não deve ser feito, essa pessoa não pode ser chamada de oponente do sistema.
No entanto, é uma característica do feminismo ser um movimento anti-establishment e, para todas as outras resistências anti-establishment, o feminismo é uma força motivadora. O feminismo é antimilitarista, antipoder, antissexista, antirracista e antifascista. Quando um movimento é composto por tantas “anti” posturas, ele tem um caráter contraditório e, na maioria das vezes, produz apenas conhecimento teórico, mas produz menos na prática. É problemático que o feminismo tenha falhado em se organizar e construir alianças fortes para a mudança social. Esses problemas precisam ser amplamente discutidos dentro dos movimentos e soluções básicas precisam ser desenvolvidas.
Não ser capaz de desenvolver um modelo de vida alternativo transcender os limites da modernidade
O feminismo critica teoricamente a modernidade, mas sua limitações para implementar modelos de vida alternativos constituem outra fraqueza. Enquanto algumas feministas decidem ficar fora da esfera política para não se “contaminarem”, a presença do movimento de mulheres curdas na esfera política tem se mostrado tão efetiva para a transformação social quanto as determinações teóricas. O sistema de co-presidências no campo político proporcionou importantes experiências e conquistas em igualdade de representação. Em vez de rejeitar a modernidade em um grupo fechado, o movimento de mulheres curdas transmitiu essa rejeição à sociedade por meio da política. As determinações convincentes do feminismo expressas no campo acadêmico não continuaram a fornecer uma perspectiva forte sobre como e quais organizações e instituições podem atender às necessidades práticas. Ao mesmo tempo em que rejeitavam o uso das ferramentas institucionais do sistema, aos poucos foram ficando presos aos limites acadêmicos do sistema. Jineolojî também tem uma perspectiva de criar academias. No entanto, isso não seria incorporado ao sistema atual; pretende ser um sistema educacional criado por mulheres com suas próprias forças e recursos. Embora o feminismo tenha sido radicalmente desconectado intelectualmente do sistema, é uma contradição que não possa se materializar institucionalmente. A organização autônoma de mulheres guerrilheiras nas montanhas do Curdistão criou um modelo comunitário de vida para as mulheres, não apenas nas montanhas, mas também na sociedade. Embora o feminismo afirmasse que agora havia objetivos claros para desenvolver a militância feminina, não conseguiu concretizar sua utopia, pois ignorou a importante conexão entre liberdade, organização e socialização. Como movimento de mulheres do Curdistão, estamos tentando espalhar a magia de Jin (mulher), Jiyan (vida), Azadî (liberdade) por toda a sociedade. Agora, em todas as partes do Curdistão existem instituições e movimentos femininos autônomos.
Entre outros exemplos concretos, a aldeia de mulheres "JINWAR" sendo construído em Rojava é uma utopia se tornando na realidade; é uma encarnação da vida fundada por mulheres. Em vez de mulheres conscientes focadas em tentar se resgatar e separado da sociedade, é importante transmitir a consciência liberdade na sociedade. Por esta razão, Jineolojî pretende reforçar a entre liberdade, organização e sociedade. Esta abordagem também serve para reforçar a tendência para a liberdade e democracia radical nas instituições jurídicas e para reforçar as perspectivas e vontade das mulheres nos modelos de vida alternativos existentes.
Ignorando a sexualidade como um domínio de poder
Na natureza, a existência de todos os seres vivos é assegurada por meio da nutrição, proteção e reprodução. Nas sociedades, a reprodução tem sido identificada como sexualidade e trabalho feminino não valorizado. Ao mesmo tempo, a sexualidade foi além da provisão da reprodução para a continuidade da existência e se tornou um domínio de poder. A sexualidade das mulheres tem sido controlada para a implementação e continuidade do poder. Ao invés de definir a sexualidade e seu significado social desvinculando-a de uma posição de poder, ela foi preservada como uma área chamada de “livre escolha”. O feminismo não foi capaz de definir a sexualidade em um sentido ontológico. No desenvolvimento da hegemonia material e espiritual patriarcal, o papel da sexualidade não foi suficientemente resolvido.
Desde a década de 1970, o feminismo radical e o feminismo lésbico produziram um saber que decifrou a conexão entre sexualidade e poder. Eram esforços para se identificar com os corpos e sexualidades das mulheres. A pornografia foi criticada como uma produção capitalista e tráfico de mulheres. No entanto, após a década de 1990, essas análises que partiam de pontos sinceros, acabaram caindo nas armadilhas do capitalismo. Assim, em vez de assumir uma posição radical contra o sistema, o sistema liberal integrou partes do movimento feminista e suas demandas, enquanto mais e mais feministas começaram a adotar diretrizes e práticas do sistema. Inicialmente analisada nos discursos feministas como um problema de escravidão e dominação da sociedade, a sexualidade passou a ser discutida como uma questão de liberdade liberal. A "liberdade sexual" tem sido tratada como uma questão individualista.
Por isso não foi possível desenvolver uma cultura de sexualidade livre que seja verdadeiramente livre de dominação e escravidão. Portanto, precisamos criar uma compreensão mais profunda da sexualidade, identidades sexuais e relacionamentos. Cortar fisicamente homens e sexo da vida das mulheres deve ser visto como uma reação ou uma escolha livre? Essas relações são realmente livres de dominação e escravidão? Os padrões de poder e dominação também são reproduzidos nas relações gays e lésbicas? Como podemos realmente alcançar uma sexualidade livre? Qual é o papel das mulheres e como ele é determinado? Até agora, as respostas a essas perguntas são limitadas.
A necessidade de transformação dos homens
O feminismo não foi capaz de superar sistematicamente a política sexual atual, portanto as reproduz de uma maneira diferente. Além das relações sexuais, o feminismo não apresentou teorias sobre soluções práticas de como as relações de homens e mulheres podem ser desafiadas e re-estabilizadas. A questão do desenvolvimento de novas abordagens de convivência e relacionamentos também deve ser considerada. A análise crítica do sistema e a definição de ideais são um passo importante. Mas também precisamos considerar que vivemos como mulheres e homens na realidade de uma sociedade patriarcal.
Como resposta a isso, as políticas feministas têm defendido principalmente a formação de espaços separados apenas para as mulheres, sem dar muita atenção também às políticas desenvolvidas e às plataformas comuns de luta de gênero que visam à transformação dos homens. Isso é em si uma contradição com as críticas feministas contra a mentalidade e o sistema patriarcal. Com essa abordagem, o feminismo deixa de ser firme e determinado em fazer os homens verem a necessidade de transformação, levá-los a reconhecer a vontade das mulheres e levar a sério o intelecto e as emoções das mulheres.
Ao não superar a imagem que criou como um movimento que principalmente apenas resiste e rejeita, [o feminismo] não tem sido uma força bem sucedida na criação de uma sociedade alternativa neste mundo de crise. Embora tenha sido realizada uma análise minuciosa da linha de pensamento patriarcal dominante, as soluções propostas estavam principalmente preocupadas com o progressismo das mulheres. O feminismo não se concentrou o suficiente nas perspectivas de transformação dos homens, na criação de conexões entre liberdade e gênero e em uma forma de organização que promova a liberdade social.
Abordagem da História
A forma predominante como a história tem sido escrita tem contribuído fortemente para a construção e manutenção do sexismo. Uma das críticas feministas fundamentais da ciência social moderna é que a história foi escrita a partir de uma perspectiva androcêntrica. A história ignorou sistematicamente a verdade e a história das mulheres. É por isso que o feminismo não dá crédito à história escrita e ao ponto de vista androcêntrico.
No entanto, como a história das mulheres não foi suficientemente revelada, não podemos pretender eliminar do tecido social a mentalidade androcêntrica que escreveu a história se não nos esforçarmos para mudar a mentalidade patriarcal. As ciências sociais não estão isentas disso. O maior período da história, o das sociedades centradas nas mulheres, ainda não foi revelado. Jineolojî não visa apenas incluir mulheres na história já escrita, mas também escrever SUA HISTÓRIA, a história das mulheres.
Não seria justo considerar os valores históricos das mulheres apenas pelo prisma do feminismo. Em certas regiões do mundo, predominantemente no mundo ocidental, os movimentos feministas têm desempenhado um papel de liderança na resistência ao patriarcado. No entanto, no mundo existem muitas culturas e crenças diferentes. Por milhares de anos, mulheres em todo o mundo avaliaram e interpretaram seu papel na sociedade. Existem certos achados arqueológicos que sugerem que as mulheres em certos lugares assumiram papéis de liderança na sociedade em determinados momentos da história. Acreditamos que é importante para o feminismo levar essas descobertas em consideração para progredir como movimento. A este respeito, Jineolojî também procura dar uma contribuição significativa para a escrita da história das mulheres.
Hoje, as experiências locais das mulheres são altamente variáveis em cada país. Quão justo pode ser representar suas experiências através dos prismas do Feminismo Pós-colonial, do Feminismo Curdo ou do Feminismo Islâmico? O quanto essas correntes representam as lutas desenvolvidas por mulheres em diferentes regiões do mundo? Acreditamos que o feminismo deve fazer essas perguntas, porque muitas mulheres que lideraram uma luta contra o patriarcado não podem se identificar nessas categorias. Portanto, não reconhecer as experiências e os avanços dessas mulheres, não colocar o nome de suas organizações na literatura feminista, é uma questão importante que precisa ser reconhecida pelos movimentos feministas.
Acreditamos que todos os movimentos de mulheres que representaram valores da sociedade e resistiram na e contra a civilização patriarcal dos Estados-nação, assim como as mulheres que resistem no eixo da civilização democrática, devem se unir para criar um paradigma feminino. Por esta razão, acreditamos que o reconhecimento das lutas que as mulheres têm realizado em todas as partes do mundo e seus esforços para documentar suas experiências como elas se manifestaram na literatura, são algumas das contribuições mais importantes das lutas de libertação e mulheres de todo o mundo.
Complete a leitura:
→ Bônus Track #3: Os desafios de uma perspectiva ecofeminista curda: Maria Mies, Abdullah Öcalan e a Práxis de Jineolojî.
→ Bônus Track #7: jin, jiyan, azadî: a história do movimento de mulheres do Curdistão.
→ lado b, track 14: feminismo é luta de classes.
Interessantíssimo!!