O texto abaixo foi escrito por Colette Colfer e originalmente publicado no Broadsheet, em 26 de abril de 2022. Já indiquei o texto da Colette mais de uma vez, por isso me pareceu pertinente traduzi-lo com uma breve introdução minha sobre o tema. O texto em inglês pode ser lido aqui.
Teorias são teorias e, dentro da academia, existem centenas delas. Por exemplo, sou adepta à teoria da Lei do valor de Marx. Para mim, ela faz muito sentido, sobretudo quando, com Mies e Moore, ela é melhor compreendida como uma Lei de Natureza Barata. Mas, é claro, os marxistas dogmáticos diriam (como dizem) que a lei do valor de Marx é a lei do valor e ponto - e vão nos chamar de heréticos (como chamam) quando trabalhamos a teoria marxista para além do que cabe nos dogmas marxistas. Ainda há aqueles e aquelas que acreditam na concepção de Adam Smith e David Ricardo sobre a teoria do valor, conhecidos como liberais. Essas disputas teóricas vão acontecer na academia e, se formos bem sucedidos na missão, na política - mas qualquer sujeito concordaria que seria um absurdo completo tentar resolvê-las em tribunais.
Colocar sujeitos nos tribunais por não subscreverem a uma teoria seria o mesmo que perseguir aqueles e aquelas que não compartilham de crenças religiosas. A liberdade religiosa é protegida por lei e acaba em tribunais quando a pessoa é impossibilitada de proferir sua crença ou é obrigada a proferir crença alheia por meio de censura, intimidação e da força física. Ninguém pode ser discriminado - ou seja, despedido do trabalho, expulso da universidade ou preso - por ter ou não uma determinada crença. Sob o atual Estado de direito, ninguém é legalmente obrigado a acreditar e proferir uma crença alheia a si.
No entanto, é exatamente isso que está acontecendo com quem não compartilha das crenças acerca da identidade de gênero e de seu caráter teológico e imaterial. Como forma de se livrar desse “pequeno inconveniente” e conseguir forçar a crença goela abaixo dos sujeitos, a tentativa de biologizar a questão se tornou uma das principais missões dos seus adeptos. A “benção” da ciência é o que falta para deslocar a Teoria da Identidade de Gênero do campo da crença para o da “ciência” e, por sua vez, conseguir validar o avanço do transumanismo e da misoginia nas leis e nas práticas.
A procura incessante por encontrar algo que possa validar a teoria - nos cromossomos, no cérebro, nas má formações fisiológicas - é tão curiosa, pois quem a encabeça aceita bem a existência de machos e fêmeas em, digamos, felinos, mas passou - num timing coordenado um tanto notável - criar concepções completamente novas (e comprovadamente equivocadas e nocivas de muitas formas, sobretudo para as mulheres e meninas, o que não é nada particularmente novo sob o sol do patriarcado para quem estuda a história das mulheres e da própria ciência) acerca do sexo humano. Eles tentam parecer progressistas, e chamam suas tentativas anticientíficas de “biologia avançada” (risos).
Mas a verdade é que a religião transumana, ancorada na Teoria da Identidade de Gênero, é o que é: uma teoria, uma crença ancorada no desejo tecnofílico, uma mentira corporativa para conceder à indústria mais poderosa do mundo o total controle da reprodução e, é claro, um backlash horroroso e nítido dos homens contra as conquistas feministas contra o sexismo nas décadas de 60, 70 e 80 (em outras palavras, poderíamos dizer: é o neoliberalismo, estúpido!). Nada como estar sentando em pilhas de dinheiro que tudo podem.
No fim do dia, as pessoas são legalmente livres para acreditarem que os sujeitos nascem nos corpos errados ou que eles têm algum tipo de alma que não condiz com o próprio corpo e sim com esteriótipos sexistas. São igualmente livres para acreditarem na terra plana, em Yemanjá, em Deus, em Zeus, em Ogum, em Cientologia, em ETs e até mesmo que seres humanos podem de fato mudar de sexo. Mas são, igualmente, impossibilitadas por lei de forçarem outrem a subscrever suas crenças. Ou seja, os sujeitos são igualmente livres para não acreditarem em nada disso - e falarem abertamente sobre seu ateísmo identitário. O Estado é laico. Não era esse o lema da esquerda?
Uma nova religião por Colette Colfer
Eu tenho ensinado sobre religiões mundiais há dezesseis anos. Antes disso, trabalhei como jornalista e já escrevi muitos artigos bem como fiz programas de rádio sobre a mudança do cenário religioso da Irlanda.
Como alguém que está extremamente interessada em religião, notei que, à medida que a Igreja Católica está diminuindo em importância na Irlanda, novos sistemas de crenças estão surgindo para ocupar alguns dos espaços vagos. Um deles em particular - teoria da identidade de gênero - está ganhando destaque e rapidamente se tornando dominante.
A Teoria da Identidade de Gênero envolve a crença de que o gênero é uma identidade ou um senso interno de si mesmo que é independente do corpo físico. Alguns sugerem que a identidade de gênero, em vez do sexo biológico, deve ter precedência em questões de direito, sociedade e cultura. Essa teoria é usada, por exemplo, para justificar o argumento de que os homens biológicos que se identificam como mulheres devem competir na categoria feminina nos esportes.
Eu estudo religião a partir do que é chamado de perspectiva fenomenológica. Isso envolve identificar minhas próprias crenças pessoais para tentar entender a religião da perspectiva do crente sem julgar suas reivindicações à verdade. A abordagem pode ser resumida pelas palavras de Ninian Smart, que escreveu 'deus é real para os cristãos, quer ele exista ou não'.
Nos últimos vinte anos, a abordagem fenomenológica funcionou bem para mim. Eu viajei para o Paquistão, onde visitei madrassas islâmicas. Enfiei pedaços de papel nas rachaduras do Muro das Lamentações em Jerusalém, visitei a Cisjordânia e Belém, fui em duas viagens de estudo do Holocausto a Auschwitz. Participei de retiros budistas zen e de festivais hindus. Participei de serviços pentecostais africanos em armazéns industriais, jejuei para o Ramadã e quebrei o jejum com muçulmanos em mesquitas.
Estive nos cultos do sábado nas sinagogas de Dublin e meditei em 'Dzogchen Beara', o centro de retiro budista no oeste de Cork. Fiquei com as freiras no mosteiro de Glencairn, no condado de Waterford, e participei de uma celebração pagã Mayday no Hill of Tara, que envolveu a dispersão de pétalas de rosa branca em um pentagrama com suas linhas marcadas na grama. Eu dancei com bruxas no Castelo Clonegal no Condado de Wexford e olhei para o poço sagrado na masmorra do castelo que, na época, era um 'Templo de Ísis'. Entrevistei membros da Atheist Ireland e da Igreja de Scientology.
Pessoas de todas essas religiões e sistemas de crenças me permitiram entrar em seus mundos sem compulsão para participar ou acreditar. No entanto, hoje, na Irlanda, quando se trata da Teoria da Identidade de Gênero, está se tornando difícil adotar a perspectiva fenomenológica, pois há uma pressão crescente para aceitar essa teoria acriticamente.
Embora não haja um conceito do divino na Teoria da Identidade de Gênero, existem elementos que podem ser considerados religiosos. Há símbolos, cânticos, bandeiras, desfiles e dias 'sagrados'. Há uma crença no que poderia ser chamado de transubstanciação, onde se acredita que a substância do corpo mude de um sexo para outro.
Uma crença na identidade de gênero envolve um nível de fé, pois não há nada tangível para provar sua existência que, como algo divorciado do corpo físico, é semelhante à ideia de uma alma.
A ideia de um heretico ou infiel também é relevante. Pessoas e organizações que não subscrevem a Teoria da Identidade de Gênero, ou que a criticam publicamente ou até mesmo a questionam, foram denunciadas ou ostracizadas, e produtos e publicações boicotados. Os destrancisionados que não subscrevem mais à Teoria são semelhantes aos apóstatas1.
A teoria também envolve um código moral e um credo que gira em torno de conceitos de igualdade, diversidade e inclusão. Há um clero na forma de pessoas de organizações que promovem a Teoria e que dão 'sermões' em treinamentos e workshops. Algumas pessoas sinalizam sua adesão à Teoria usando certas palavras ou frases ou incluindo pronomes (como 'ele/ele') em assinaturas de e-mail ou em perfis públicos on-line.
A Teoria da Identidade de Gênero é cada vez mais evidente nas políticas e publicações do governo irlandês. Um questionário publicado recentemente pela Autoridade de Ensino Superior da Irlanda perguntou 'Com qual gênero (se houver) você mais se identifica?' Mas não tinha dúvidas sobre sexo biológico.
O Escritório Central de Estatísticas da Irlanda aconselhou as pessoas que preenchendo o formulário do Censo de 2022 que poderiam marcar homens e mulheres quando não se sentissem confortáveis para escolher um2.
O Serviço Irlandês de Transfusão de Sangue pediu aos doadores de sangue que marcassem 'sim' ou 'não' à pergunta 'Seu: gênero atual é diferente daquele atribuído a você no nascimento?' Treinamentos e workshops sobre identidade de gênero foram implementados em todos os níveis do sistema educacional.
Sugerir que a Teoria da Identidade de Gênero é uma nova religião não é difamar a teoria. Meu objetivo, como fenomenologista, é entender a crença e suas práticas associadas sem fazer declarações de valor sobre sua verdade. Eu entendo que a identidade de gênero é real para as pessoas que acreditam nela.
No entanto, estou preocupada com a rapidez e a profundidade com que essa teoria está sendo incorporada ao nível do governo e com o que me parece ser uma compulsão crescente por acreditar.
Pessoa que renuncia ou renega uma crença ou religião da qual fazia parte, normalmente aplicado aos cristãos: quem desrespeita os votos, deixando a vida religiosa, sem a aprovação de seus superiores.