Se existe tal coisa como ‘feminismo branco’, a ideologia da identidade de gênero o resume

bônus track #44

Esse texto estava guardado nos rascunhos aqui do lado b há meses. Ele foi escrito por Raquel Rosario Sanchez, escritora da República Dominicana que se dedica a lutar contra a violência contra meninas e mulheres. Publicado originalmente em 2017, no Feminist Current, sob o título If white feminism is a thing, gender identity ideology epitomizes it, me pareceu pertinente dado o contexto: a despeito do aumento da violência contra mulheres e meninas, sobretudo casos de estupro e feminicídio, da perda histórica de direitos legais das mulheres sofridas em 2023, da não revogação da Lei de Alienação Parental e de sermos o segundo país no ranking global de gravidez na adolescência (e da realidade ainda mais chocante que muitas destas adolescentes realmente não sabem como se prevenir!) e quinto no ranking de casamento infantil, movimentos feministas estão deliberadamente escolhendo transformar o Dia Internacional das Mulheres no Dia de Defesa dos Direitos Sexuais Masculinos. Não bastasse janeiro, junho e novembro, março também precisa ser sobre eles.

Olhando tudo isso, só consigo pensar em duas coisas. A primeira delas, é uma citação de Abdullah Öcalan sobre a importância das mulheres manterem seus espaços exclusivos, livre da influência dos homens porque o macho “está tão interessado em construir seu domínio social sobre a mulher que transforma qualquer contato com ela em uma demonstração de domínio”. ¹

A segunda, e o ponto central do texto de Sanchez, é o quão cego às questões de classe e raça a teoria queer realmente é. O fato dela ter fagocitado rapidamente uma parte significativa de ambos os movimentos nos faz questionar tanto o caráter pouco ameaçador à estrutura de poder raça-sexo-classe do movimento queer, quanto a coerência prática e teórica dos movimentos de classe e raça. Além disso, tal fagocitação torna incontornável a realidade que tantas mulheres negras e proletárias apontam há décadas: a questão das mulheres é sempre desarticulada em pró da manutenção das vontades e demandas masculinas nos movimentos racial e de classe. Muito parece ter mudado, mas pouca coisa realmente mudou.

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Se existe tal coisa como ‘feminismo branco’, a ideologia da identidade de gênero o resume

Quando eu estava na pós-graduação, tive um debate acalorado com uma colega que insistia que o “feminismo branco” era um problema sério no movimento feminista.

O homem (que era branco e dos Estados Unidos) argumentou que “feminismo branco” significava que o movimento das mulheres tinha centrado as vidas e experiências de apenas um grupo seleto – mulheres brancas privilegiadas nos EUA que viajavam principalmente em círculos acadêmicos – “durante a maior parte de sua história”.

Eu disse-lhe que pensava que o termo funcionava como uma ferramenta para rejeitar as feministas da segunda onda, glorificar a (muito problemática) terceira onda e encorajar lutas internas entre feministas, criando divisões num movimento onde a luta coletiva é crucial. A sua afirmação estava em desacordo com o movimento popular com o qual cresci na República Dominicana, que obviamente não era liderado por mulheres nos EUA (e certamente não por mulheres brancas ou acadêmicas da classe alta). Existem problemas legítimos dentro do feminismo no meu país, especialmente em torno da diferença de classes, mas há muito mais solidariedade do que animosidade, e o feminismo dominicano tem sido consistente na abordagem das lutas das mulheres rurais, da classe trabalhadora e das mulheres imigrantes.

Notavelmente, durante o meu tempo como imigrante nos EUA, a maioria das pessoas que se queixaram comigo sobre o que chamavam de “feminismo branco” eram elas próprias brancas. Eu me senti tokenizada; como se quisessem que eu, como mulher dominicana negra, validasse a eles e ao seu feminismo. Fiquei desconfiada de todos os brancos que usavam o termo. Criticar o “feminismo branco” parecia ser uma forma de as pessoas brancas se apresentarem como pessoas brancas diferentes e melhores – como feministas legais e “interseccionais” que por acaso são brancas.

Agora que estou de volta à República Dominicana trabalhando em abrigos, acredito que meu amigo da pós-graduação estava certo sobre uma coisa: o feminismo branco é real. É sintetizado pela ideologia da identidade de gênero.

A tendência atual entre os defensores da terceira onda, bem como entre os progressistas, é argumentar que podemos ignorar se as pessoas nasceram homem ou mulher e, em vez disso, usar linguagem como “genderfluid”, “multi-gênero” ou “genderqueer”. Mas existe uma enorme lacuna entre esta linguagem — popularizada nas salas de aula de Estudos de Gênero no Ocidente — e as realidades das mulheres marginalizadas em países como o meu.

Tenho pensado sobre o que significa identidade de gênero no contexto do Sul Global. O que a identidade de gênero significa para mulheres e meninas que se parecem comigo? O que isso significa para as mulheres e meninas dominicanas que são marginalizadas não apenas pelo sexo, mas também pela pobreza, raça e xenofobia?

Recentemente, a República Dominicana tem debatido se deve ou não proibir o casamento infantil. O país tem a maior taxa de casamento infantil na região da América Latina e do Caribe. De acordo com uma pesquisa de 2014, 37 por cento das mulheres com idade entre 20 e 49 anos se casaram (ou tornaram-se parceiras em união estável) antes dos 18 anos. A pesquisa também mostra que uma em cada cinco meninas entre 15 e 19 anos está em um relacionamento com um homem pelo menos 10 anos mais velho. Existe uma forte correlação entre o casamento infantil e a gravidez na adolescência, o que pode resultar em complicações perigosas para a saúde das meninas, como envenenamento do sangue, obstrução do parto e hipertensão. Na verdade, a gravidez na adolescência é a causa número um de morte de meninas adolescentes em todo o mundo. Isto é particularmente preocupante porque a República Dominicana proíbe todo o aborto, mesmo nos casos em que a vida da mãe está em perigo.

A Plan International, uma organização de direitos das crianças, publicou um estudo em março, Niñas Esposadas: Caracterización del matrimonio forzado de niñas y adolescentes en las provincias de Azua, Barahona, Pedernales, Elías Piña y San Juan (2017), analisando o casamento infantil na zona sul da ilha caribenha. Entrevistaram homens que casaram com meninas menores de idade, bem como as meninas que “escolheram” estes casamentos. Quase 40 por cento dos homens entrevistados disseram preferir meninas mais novas porque eram “mais obedientes e mais fáceis de controlar”. O estudo também revelou que muitas mulheres casam com homens mais velhos na esperança de escapar da violência familiar e da pobreza, mas depois enfrentam a violência destes homens quando se casam. Uma menina de 15 anos que foi entrevistada para o estudo disse:

Casei porque precisei fugir de casa. Eles estavam me batendo. Eles usaram paus. Eles não confiariam em mim. Um dia eu falei: ‘Não quero mais viver assim’. Em casa teve muita briga, um dia na frente de todo mundo, me bateram, no meio da rua. Então, comecei a trabalhar em casa. Eu tinha 11 anos. Lá foi ainda pior, a violência aumentou. Tive que fazer todas as tarefas, inclusive lavar todas as roupas à mão. Nem me deixaram ir à escola e nunca me pagaram porque disseram que já me davam comida. Eu estava sofrendo muito. Eu me senti presa por não poder nem ir ao parque. Eu queria me casar para deixar tudo isso. Achei que se eu me casasse ia ficar numa casa tranquila, que poderia comer, dormir e sair. Eu não sabia que não seria assim, como outro inferno.

Na República Dominicana, não se espera que os rapazes limpem ou ajudem a criar os irmãos – isso é responsabilidade das meninas. Antes do casamento, 78 por cento das jovens que participaram no estudo da Plan International afirmaram que eram encarregadas de fazer tarefas domésticas, como limpar e cuidar dos irmãos mais novos. Quando perguntaram às meninas o que significa ser mulher, a maioria disse que significava ser mãe e esposa.

A escritora Caridad Araujo destaca:

Metade das mulheres na América Latina que estão nos seus [anos produtivos] estão desempregadas e as que têm emprego ganham consideravelmente menos do que os seus homólogos masculinos. Para as mulheres na América Latina e no Caribe, a disparidade salarial torna-se mais exacerbada durante os seus anos de pico de fertilidade.

Isso ocorre porque existe uma expectativa de que as mulheres sejam inerentemente nutridoras. Ser forçada a assumir a posição de cuidadora significa que as mulheres têm menos poupanças, são menos promovidas e acumulam menos dinheiro nas suas pensões.

Mas as políticas de identidade de gênero reduzem esta realidade – e a própria feminilidade – a uma identidade trivial e maleável. É desconcertante que num mundo onde as mulheres e meninas enfrentam a opressão estrutural devido à sua biologia, as políticas de identidade de gênero tenham prosperado.

Susan Cox argumenta que:

A declaração não-binária é um tapa na cara de todas as mulheres, que, se não se assumiram como 'genderqueer', presumivelmente possuem uma essência interna perfeitamente alinhada com a paródia misógina da feminilidade criada pelo patriarcado.

Há uma crueldade distorcida e neoliberal em argumentar que o principal problema do gênero é o seu impacto nas identidades escolhidas pelos indivíduos, e não a forma como funciona sistemicamente, sob o patriarcado, para normalizar e encorajar a violência masculina e a subordinação feminina.

Quando confrontadas com evidências de que, histórica e globalmente, a opressão das mulheres é baseada no sexo, as políticas de identidade de género simplesmente afirmam que o próprio sexo é uma construção social “inventada”.

Em um artigo no Quartz, Jeremy Colangelo escreve:

Sexo e gênero são muito mais complexos e cheios de nuances do que as pessoas há muito acreditavam. Definir sexo como binário trata-o como um interruptor de luz: liga ou desliga. Mas, na verdade, é mais semelhante a um interruptor dimmer, com muitas pessoas sentadas em algum lugar entre o sexo masculino e o feminino, geneticamente, fisiologicamente e/ou mentalmente. Para refletir isto, os cientistas descrevem agora o sexo como um espectro.

Apesar das evidências, as pessoas mantêm a ideia de que o sexo é binário porque é a explicação mais fácil de acreditar. Ela acompanha as mensagens que vemos em anúncios, filmes, livros, músicas – basicamente em todos os lugares. As pessoas gostam de coisas familiares, e o binário é familiar (especialmente se você é uma pessoa cisgênero que nunca teve que lidar com questões de identidade sexual).

Mas as feministas não argumentam que o sexo é real porque é “a explicação mais fácil de acreditar” ou por causa do que a mídia nos diz. Argumentamos que o sexo é real porque a partir do momento em que um ultrassom revela que o bebê é do sexo feminino, sua subjugação começa. E embora a “identidade de gênero” seja apresentada como uma questão com a qual o feminismo deve enfrentar, está, como explica Rebecca Reilly-Cooper, completamente em desacordo com a análise feminista do sexo biológico como um eixo de opressão:

A subordinação histórica e contínua das mulheres não surgiu porque alguns membros da nossa espécie optaram por se identificar com um papel social inferior (e seria um ato de flagrante culpabilização da vítima sugerir que isso aconteceu). Surgiu como um meio pelo qual os machos podem dominar a metade da espécie que é capaz de gerar filhos e explorar o seu trabalho sexual e reprodutivo.

Não podemos compreender o desenvolvimento histórico do patriarcado e a continuação da existência de discriminação sexista e de misoginia cultural, sem reconhecer a realidade da biologia feminina e a existência de uma classe de pessoas biologicamente femininas.

Longe de serem fluidas, as realidades da opressão baseada no sexo são rigorosas e aplicadas através da violência – isto é particularmente verdade para as mulheres negras e as mulheres em situação de pobreza.

Presumivelmente, as mulheres e meninas romenas que enchem bordéis na Espanha (seis em cada 10 mulheres prostituídas na Espanha são da Romênia) gostariam de optar por não incluir o seu gênero. Evelyn Hernandez Cruz, a jovem de 19 anos que acaba de ser condenada a 30 anos de prisão em El Salvador por ter tido um natimorto, depois de ter sido repetidamente violada por um membro de um gangue, certamente gostaria de rejeitar o seu estatuto de “mulher”. As meninas de 12 anos no Quênia que são vendidas para a prostituição pelas suas famílias, desesperadas por dinheiro no meio de secas regionais, provavelmente não se identificam com o fato de serem trocadas como se fossem mercadorias. Presumivelmente, as meninas no Nepal que morrem devido a picadas de cobra e baixas temperaturas nas cabanas de menstruação sentem-se desconfortáveis com as restrições do seu gênero.

Mesmo nos EUA, a opressão baseada no sexo é agravada por outras formas de opressão, como a racial. De acordo com um relatório de 2017, as mulheres negras têm quatro vezes mais probabilidades do que as mulheres brancas de morrer de complicações relacionadas com a gravidez e têm “duas vezes mais probabilidades de sofrer uma complicação potencialmente fatal durante o parto ou a gravidez”. Um estudo realizado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças mostra que metade dos assassinatos de mulheres nos EUA são cometidos por parceiros atuais ou anteriores e que as mulheres negras têm maior probabilidade de morrer por homicídio do que todos os outros grupos demográficos. É justo assumir que esta não é uma realidade com a qual estas mulheres se “identificam”.

Argumentar que o sexo não é real e que o gênero é inato ou escolhido, em vez de imposto socialmente, demonstra tanto ignorância relativamente ao mundo que nos rodeia como também uma posição de privilégio. Desta forma, vemos que a ideologia da identidade de gênero é literalmente “feminismo branco”: um (chamado) feminismo que ignora as realidades materiais dos marginalizados, centra os sentimentos e interesses dos mais privilegiados e se apresenta como universal. É um “feminismo” inventado por acadêmicos nos países ocidentais que pouco faz para abordar as lutas daqueles que estão fora destes círculos.

Cate Young define o feminismo branco como:

Um conjunto específico de práticas feministas superficiais, não interseccionais e de tema único. É o feminismo que entendemos como mainstream; o feminismo obcecado por pelos corporais, salto alto e maquiagem, e pela mudança do nome de casada. O ‘feminismo branco’ é o feminismo que não entende os privilégios ocidentais ou o contexto cultural. É o feminismo que não considera a raça como um fator na luta pela igualdade.

O feminismo branco é qualquer expressão do pensamento ou ação feminista que seja antiinterseccional. É um conjunto de crenças que permite a exclusão de questões que afetam especificamente as mulheres negras.

Considerando esta definição, o que pensamos de um homem que afirma que o delineador define a sua “feminilidade”, como fez Gabriel Squailia este ano num artigo para a Bustle? Ele escreve:

Minha política e meu delineador tornaram-se inseparáveis. Projetar meu próprio senso de beleza, sem vergonha ou hesitação, assustou muito meus oponentes. Meu visual era minha armadura e meu armamento. Todos os dias, meu poder pessoal cresceu. Força e segurança vêm de traçar linhas em minhas pálpebras e da visibilidade que se segue. Meu senso de mim mesmo é pessoal, particular, idiossincrático. Envolve questões enormes e complexas de identidade e política. E tudo isso está presente quando estou me inclinando no espelho, acertando as pontas do delineador.

O ridículo da afirmação de Squailia de que a maquiagem faz dele uma mulher e que o poder, a força e a segurança estão facilmente disponíveis e podem ser adquiridos através de meios superficiais, torna-se ainda mais claro quando contrastado com as realidades quotidianas enfrentadas pela maioria das mulheres e meninas em todo o mundo. mundo. Em seu artigo, Squailia admite que a feminilidade é algo que ele tem sido capaz de vestir e tirar como bem entende:

Parei de usar qualquer coisa que parecesse feminina. Eu nem tive delineador por 20 anos. E não disse nada quando as pessoas me consideraram um homem heterossexual e cisgênero.

Mas as mulheres e meninas oprimidas por terem nascido mulheres não têm o privilégio de optar por não serem mulheres e de se apropriarem do privilégio masculino dos homens heterossexuais. O patriarcado não se importa se as mulheres não gostam ou não se identificam com o seu papel subordinado.

Muitas pessoas que se consideram progressistas acreditam que, ao jurarem fidelidade à ideologia da identidade de gênero, demonstram “interseccionalidade”. Mas se eles realmente se preocupassem com as intersecções de sexo, raça e classe, centrariam as mulheres e as meninas marginalizadas por esses eixos de opressão. Em vez disso, os progressistas e os ativistas queer estão centrando os homens que acreditam que a opressão é algo que você pode optar por participar ou não. Certamente, a maioria das mulheres em todo o mundo ficaria ofendida com a noção de que a violência e a injustiça que sofrem é uma escolha… Ou que tem algo a ver com delineador.

1. ÖCALAN, Abdullah. The political thought of Abdullah Öcalan: Kurdistan Women's Revolution and Democratic Confederalism. London: Pluto Press, 2017, p. 58, tradução nossa.