a relatora da ONU sobre violência contra mulheres #cancelada, o Ministério das "Mulheres" e o Anuário de Segurança Pública
lado b, track 33
Estou há quase um mês sem comunicação com vocês, mas, como sabem, foi por um bom motivo. Com a dissertação finalmente entregue, será possível não só conciliar melhor as pesquisas e o lado b, como também trazer conteúdos e leituras para quem me acompanha. Agradeço quem apoia e teve paciência de esperar esse pequeno gap necessário para a conclusão da pesquisa.
Volto compartilhando sobre um tema que não sairá tão cedo da nossa agenda: violência contra meninas e mulheres. Dados do novo Anuário de Segurança Pública Brasileiro, publicado em 20/07, revelam alta em todas as formas de violência contra mulheres. Na mesma semana, a visita da relatora especial da ONU sobre violência contra meninas e mulheres ao Brasil foi adiada pelo Ministério das Mulheres de forma inesperada. No backstage, as mensagens que circulam mostram pressão de grupos de lobby próximos à gestão petista e cerceamento da agenda feminista. Bora lá atualizar vocês sobre isso.
Todas as formas de violência contra às mulheres aumentaram em 2022 segundo dados divulgados no dia 20 de julho no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Tal conclusão foi alcançada a partir da análise de registros de boletins de ocorrência, acionamentos ao 190 e solicitações de medidas protetivas ao longo do período. O aumento da violência contra as mulheres havia sido antecipado na quarta edição do relatório “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, também feito pelo Fórum de Segurança Pública, e no estudo preliminar do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “Elucidando os casos de estupro por meio de diferentes bases de dados”, publicado no primeiro semestre de 2023, responsável por revelar que, a cada minuto, duas mulheres são estupradas no país.
Algumas coisas me chamaram a atenção nesse Anuário. Primeiro, e mais uma vez, a Open Society Foundations, junto com a Ford Foundation, Instituto Galo do Amanhã, Fundação José Luiz Egydio Setúbal, Fenavist (Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores), é patrocinadora do relatório. Não há nada particularmente surpreendente na crescente dependência financeira de organizações da sociedade civil (e até mesmo do Estado, que acaba muitas vezes por terceirizar sua atuação para OSCs) das fundações filantrópicas de milionários e bilionários (os mis e bis). No entanto, as coisas ficam, no mínimo, incômodas quando cada vez um número maior de pesquisadores e organizações são financiados pelos mesmos sujeitos, com as mesmas agendas e interesses, que atualmente também estão financiando mídias (inclusive grandes mídias), e tudo o que colocamos a mão tenha dinheiro desse grupo de ilustres. Nenhum tipo de monopólio é positivo, mas o monopólio do financiamento à produção de informação, conhecimento e dados (por meio da mídia, da academia e das OSCs) sem dúvidas deveria levar a um debate amplo sobre como mitigar os danos e encontrar alternativas de médio e longo prazo. Embora esse debate esteja acontecendo ainda que de forma incipiente em outros países, por aqui ainda estamos, em grande medida, entorpecidos.
Agora, vamos aos dados gerais. Os achados do Anuário revelaram que todos os indicadores de violência contra as mulheres tiveram aumento. Os casos de feminicídios cresceram em 6,1% em 2022, resultando em 1.437 mulheres mortas, majoritariamente por companheiros (53,6%) e ex-companheiros (19,4%). Dessas, 877 eram negras. Os homicídios dolosos de mulheres também cresceram, o que, para as pesquisadoras, significa que o aumento dos números não pode ser explicado como resultado de melhora na notificação. Estamos falando, portanto, de aumento real no número de casos. Em se tratando de violência doméstica, estamos falando de mais de 600 mil casos, totalizando um aumento de 2,9% nos casos de agressão e 7,2% nos casos de ameaça, com 102 acionamentos ao 190 por hora. Em termos comparativos, houve redução de 2,4% em mortes violentas intencionais gerais no país (47.508 mil casos).
Já os casos de estupro cresceram 8,2% em comparação a 2021, sendo o maior número de estupros da história, totalizando 74.930 casos, cerca de 208 estupros por dia. Das vítimas, 88% são mulheres ( das quais 56% são negras, 42% brancas e 0,9% indígenas e amarelas). Desse total, 61% das vítimas são crianças, sobretudo meninas, de 0 a 13 anos. A maior parte da violência acontece em casa (68%), no entanto o risco em espaços e vias públicas segue bastante real com 9% dos casos notificados1. Por sua vez, os registros de assédio sexual cresceram 49,7% e totalizaram 6.114 casos em 2022 e importunação sexual teve crescimento de 37%, chegando ao patamar de 27.530 casos no último ano. Os dados também revelaram aumento nos casos de perseguição (stalking), com 155 casos por dia, e de violência psicológica, que ultrapassaram os 24 mil registros.
As explicações para tamanho incremento da violência contra meninas e mulheres, segundo as pesquisadoras do Anuário, são 1) desfinanciamento das políticas de proteção à mulher por parte da gestão de Jair Bolsonaro, que registrou a menor alocação orçamentária em uma década para as políticas de enfrentamento à violência contra a mulher; 2) impacto da pandemia de covid-19 nos serviços de acolhimento e proteção às mulheres, que em muitos casos tiveram restrições aos horários de funcionamento, redução das equipes de atendimento ou mesmo foram interrompidos; 3) ascensão de movimentos ultraconservadores na política brasileira, que elegeram o debate sobre “igualdade de gênero” como inimigo número um; 4) backlash global aos avanços da “igualdade de gênero”.
Selecionando os “inimigos”, ou por que as explicações do Anuário são, no mínimo, parciais
O impacto negativo da gestão Jair Bolsonaro em absolutamente todas as áreas é indiscutível, bem como o impacto do Covid-19, responsável por aumentar a vulnerabilidade de meninas e mulheres de muitas formas. Quando colocamos Jair Bolsonaro, pandemia e crise climática juntos, os efeitos são exponenciados de forma assustadora. Igualmente, a teoria do backlash me parece válida. Se contextualizarmos com alguns dados globais, veremos aumento geral da violência contra meninas e mulheres na última década; aumento nos casos de trabalho forçado e exploração sexual de meninas e mulheres em várias partes do mundo; a saúde mental de meninas e mulheres, inclusive em países do Norte, está por um fio (não, não é TPM, é a realidade de meninas e mulheres sob o patriarcado capitalista), enquanto o ritmo de avanço aos direitos legais das mulheres diminuiu pela primeira vez em 20 anos, incluindo regressão de direitos.
No entanto, a regressão em todos os âmbitos não nos permite, em absoluto, ligar tal cenário de violência e misoginia apenas aos movimentos “ultraconservadores de direita que elegeram a pauta da igualdade de gênero como inimiga número um”, exigindo uma análise mais cuidadosa capaz de ao menos tentar vislumbrar a figura completa. Embora esses sujeitos de fato estejam em ascensão, sobretudo com muitos jovens aderindo ao pensamento conservador, e a pauta de gênero, e não apenas da “igualdade de gênero” (e não o feminismo e a libertação das mulheres), seja uma pauta tão cara aos conservadores quanto aos progressistas, a esquerda tem contribuído em grande medida para o cenário de violência, sobretudo ao transformar mulheres em objetos públicos e em uma categoria vazia, a-histórica e descorporificada que não pode se organizar e enfrentar as violências (físicas, sexuais, institucionais e psicológicas) enquanto classe. É bastante difícil criar políticas de proteção e amparo a um grupo de sujeitos que sequer pode ser definido hoje com base em sua realidade material e histórica.
Ao mesmo tempo, as explicações do Anuário passam longe de conseguir fornecer alguma pista para o aumento da violência contra meninas, e a queda na idade das vítimas de estupro sobretudo por, a meu ver, deixar de lado o debate sobre a hiper sexualização infantil, a “pornificação” da sociedade e o acesso disseminado e gratuito à pornografia violenta, três fenômenos inter-relacionados que, embora nem sempre de forma óbvia e escancarada, são defendidos ou tratados como “tabus” pela esquerda brasileira. Igualmente, o Anuário não olha para os crimes envolvendo misoginia e abuso sexual no ambiente digital para além das denúncias de perseguição, embora os mencionem en passant.
Ao selecionar como o “verdadeiro inimigo das mulheres” a direita – e não o patriarcado, e o machismo e o sexismo presentes nas instituições e nos homens (e mulheres, porém de forma bem menos letal) da esquerda e da direita – as pesquisadoras invisibilizam a própria realidade das meninas e mulheres e pregam um discurso politicamente polarizado e, ao mesmo tempo, despolitizante acerca do contexto nacional e global da queda da segurança e do acesso a direitos por parte de meninas e mulheres, funcionando elas mesmas como prova concreta de que a “feminização” da academia, da pesquisa e das instituições não significa muito para as mulheres por não significar automaticamente o aumento da consciência feminista desses espaços, de seus processos e produtos.
A misoginia neoprogressista
Um pouco antes do lançamento do Anuário, o governo brasileiro adiou, de forma unilateral e sem oferecer previsão de novas datas, a visita da relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para Violência Contra Meninas e Mulheres, Reem Alsalem. A visita estava marcada para acontecer durante os dias 31 de julho a 10 de agosto. A relatora foi informada não ser possível recebê-la por questões de agenda, embora a visita estivesse programada há meses.
Como relatora especial, Alsalem dialoga com governos e grupos da sociedade civil para entender a realidade das múltiplas violências contra meninas e mulheres em contextos nacionais e globais. No ano passado, a relatora foi responsável por um dos primeiros relatórios demonstrando as conexões entre a crise climática e o aumento da violência e comércio sexual envolvendo meninas e mulheres, no qual também faz recomendações aos países e aos governos sobre como conter e mitigar a violência contra meninas e mulheres relacionadas às alterações do clima e suas consequências.
A vinda de Alsalem ao país está sendo protelada desde a gestão de Jair Bolsonaro dada a inviabilidade de diálogo sobre o tema com o antigo governo e Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O cancelamento por parte do Ministério das Mulheres na gestão petista aconteceu de forma inesperada e, até o momento, não houve pronunciamento sobre os motivos do adiamento tampouco sobre novas datas a despeito dos pedidos feitos por organizações feministas que esperavam a vinda da relatora.
Em reunião com representantes de organizações e coletivos brasileiros na segunda-feira, 24/07, Alsalem confirmou ter ouvido de fontes seguras que o adiamento de sua visita aconteceu por pressão de determinados grupos de lobby com influência na atual gestão e contrários às opiniões da relatora. Atualmente, Alsalem vem sofrendo pressão de grupos a favor da Lei de Alienação Parental (LAP) e de grupos transativistas, bem como de grupos contrários ao seu posicionamento sobre acesso ao aborto e direitos reprodutivos.
Alsalem passou a expressar publicamente sua posição contrária à alienação parental, sobretudo a forma como a lei, em vários países, está sendo balizada nas cortes e fóruns de forma a prejudicar mulheres e crianças. Em junho desse ano, a relatora também se manifestou contra a decisão da suprema corte dos EUA ao regredir no acesso ao aborto legal e seguro no país e “atropelar os direitos reprodutivos das mulheres”. Ainda, Alsalem se manifestou sobre a escalada de cerceamento político e intelectual, sobretudo de mulheres, que defendem direitos baseados no sexo e/ou não subscrevem à teoria da identidade de gênero, ressaltando a criminalização da luta feminista (o que, por sua vez, resultou em um pedido de exoneração da relatora por parte de grupos transativistas, inclusive brasileiros). A relatora também colabora e se manifesta em outros relatórios especiais. Por exemplo, em 2021, Alsalem colaborou com outros relatores especiais acerca das leis anti-LGBT em Gana.
É notável que, apesar de não exercer nenhum tipo de influência objetiva nas decisões políticas dos governos os quais visita, e ter conseguido diálogo com grupos de interesse diversos até mesmo na conservadora Polônia, Alsalem está sendo cerceada pelo Ministério das Mulheres em uma gestão considerada progressista por seus posicionamentos abertamente feministas e pró-mulheres em um contexto de aumento de violência contra meninas e mulheres no país e no mundo, onde especialistas como ela podem colaborar para elucidar as múltiplas causas desse aumento de violência e para reverter tal cenário. É igualmente notável que a relatora esteja sendo cerceada por falar abertamente sobre temas centrais à agenda feminista por grupos “progressistas” e que buscam a “defesa dos direitos humanos”.
O backlash é real. A ilusão é acreditar (e pregar) que ele vem apenas da direita e se assenta na cultura. O anti-feminismo “progressista” é tão antigo quanto Clara Zetkin e August Bebel, e atualmente ganha força renovada nas múltiplas vertentes da esquerda, do centro eleito aos libertários radicalizados. Não é coincidência que esse “backlash” aconteça em um momento em que o processo de acumulação enfrenta limites reais para extrair mais-valor do Femitariado e seguir seu fluxo. Voltarei nesses temas (anti-feminismo proletário e crise de acumulação secular) em breve, mas por hoje é só.
Até a próxima,
Marina Colerato
A nível global, o padrão é o mesmo. No entanto, segundo a OMS, casos que acontecem fora de casa são mais subnotificados e é seguro inferir que os dados não demonstram a realidade da violência sexual cometida fora do ambiente doméstico. Cf. https://www.who.int/publications/i/item/WHO-SRH-21.6.