“entramos num período de estupidez histórica”
sobre o fim do cérebro (mais dica de clube do livro para exercitar o seu)
Não me lembro exatamente de onde tirei as aspas que intitulam a track de hoje, mas provavelmente de algum texto dizendo como e por que a sociedade humana parece estar regredindo em termos de QI e capacidade cognitiva (limites de caracteres nunca foram uma boa pedida, afinal). Mas talvez seja isso que precisamos para passar imune pela distopia transmoderna: ignorância deliberada e total dissociação da realidade. Álcool & outras drogas parecem não ser suficientes. Afinal, uma garrafa de tequila não chega perto da alucinação proporcionada por coisas como bebês de silicone feitos para homens enfiarem no ânus e “simularem um parto”. Ainda estou tentando entender o pior no que já é horrível: a existência do boneco ou os dizeres “esse Bebezão de Ânus te deixará arrombado como sua mãe quando você nasceu”.1
Isso é tão bizarro que deveria estar enterrado nas camadas profundas da deep web, mas, atualmente, estampa páginas em periódicos acadêmicos financiados pela CAPES e pelo CNPq. E fica melhor, é claro, dado que alguns desses homens proferem seus “louváveis intentos” de “solidariedade feminista” ao “performarem um parto” pelo ânus. Para os interessados em entender mais sobre o movimento MPREG (male pregnancy, gravidez masculina), essa comunidade é bastante útil e eu realmente indico para quem segue na defesa irrestrita dos direitos sexuais masculinos. Bem, sendo positiva, ao menos o bebê é de silicone. Diferente dos bebês que têm sido forçados a coisas como essa.
Inclusive, notem como a excitação de performar a realidade biológica/ecológica das mulheres e ocupar nossos espaços é tão latente que começa com a questão estética e, para um número considerável de homens, passa pela simulação de parto pelo ânus e galactorréia masculina forçada por hormônios, pelo desejo de “passar pela experiência do aborto” (como se este fosse um passatempo turístico para mulheres), na possibilidade de frequentar ginecologistas, usar banheiros femininos e, a pérola, “ser fodida (lê-se ‘violentada’) como uma mulher”.
Se sempre me soou grotesca a ideia completamente misógina de que porque homens fazem sexo anal com outros homens eles compartilham em qualquer instância de qualquer parte da realidade feminina, então nem preciso dizer que me faltam adjetivos para expressar o que penso sobre o atual delírio progressista que quer homens estupradores, pedófilos e assassinos sendo chamados de mulher. Pense na distopia de uma mulher vítima de violência sexual ter que chamar seu estuprador de “ela” em um tribunal.
Embora haja poucas coisas mais misóginas do que reduzir a existência feminina (incluindo a potência geradora de novas vida) a uma performance (e/ou a um tipo específico de ato sexual) e depois silenciar as mulheres que se recusam a se curvar a tamanha objetificação e desumanização, normalmente acusando-as de crime e incitando a perseguição e a violência, este se tornou o comportamento padrão da esquerda (radicalizada ou não), incluindo a parte dela que se diz “eco”. Essa última categoria de sujeitos de fato me intriga.
Para os eco-qualquer-coisa, deveria saltar aos olhos, se não a misoginia latente, ao menos o quão profundamente antropocêntrica é a ideia de que os humanos criam a realidade material por meio da linguagem, como se humanos, fêmeas e machos, a natureza objetiva e os corpos sexuados não existissem antes de os humanos conceituarem sobre tais coisas. A arrogância histórica dos acadêmicos do Norte global é impressionante, mas menos surpreendente do que a estupidez dos acadêmicos do Sul que continuam importando de forma irrestrita e a-crítica a Ciência capitalista colonial, responsável por tratar a natureza encarnada e corporificada como matéria inerte e amorfa à disposição dos desejos masculinos, da carne de laboratório e dos organismos geneticamente modificados às tecnologias reprodutivas e identidades sexuais sintéticas.
Como dito em um texto que traduzi recentemente, os transativistas — e a esquerda em peso com eles — “estão seguindo uma política que é intelectualmente incoerente, antifeminista e em desacordo com uma visão de mundo ecológica”. Para mim, essa desconexão flagrante é reflexo do fato de “que a esquerda está abandonando o seu próprio modo de análise e abordagem teórica quando abraça a resposta liberal, individualista e medicalizada do movimento transgênero ao problema das normas de gênero rígidas, repressivas e reacionárias do patriarcado”.
Também é preciso muita ignorância deliberada acerca da história das mulheres e de como a dominação das mulheres precede e dá forma às dominações de raça e classe para defender a ideia de que ser mulher é um sentimento, uma alma, um conjunto de esteriótipos - e não que mulheres formam um grupo de sujeitos vivendo em um corpo sexuado específico que há 5 mil anos é instrumentalizado para, no fim das contas, acumulação de bens, riquezas e prestígio por parte dos homens.
Ver pessoas e grupos autointitulados “da esquerda” com medo de se emparelharem à direita por defenderem a realidade material dos mamíferos humanos, mas que não veem nenhum tipo de problema em se emparelharem ideologicamente com pedófilos e estupradores diz bastante sobre o status das mulheres dentro dos grupos à esquerda (sejam eles radicalizados ou não) e sobre a esquerda em si. É por isso que endossar o apagamento das mulheres enquanto grupo político, a cooptação do nosso léxico de luta feminista construído ao longo de décadas, a metafísica da “alma” ou “essência” de gênero e a ideia de que uma mulher é um objeto a ser fodido e, portanto, homens que querem ser “fodidos como uma mulher” são, na verdade, mulheres soa tão natural quanto à natureza corporificada que eles digitalmente vivem para negar.
A reprodução das estratégias de negacionismo científico e completo desinteresse por qualquer informação e debate que desafie tais crenças é, sem dúvidas, um caso a parte. Vejam o exemplo recente de um pediatra reconhecido que tweetou sobre a revisão Cass ser uma falácia, sem dizer o porque. Quando foi convidado para trazer seus pontos frente à comunidade científica, ele simplesmente se recusou. Mesmo com a possibilidade de doar 10 mil dólares para qualquer organização infantil que desejasse caso participasse do debate.
É realmente impressionante, mas há muitas outras informações que essa galera se recusa a debater. Dados sobre o mercado global da identidade de gênero; como isso vem acometendo particularmente meninas num surto pós-pandêmico relacionado ao isolamento e grupos de internet; pesquisas sobre os efeitos dos bloqueadores de puberdade e o debate internacional acontecendo sobre o tema; os diversos (e severos) problemas de saúde que pessoas transicionadas enfrentam (veja mais dois estudos recentes sobre pessoas do sexo feminino medicalizadas), a influência inquestionável do capital colonial para forjar o presente cenário (afinal não só a própria narrativa da identidade de gênero vem do Norte global, como os hormônios, as tecnologias transumanas e o dinheiro de lobby), demonstrações claras de perseguição de quem discorda e um ad infinitum de informações e dados reais são deixados de lado para defender a própria ideologia, se embasando em narrativas falaciosas para sustentar a própria posição. Em outras palavras, seguindo a cartilha exata utilizada por grupos de extrema direita, fascistas e totalitários que buscam impor, por todos os meios possíveis, sua própria realidade e desejos ao conjunto da sociedade. Smells like Stalin Spirit. Talvez eu não deva me espantar com o tanto de jovens stalinistas emergindo nas universidades.
Mas como, a cada dia que passa, a realidade se torna incontornável (mais uma mulher estuprada no presídio feminino por uma pessoa do sexo masculino transidentificada, ou mais documentos obtidos do WPATH mostram o charlatanismo da “medicina transgênero”, ou mais um caso que mostra as relações desconfortáveis entre o queer e a pedofilia), o que lhes resta é transformar os discordantes em um tipo de espantalho utilizando palavras como “radfem”, “conservador de esquerda” e “anti-trans”, vetar o diálogo, silenciar discordantes e defender o uso de agressão verbal, física, sanção econômica e ameaça de estupro, esquartejamento e morte contra qualquer um que se recuse a imergir na ficção.
Talvez o pior no que já é horrível seja ver o protagonismo das mulheres nesse cenário, bem como a inação de tantas outras para enfrentá-lo. A normalização da coação e distanciamento das mulheres de sua própria classe, o ódio que mulheres carregam de outras mulheres, o liberalismo que tem tomado os movimentos feministas e a síndrome de Estocolmo social que acomete tantas. Em conjunto, esses fenômenos não permitem que muitas mulheres pensem por si mesmas, o que as põe num papel (lamentável e ridículo) de defender cegamente quem está destruindo conquistas prévias, árduas e algumas um tanto recentes do movimento feminista.
Ainda que tanto se defenda a tal da interseccionalidade, a interseccionalidade é deixada de lado quando os movimentos se afastam das bases da luta feminista porque defender essa base é defender todas as mulheres, mas especialmente as mulheres que mais precisam do avanço dessa luta em primeiro lugar. No Brasil, sabemos qual a classe e cor das mulheres mais vulneráveis às consequências da hierarquia sexual seja em termos de feminicídio, vulnerabilidade à prostituição, vulnerabilidade ao encarceramento, agressão física e gravidez na adolescência. São elas, portanto, as mais expostas às consequências práticas da desconexão teórica da realidade objetiva e da adoção irrestrita da ficção de que homens, de fato, podem ser mulheres, por nossas instituições sociais.
Quanto mais vivemos o pesadelo, mais vemos que se tem algo material que está desaparecendo esse algo não é o sexo, é o cérebro. Eu sei que há muita misoginia sustentando o delírio progressista, mas sem dúvidas há uma falta de capacidade intelectual coletiva de pensar por si mesmo e isso me dá calafrios. Que a Deusa salve o que resta de massa cinzenta nas pessoas portadoras de cérebro da esquerda.
Quer ter uns argumentos bons na ponta da língua para saber conversar sobre as falácias por trás da doutrina queer e dos escritos sacerdotais de Butler, Laqueur e afins? Vá com Aleta Valente (nossa ilustre convidada do na fogueira #3) no Clube do Livro de Material Girls: Por que a realidade importa para o feminismo, da Kathleen Stock (o livrão que vocês já tão cansadas de me ouvir falar sobre). Serão dois encontros, é a chance de você ler e conversar sobre o livro — que vale muito a leitura sobretudo se você não tá entendendo o tamanho do buraco e quem começou a cavá-lo em primeiro lugar.
🔍 O que a Aleta vai explorar no Clube?
- As ideias filosóficas que moldaram o debate atual sobre gênero.
- A interpretação e o impacto de afirmações como a de De Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
- As reivindicações de Judith Butler sobre a linguagem e a realidade biológica.
- A importância do sexo biológico como marcador em contextos como saúde, esportes e políticas públicas.
Para saber mais e se inscrever, clique aqui.
Aproveite que a track de hoje é curtinha e se atualize das últimas:
→ a ministra Cida Gonçalves e o escárnio com as mulheres
→ na fogueira [contra o mainstream]: com O Pessoal é Político sobre OnlyFans e a glamourização do comércio sexual
→ o feminismo radical e os fracassos da esquerda
→ papo de fera #1: gênero, patriarcado e violência
A página com as opções de bonecos de diversos tamanhos saiu do ar, mas os dizeres nunca saíram da minha mente.
Querida Marina, es necesario traducir este excelente texto al castellano y hacerlo llegar a más mujeres. Yo no hablo portugués pero entiendo cuando leo. Puedo ayudar.
Como sempre muito lúcida! Obrigada