O presente texto foi publicado na Revista de Observações Filosóficas e é de autoria da Dra. Rosa María Rodríguez Magda, da Universidade de Valência. A publicação original publicada (com todas as referências e notas de rodapé) em espanhol pode ser lida aqui. Também indico os textos da filósofa no El País.
A tradução do espanhol para o português foi feita gentilmente por Maíra Castanheiro, escritora e tradutora que você encontra no @mairacastanheiro. Maíra topou fazer a tradução, que para esse texto foi um tanto trabalhosa não só pelo tamanho (12 mil palavras!), mas pela complexidade teórica. Quem puder colaborar com esse trabalho da Maíra, sobretudo quem não apoia financeiramente o lado b, deixo aqui o link para comprar o seu livro Diário de uma Mãoconheira e/ou fazer um pix para mamairato@gmail.com. Eu agradeço demais quem puder fortalecer o corre das minas e agradeço a Maíra por ter topado essa empreitada. Foi um trabalho e tanto!
Antes de passar para o texto, gostaria de comentar como conheci o conceito de transmodernidade. Estava conversando com uma amiga interessada no tema da bioética e que já vinha acompanhando as feministas espanholas há algum tempo. Numa troca de áudios daqueles tipo podcast, comentei sobre como me parecia notório a conexão entre transgênicos-transgêneros-transumanos. Não só as empresas envolvidas como o ethos transcendental, que também é transnacional, é exatamente o mesmo. “Você conhece a feminista Rosa María Rodríguez Magda?”, ela me perguntou. Não conhecia e que descoberta! Nas mãos da filósofa feminista, transmodernidade é uma elaboração que dialoga um tanto com que estava pensando. Espero que o texto sirva para abrir janelas sobre o caminho social que estamos trilhando e quais as possibilidades outras para além do niilismo individualista e do planeta inferno moldado à imagem do patriarcado capitalista.
Introdução
O conceito de "transmodernidade" foi colocado em circulação por mim no livro: La Sonrisa de Saturno - Hacia una teoría transmoderna (O Sorriso de Saturno - Para uma teoria transmoderna, em português). Embora o volume compila textos e conferências, que apontam para sua gestação em anos anteriores. E digo "colocar em circulação", porque quem é o dono das palavras? Só posso afirmar que não tirei de ninguém, que não conheço nenhum uso sistemático dela antes de fazer dela o eixo da minha reflexão e que, mais tarde, apesar do seu aparecimento esporádico em determinados contextos, não tenho conhecimento de uma elaboração que pretenda dar-lhe a dimensão teórica na qual eu proponho.
Em 1987, na casa de Jean Baudrillard, e em meio a uma longa conversa, ficou clara a insuficiência do termo “pós-modernismo”, cuja descrição ele rejeitava. Com efeito, para mim, a realidade por ele descrita em conceitos como "transexual" ou "transpolitique" remetia a uma configuração epistemológica diferente, que, juntamente com noções como simulacro ou hiper-realidade, nos falava de um afinamento da realidade, de uma relação diferente com o mundo, que ia além de suas obras para representar algo como l'esprit du temps. Ele não tinha pensado nisso, mas sugeri que talvez o tempo em que estávamos pudesse muito bem ser chamado de "Transmodernidade". Perguntei-lhe se esta denominação poderia parecer menos estranha para ele. De forma irônica e simpática, ele me disse que se fôssemos poucos, ele poderia concordar em nos encontrarmos lá, desde que nos afastássemos da multidão pós-moderna!
Depois dessa conversa, fiquei pensando no termo, pois mais do que um simples achado momentâneo, parecia-me que ele poderia captar toda uma série de transformações do nosso presente conceitual e experiencial que o nome do post obscurecia.
O Capítulo VI do meu Sorriso de Saturno intitula-se “O futuro da teoria: a transmodernidade” e nele, após analisar as características da Modernidade e da Transmodernidade, começo a traçar as diretrizes do novo conceito. Como está escrito aqui:
“A transmodernidade prolonga, continua e transcende a Modernidade, é o regresso de algumas das suas linhas e ideias, talvez as mais ingênuas, mas também as mais universais. O hegelianismo, o socialismo utópico, o marxismo, as filosofias da suspeita, as escolas críticas... mostraram-nos esta ingenuidade; Após a crise dessas tendências, olhamos para trás, para o projeto iluminista, como um quadro geral e mais confortável para escolher nosso presente. Mas é um regresso distanciado, irônico, que aceita a sua ficção útil. A transmodernidade é o retorno, a cópia, a sobrevivência de uma Modernidade fraca, rebaixada, leve. A zona contemporânea percorrida por todas as tendências, as memórias, as possibilidades; transcendente e aparente ao mesmo tempo, voluntariamente sincrética em sua “multicronia”. A transmodernidade é uma ficção: a nossa realidade, a cópia que suplanta o modelo, um ecletismo malandro e angelical ao mesmo tempo. A transmodernidade é o pós-moderno sem o seu inocente rupturismo, a galeria-museu da razão, para não esquecer a história, que expirou, para não acabar na bárbara cibernética ou no crime mass-media; é propor valores como freios ou como fábulas, mas não esquecer, porque somos sábios, porque nosso passado já foi. A transmodernidade retoma e recupera as vanguardas, copia-as e vende-as, é verdade, mas ao mesmo tempo recorda que a arte teve -tem- um efeito de denúncia e de experimentalismo, que nem tudo vale; cancela a distância entre elitismo e cultura de massa, e revela suas duas faces cruzadas. Transmodernidade é imagem, série, barroco de fuga e autorreferência, catástrofe, loop, fractal e reiteração fútil; entropia dos obesos, inflação roxa de dados; estética do aglomerado e seu desaparecimento entrópico e fatal. Sua chave não é o post, a ruptura, mas a transubstanciação vasocomunicada dos paradigmas. São os mundos que se penetram e se resolvem em bolhas de sabão ou como imagens em uma tela. A transmodernidade não é um desejo ou uma meta, ela simplesmente existe, como uma situação estratégica, complexa e aleatória que não é elegível; não é bom nem mau, benéfico ou insuportável... e é tudo isso junto... É o abandono da representação, é o reino da simulação, da simulação que se sabe real”.
Desde o início, minha circulação do termo pretendia ser um ponto de partida para estruturar uma teoria que, sendo raivosamente recente, abriria caminhos contra as pós-correntes que se enredavam em um beco sem saída, fascinadas por um uso excessivamente literaturizante de seus termos, encalhando em um ecletismo e relativismo socialmente fútil e epistemológicamente niilista. Para isso, ele havia apontado uma série de propostas teóricas no mesmo livro que venho citando:
Uso regulamentar e formal de certos valores e ideias.
Deliberação e escolha das regras do jogo para as diversas práticas. Revisão.
Multiplicidade de jogos de linguagem.
Assunção do compromisso ontológico de uma determinada opção momentânea.
Exercício crítico “fraco”, não desmascaramento ontológico, mas autonomia e salubridade pragmática.
Apropriação do dinamismo, fragmentação... pós-moderna. O uso regulador de certas ideias confere objetividade e normalização; a revisão constante tentaria aliviar sua instrumentalização.
Ideal democrático esclarecido para a sociedade; retorno do indivíduo à vida privada.
Ceticismo, ironia, distanciamento: retomada "leve", rebaixada, dos critérios de fundação; legitimação a posteriori, pelos resultados.
Como Kant muito bem nos mostrou, para agir e pensar, não é necessário conhecimento numênico dos fundamentos, mas estes devem ser assumidos como ideais reguladores. Tratava-se de dar um passo além, embora para ele não fossem verificáveis empiricamente, mas em certo sentido eram absolutamente reais, o desafio hoje consistia em reconhecer sua necessidade lógica numa ausência metafísica mais radical; Nós as especificamos como condições de consistência epistemológica, mas isso apenas supõe uma exigência de nosso procedimento intelectivo, de modo algum do mundo real. Assumir essa ausência intrínseca não diminui a eficácia do processo. O fundamento não estará no conhecimento metafísico da verdade, mas no pacto epistemológico dos sujeitos que pactuam uma racionalidade que lhes permite interpretar a realidade e transformá-la.
Assim, o acordo, após a uma suposta ficção e hipotética de uma certa universalidade, assume a multiplicidade dos jogos de linguagem, razão pela qual estabelece certas regras do jogo intrínsecas às práticas selecionadas. Portanto, se uma ação deseja ser inteligível, compartilhável e eficaz, ela deve propor hipotética, temporária e passível de revisão de certas asserções, que serão aceitas pelos sujeitos como se fossem reais enquanto durar a tarefa. Por exemplo, qualquer exercício democrático supõe o acordo normativo e com vontade universalizável dos ideais reguladores de racionalidade compartilhada, justiça, igualdade, representação, liberdade... etc., o que não implica seu fundamento substancial, mas sim sua aceitação formal pactuada, exercendo o véu ralwsiano da ignorância sobre os fortes conteúdos da crença, que em sua solidez, tornariam impossível o consenso. É verdade que nunca se é “formal” impunemente, qualquer esquema conceitual carrega subjacente uma ontologia, devemos estar atentos ao compromisso ontológico que assumimos, e por isso não perder de vista que se trata de uma opção momentânea, revisável, e constantemente sujeito a autocrítica. Trata-se de estabelecer um meio termo entre o essencialismo e o mero uso instrumental da razão. Esse tipo de pragmatismo irônico (no sentido rortyano) não quer, afastando-se da metafísica, cair no possibilismo mendaz, mas sim obter os melhores resultados, assumindo o caráter hipotético e provisório de nosso pensamento. Epistemologicamente é o máximo que podemos nos permitir, mas para obter resultados não devemos aceitar limitações. Devemos aspirar que nossa intelecção e transformação do mundo, no campo teórico, científico, tecnológico, social, ético, estético... seja como se não tivéssemos apenas metodologias instrumentais, mas a sabedoria total que os antigos filósofos almejavam.
Tal foi, em linhas gerais, a primeira postulação, que posteriormente desenvolvi em uma série de conferências: “Transmodernidade, neotribalismo e pós-política”, “Transmoderno Feminino”, “A teorização do gênero na Espanha: Iluminismo, diferença e transmodernidade”, reunido em meu livro: O modelo de Frankenstein. Da diferença à pós-cultura. Madri, Tecnos, 1997.
“A transmodernidade, como palco aberto e designação do nosso presente, tenta, para além de uma denominação aleatória, recolher no seu próprio conceito a herança dos desafios abertos da Modernidade após a falência do projeto iluminista.
Não renunciar hoje à Teoria, à História, à Justiça Social e à autonomia do Sujeito, assumindo a crítica pós-moderna, significa delimitar um horizonte possível de reflexão que foge do niilismo, sem se comprometer com projetos vencidos mas sem esquecê-los. Aceitar o pragmatismo como base não implica negar que a ação humana é guiada por ideais reguladores que sustentam a racionalidade argumentativa, embora esses ideais reguladores, que depois da modernidade renunciaram a se basear na teologia ou na metafísica, também não possam hoje, depois das críticas pós-modernas, legitimar-se no projeto Iluminista. Enfraquecemos sua força gnoseológica, mas de forma alguma, e daí a noção de pragmatismo, sua necessidade lógica e social. Tais ideais regulatórios representam simulações operacionais legitimadas na teleologia da perfectibilidade racional, cuja crítica e consenso renovam incessantemente, valores não universais mas universalizáveis de natureza pública, que encontram a sua esfera não na intuição, no senso comum ou na tradição, mas no esforço teórico de criar paradigmas conceituais que possibilitem o aumento do bem-estar social e individual. Falamos, então, de transformação social, de transcendência da mera gestão prática, de transações argumentativas, de linhas de questionamento que se cruzam, transformando-se e transformando, o indagar racional.”
Este livro continua e completa esta reflexão, já contribuindo com o que considero uma caracterização mais completa.
Obviamente, um novo termo composto pela adição de um prefixo a um conceito como "Modernidade", que define um paradigma, aparece espontaneamente em várias disciplinas e tendências, (embora eu não saiba que tenha sido usado, antes de que eu o tivesse alcunhado em 1989, como uma nova configuração teórica, com fundamentação estruturada, para além de uma utilização meramente aleatória e pontual). Apesar desta última, considero interessante investigar em que áreas surgiu seu uso e com quais significados. Tudo isso, e justamente pelo desconhecimento mútuo de seus propagadores, mostra uma consciência da crise moderna, da insuficiência das propostas pós-modernas e da necessidade de um novo pensamento de superação, que no underground marca coincidências e divergências.
Em uma agradável conversa com Enrique Miret Magdalena, quando lhe expliquei minhas ideias, ele me disse que anos atrás, em uma conferência, ele usou o termo como um nome para uma nova fase sintética que estava por vir, embora em seus trabalhos posteriores ele não continuou a desenvolvê-lo. O hispanista estoniano Jüri Talvet também a utilizou no campo da crítica literária, para aludir à produção poética atual que busca uma abertura diante do cânone pós-moderno estabelecido, excessivamente esgotado em elementos como distância, ironia, jogo…
Além dessas e de outras coincidências esparsas, há três autores ou áreas, de que tenho conhecimento, que tentaram desenvolver o conceito com maior carga teórica.
O primeiro deles, o pensador mexicano Enrique Dussel, utiliza o conceito no referencial teórico emanado da teologia da libertação e da reflexão sobre a identidade latino-americana. Para Dussel, a Modernidade é um conceito hegemônico baseado na dominação e exclusão do Outro: a periferia, os indígenas, o povo, as mulheres, os pobres... a filosofia da libertação tentaria exercer uma razão utópica baseada no respeito às particularidades. A ana-dialética representa uma interpelação da modernidade a partir de seu exterior. Como define Eduardo Mendieta, referindo-se a Dussel, “a transmodernidade e a pós-colonialidade funcionam como meios de nos localizarmos e nos encontrarmos; são instrumentos de autonomeação que revelam as diversas formas pelas quais nossa própria territorialização nos levou à desterritorialização dos outros. Tanto a transmodernidade quanto a pós-colonialidade são tentativas de pensar o cristianismo, a modernidade e a pós-modernidade a partir de uma perspectiva marginal, de modo que as dimensões espacial e temporal possam ser contempladas simultaneamente”.
Nesse sentido, as teorias transmodernas seriam entendidas como todas aquelas que, oriundas do Terceiro Mundo, reivindicam um lugar próprio diante da modernidade ocidental. Há, portanto, para Dussel uma atitude crítica, cristã, em defesa dos excluídos, aliada à percepção de uma necessária incorporação da voz do outro, que ele pretende unir em seu uso da noção de transmodernidade. Esta emergência dos estudos subalternos, da epistemologia fronteiriça, conduz à reflexão do pós-colonismo latino-americano, que também se manifesta em denominações como a razão pós/imperial/ocidental/colonial (W.D. Mignolo) ou a noção de Culturas Híbridas de N. García Canclini.
Uma área onde a noção de “transmodernidade” começou a ser ouvida de forma oportuna é em encontros internacionais e institucionais ligados ao diálogo intercultural, à filosofia do direito e à cultura da paz.
A Célula de Prospectiva da Comunidade Europeia, organizou em Bruxelas, em 1998, em colaboração com a Academia Mundial de Artes e Ciências, um seminário intitulado "Gouvernance et Civilisations", Marc Luyckx coordenou o debate usando o termo em questão, como tem feito em outros contextos. A hipótese de partida para o trabalho foi a seguinte: “O Ocidente está em plena transição entre a modernidade e a transmodernidade, enquanto uma parte importante do resto da humanidade vê o mundo através de uma visão agrária e pré-moderna”. A modernidade é caracterizada pela separação entre religião e política, enquanto na pré-modernidade prevalece o sentimento de sacralidade. A transmodernidade seria postulada como uma síntese de ambas as posições, suprimindo a separação entre religião e política, tentando conter sua intolerância mútua, de modo a possibilitar “um retorno sem complexos às próprias raízes culturais e religiosas, abandonando qualquer pretensão de cultura dominante ”. A transmodernidade, assim, daria conta da existência simultânea de tendências modernas e pré-modernas, ajudando a conter a rejeição por parte de alguns países, principalmente islâmicos, da visão ocidental de modernização, muitas vezes identificada com a racionalidade econômica do mercado e perda de valores, tentando fazer o progresso coexistir com a diferença cultural. Tratar-se-ia, portanto, de recuperar um certo caráter espiritual para o Ocidente e aprofundar o diálogo intercultural e a tolerância.
Este aspecto do diálogo entre o Ocidente e o Islã também foi destacado por Ziauddin Sardar em seu artigo “Islã e o Ocidente em um mundo transmoderno” (www.islamonline.net). E dentro da antropologia do direito, o substantivo transmodernidade tem sido utilizado como diálogo e abertura para diferentes experiências culturais pelos professores franceses Etienne Le Roy ou Christoph Eberhard.
Já em outro sentido, deve-se notar, porém, que a dimensão da abertura espiritual promove em alguns fóruns certas coincidências no sentido da integração da complexidade com as derivas da Nova Era; Embora a partir de Ken Wilber em sentido estrito só possamos falar de psicologia transpessoal, o prefixo “trans” abre caminho para propostas de pensamento metapolítico, adualístico, transegóico, multidimensional e sistêmico.
Outro espaço totalmente alheio onde o termo aparece, curiosamente é o da arquitetura. Assim, por exemplo, o Austrian Cultural Forum em Nova Iorque programou em 2002 a exposição: “TransModernity. Arquitetos Austríacos” como uma amostra das novas tendências. E o arquitecto é também o maior divulgador do termo nesta disciplina. Marcos Novak co-dirigiu a Fondation Transarchitectures de Paris com Paul Virilio entre 1998 e 2000. A transarquitetura pretende ser a arquitetura líquida do novo espaço virtual, algorítmico, interativo, cibernético e instável. Uma proposta estética transdisciplinar relacionada com a estereo-realidade definida por Virilio, onde a tecnologia transforma a matriz da realidade, introduzindo-nos no transreal, uma efetiva configuração transmoderna.
Dos três usos do termo analisados, é sem dúvida Novak com quem encontro mais semelhanças, uma vez que se aprofunda, a partir da sua disciplina artística, na percepção e recriação do mundo cibernético e virtual que caracteriza o nosso presente. No entanto, e apesar da dispersão e do desconhecimento mútuo daqueles que espontaneamente passam a usar o adjetivo transmoderno, quero destacar em primeiro lugar a harmonia que circula pela tremenda diferença de posições. Há uma denúncia da crise do modelo moderno e, igualmente, uma consciência da necessidade de abrir, a partir dele, um novo horizonte, uma aposta ativa longe de toda cultura esgotada e sem saída, de todo ecletismo cético. O post foi fin de siècle, o trans é o novo milênio. Verifica-se a confluência de correntes, a coexistência de diferentes graus de desenvolvimento cultural e social: pré-moderno, moderno, pós-moderno, o caráter transnacional e pós-tradicional do nosso presente, exige-se um multifocalismo e, em todos os casos, um desejo de futuro. Até aqui as semelhanças.
Mas o paradigma transmoderno que proponho tem algo a ver com o que foi delineado acima? Certamente, muito pouco.
Sou radicalmente contra entender trans como um prefixo milagroso. A transmodernidade não é a panacéia para todas as contradições, e cairíamos na impostura intelectual se, guiados pela magia do nome, tentássemos fabricar a transmodernidade dos pobres, a transmodernidade dos bárbaros, a transmodernidade dos esclarecidos. Buscar a quadratura do círculo em termos de um forte pensamento multicultural é prolongar a lógica da modernidade, sem entender que já estamos muito longe dela. Pensar com a nova lógica é nos livrarmos de uma vez por todas das velhas ilusões.
Que partimos de uma situação complexa é fato! O modelo transmoderno na sua forma mais descritiva e cínica não pretende resolver nada, é o novo paradigma do primeiro mundo, globalizado, vazio, sofisticado, higt tech. Outra coisa é que a partir dela tentamos aguçar as estratégias para não ficarmos presos em seu turbilhão, para construir as linhas de fuga e sobrevivência com mecanismos próprios.
Mas isso é algo muito diferente de tentar “angelizar” os excluídos ou os fundamentalistas, vendendo como sínteses ansiadas o que não passam de beatíficas “boas intenções” de mãos dadas com a teologia da libertação, o messianismo da Nova Era ou o jargão politicamente correto das organizações internacionais. A transmodernidade não é uma ONG para o terceiro mundo, e é bom que a conheçam o quanto antes, assim como devemos entender claramente que também não é a nova feliz utopia tecnológica. É o lugar onde estamos, o lugar precisamente onde não estão os excluídos. Todos nós teremos que lidar com isso.
Voltemos então à análise cuidadosa desse paradigma em que nos movemos como pequenas células fotoelétricas.
A palavra "transmodernidade" sugere implicitamente uma série de significados conotados por seu prefixo. “Trans” é transformação, dinamismo, passar por algo em um ambiente diferente; que algo que “passa”, não estagna, mas parece chegar a um estágio posterior, carregando assim a noção de transcendência. Então, vamos desenvolver cada um dos sentidos aguçados.
1.1. Transformação. Remete-nos para um dinamismo substancial, para além do estatismo das essências ou da combinatória atomística, leva-nos a pensar num estado quântico instável, gasoso. Não há uma perspectiva privilegiada, mas uma transferência constante de fluxos, um modelo complexo em que cada ponto interage com o outro, sem que as noções de tempo e espaço forneçam mais do que instantâneos conceituais, estruturas interpretativas em andamento. Coexistência de planos, conglomerados mutantes que, assim que se estabelecem, modificam sua configuração. Os modelos atuais de física subatômica, mecânica quântica ou nanotecnologia assumem perfeitamente esse transdinamismo que se configura como uma nova ontologia difusa. Como paradigma social, o trans nos fala da coexistência de tendências heterogêneas, da sobrevivência de sequências temporais multicrônicas, da ruptura da história como processo unitário, da distorção de agentes sociais clássicos, de indivíduos circulando em múltiplas e contraditórias performances e identidades de incidência diversa na mudança social. Historicamente e socialmente nos encontramos em uma multicrônica. Pluralismo, complexidade e hibridação seriam suas características.
2. 2. Transcendência. Todo estado instável causa ansiedade, desperta um desejo de resolução. Por outro lado, o que passa pelo que é, vai além dele. A secularização da razão, e posteriormente o seu enfraquecimento, gerou certa urgência em sair do relativismo, em buscar uma nova síntese, unidade e totalidade, entenda isso no sentido de voltar a um pensamento forte ou retomar a religiosidade e o vínculo com o sagrado. Por tudo isso, não é incomum que o prefixo trans apareça com esse desejo de totalidade e transcendência.
No entanto, como expus em múltiplas ocasiões, o paradigma transmoderno descreve uma situação complexa, cuja centralidade não se refere ao Fundamento, mas ao vazio, à ausência, ao simulacro. A crise da Modernidade evidenciou essa fratura nas Grandes Histórias totalizantes, construir a transmodernidade é assumir essa lacuna essencial em seu humor mais generativo e livre.
A ausência tem sido constantemente referida nos discursos críticos com a Modernidade. A ausência de um absoluto religioso exemplificado na morte nietzschiana de Deus, a falta de um projeto de emancipação manifestado no fim da história, ou mais diretamente toda a tentativa de desconstrução da metafísica da presença realizada por Derrida.
Seguindo Heidegger, Derrida identifica a metafísica ocidental com a intelecção do ser como presença. O logocentrismo suporá o predomínio do telefone sobre a escrita, ao lado do primeiro encontrará o fundamento, a origem, a verdade como desvelamento do sentido; todo um campo onde os conceitos-chave da metafísica são entendidos como presença: eidos, substância, tempo, espaço, subjetividade, consciência... uma ontoteologia subjacente que, desde a filosofia grega e Platão, continua no racionalismo, empirismo, Kant ou o idealismo hegeliano.
Subverter isso implica alinhar-se com o elemento oposto da estrutura binária, assim a escrita demarca o espaço da ausência, ausência de origem e destinatário, significando então como espaçamento entre significantes, como jogo de interpretação, onde os signos interagem sem a verdade presente, como diferença , emergência da materialidade e difusão. Mas esta análise da ausência, a meu ver, privilegia excessivamente a metáfora linguística como fundamento epistemológico e metafísico, o recurso às margens da filosofia parece demasiado poético para enfrentar uma verdadeira reformulação da teoria.
Não se trata de encalhar no niilismo, nem de aceitar um ceticismo eclético, muito menos de abandonar a demanda racional, mas de construir em torno do conceito central da ausência como radicalidade ontológica, uma nova configuração do saber, e com ela pretendo não dar continuidade às linhas tratadas pelos autores citados acima, mas apresentar uma nova compreensão do conceito, dimensionando sua compreensão mais profunda. Assim, a Transmodernidade como um novo paradigma apresenta um modelo global de compreensão do nosso presente, proporcionando aberturas para o desenvolvimento em todos os níveis, sem falsos fechamentos epistemológicos ou experienciais.
-Nível gnoseológico
Depois dos nomes não há objetos. A realidade material se dilui como referente. Um hiper-realismo proliferante gera sentidos. É o idealismo semântico em sua fase virtual, pois os objetos não precisam ser reais para existir. Um mundo em rede de telas conectadas substituiu a realidade pela imagem digitalizada. E o verdadeiro real não está mais nos pacotes de átomos, mas nos pacotes de bits. Pensar na verdade como uma correspondência entre conceitos e coisas é um anacronismo. Após a proliferação de significados, a ausência, esta não é uma falta, mas a própria condição de um cosmos virtual.
- Nível metafísico
A era pós-metafísica não representa a aurora de nenhum novo positivismo, pois a assunção de sua crítica também corrói toda ingenuidade científica. A ausência da essência como fundamento antifundamento. Ser como um processo, um ser-fazendo-e-nunca-concluído. Diante do to tí in einai que deu origem à noção de essência ao indagar o que é o ser em si, atentemos para a definição bíblica que Javé dá de si mesmo: "Eu sou o que serei". Sem qualquer tentativa de atribuição de um sentido divino, na mais estrita imanência - falamos do mundo e do indivíduo - também aqui, "o ser é o que será", o que faz de si, transformando-se, procurando ser, ao aleatório, de acaso ou vontade. O ser é um encontro laborioso, fruto de sua determinação de escapar do nada, uma frágil configuração momentânea realizada antes da extinção.
-Nível ético político
A falta de um pensamento forte não nos leva à ineficácia social. A base da ética é a autonomia, a livre capacidade de se atribuir algumas regras, então um excesso de verdade nos leva à heteronomia, transforma a autonomia moral em obediência. Nem todas as morais reivindicaram ser universais, o trabalho pessoal da demanda está além do acordo. Se a estética parece abandonar a arte para se tornar o desafio teológico por excelência, podemos muito bem ser divinos enquanto humanos e converter a moralidade em uma estética da existência.
Por outro lado, a ausência como lócus do poder, esse topo vazio da pirâmide social, onde não se encontra mais o soberano, é justamente a garantia da ordem democrática, lacuna que pode ser temporariamente ocupada pelo legítimo representante do cidadãos, revogáveis por sua simples vontade. A concordância pública e o silêncio medido sobre as crenças inalienáveis dos indivíduos são as condições do pacto social. O consenso é regido por considerações práticas, o mero uso formal e normativo do ideal de justiça, igualdade ou respeito aos direitos humanos não reduz a efetividade da demanda social de cumprimento, pois nem mesmo um pensamento débil enfraquece a política. Podemos ser transmodernos sem ser cúmplices da inanidade.
-Nível subjetivo
A ausência como carência de um nó essencial nos indivíduos certamente nos priva de uma alma imortal, mas nos concede a liberdade de nossa realização, para além do determinismo sobrenatural, biológico ou psicológico. Assim, nos tornamos sujeitos estratégicos, que avaliam a construção de suas diversas identidades, sujeitos performáticos que configuram nossos próprios traços por meio de nossas ações, encenação de nossas relações e desejos. O eu, então, ao final de um processo, esse mesmo processo de ser-fazer-e-nunca-concluir. A biotecnologia luta para nos transformar além da natureza, nossa qualidade de construções culturais nos distancia do determinismo.
-Nível sacro
A ausência original nos revela o universo como um artifício ôntico. A vertigem do vazio nos devolve à situação de desamparo em que o ser humano necessita desesperadamente da crença em um Ser Supremo. A ausência de sentido, o nada como horizonte, a pequenez no infinito, são as experiências radicais a que, circularmente, nos conduz ao final das Grandes Narrativas. A transcendência imanente que proponho não é um regresso ao sagrado como raiz essencialista e verdadeiro sentido recuperado, mas antes como uma sacralidade estética que assume o mistério da ausência. Para isso, o indivíduo precisa retornar à origem ancestral de seus mitos, para recriar o ritual, no qual ele, oficiante, é ao mesmo tempo criador, depositário do segredo da ausência.
-Nível estético
Se o sagrado é uma estética, a arte só pode recompor o caminho de sua extinção. A crise da modernidade dinamizou o penúltimo momento da vanguarda, a poética pós-moderna se esgota na ironia da citação. A arte sai dos museus, o artista torna-se seu próprio objeto artístico, a obra torna-se ação, o material virtual. Propagar as formas desse vazio parece hoje a única saída. Assumir as metáforas e possibilidades trans em sua forma híbrida e contaminada, mutante e cibernética, pode abrir caminhos ainda não totalmente explorados. Mas sim, vamos além do momento atual de trabalho mínimo e discurso exuberante, o irrelevante nunca pode ser legitimado pela verborragia que há muito se dizia inovadora e hoje simplesmente está fora de moda. Quando os artistas criam, os filósofos pensam o mundo de acordo com suas criações; quando os artistas falam repetem a vulgata ultrapassada que nenhum filósofo mais ousa enunciar. Se a criatividade não é possível, não digamos mais nada, apenas queimemos todos os discursos no fogo sagrado da ausência. Vai ser lindo.
As páginas que se seguem desenvolvem todas essas seções de forma descritiva e inter-relacionada, ora partindo de temas focalizados, ora com um estilo mais fragmentário. Assim, o nível epistemológico e metafísico se reflete nos capítulos I, II, VI e IX, o nível ético-político nos II, III, IV e V, o nível subjetivo nos VII, VIII, IX e X, o nível sagrado nos XI e o nível estético em VII e XII. Não é uma exposição sistemática e fechada, mas sim um pensamento aberto, um modelo estrutural dinâmico que nos permite explicar e enquadrar derivações posteriores, tanto minhas como daqueles que, talvez sem saber, enquadram as suas reflexões no presente quadro conceitual que constitui.
Aqui está a transmodernidade, então, pronta para se desenrolar.
Capítulo I: Globalização como totalidade transmoderna.
Pensar o mundo é fazê-lo com categorias filosóficas. E talvez a dialética hegeliana tenha sido o método que teve maior pretensão de totalização racional. Enfrentar o “global” remete-nos para esta epopeia do sentido que certamente parecia algo esquecida nestes últimos tempos de barateamento e dispersão.
Ainda é possível falar de uma grande teoria (grande história)? O dinamismo do social continua respondendo a uma dialética para além dos finais anunciados?
O final do século XX nos deixou em uma espécie de impasse epistemológico. Falava-se de pensamento pós-metafísico e, com isso, a filosofia parecia ceder inexoravelmente a disciplinas mais positivas: a sociologia, a economia, até a geopolítica. Mas essa mesma impossibilidade do Absoluto manchou o conhecimento de provisório, dando-lhe um caráter hipotético, pragmático, possibilitista. O relativismo cultural sufocava a universalidade dos princípios, e as grandes construções teóricas configuravam-se apenas como modelos de entendimento, cuja certeza, além da contingência, era principalmente poética: lógica nebulosa, teoria da catástrofe, física das cordas, fractais e buracos negros impregnando nossas pretensões teóricas com finitude situada em toda parte.
O século passado completou a estética do assassinato sem estridência, a orgia indiferente da exaustão. Cada vez mais, o mundo deixou de ser um factum, um conjunto de fatos, para se tornar um fictum, um adepto dos simulacros. Primeiro, consumou-se o crime das essências, esse pano de fundo numenal com que a metafísica antiga tentou dar uma urdidura subterrânea aos fenômenos. Posteriormente, a materialidade empírica foi perdendo sua consistência até se tornar uma mera construção ilusória de nossos modelos teóricos. Posteriormente, foi a própria Teoria que, isolada em si mesma e sem paradigmas obrigatórios, emergiu como um feixe heterogêneo de micrologias. Com esta tríplice crise da fundação – metafísica, empírica e teórica –, as noções mais arraigadas tornaram-se mero consenso estratégico. Depois da morte de Deus e do Ser, à maneira de uma epidemia silenciosa, uma extinção débil completou a peste exterminadora: a Realidade, o Sujeito, a História... apresentavam as agonias ofegantes. O pensamento se transformou em uma peregrinação desencorajada entre fantasmas. Experiência inusitada do fantástico que, no entanto, evitou qualquer indício de tragédia. Uma apoteose febril do carnavalesco, uma alegria feliz do efêmero, tornava festiva essa dança dos mortos. Como se fossem corpos gloriosos, felizes por finalmente nos livrarmos da podridão da carne, nos preparamos para ser imagens de nós mesmos, entidades aproximadas em um cenário virtual.
Delírio de extinção, irrelevância amigável, feliz substituição das catedrais pelas grandes superfícies.
Mas, vamos dar uma olhada em algumas das referências e momentos mencionados.
Rápida revisitação hegeliana
Para Hegel, o Entendimento é a forma característica do pensamento dedutivo, exercício analítico apropriado à ciência e à vida prática, postulador de axiomas e regras, que conceitualmente atomizam e secam o fluxo dos acontecimentos. Constitui apenas o primeiro momento do pensamento filosófico, que deve ser superado por um segundo: a dialética, auto deslocamento das determinações finitas do primeiro. A Dialética forma um movimento de abstrações contraditórias e complementares, um fluxo de noções interdependentes, que em seu dinamismo reflete o próprio movimento da realidade.
Tudo o que existe se transforma em seu oposto, é transitório e mutável. Além do princípio do meio excluído da lógica formal, não apenas A e não A é possível, mas essa mesma contradição dentro dos fatos torna-se sua principal força motriz. Um mundo contraditório não é o impensável, mas sua realidade mais profunda.
Teremos, portanto, de forçar nossa lógica de modo que o real também seja pensável; Isso configura a função da Dialética, um momento por sua vez do pensamento filosófico superado pela Razão, aquele que revelará a harmonia subjacente –ou supracente– à contradição, de forma ativa, englobando os opostos em novas unidades. O estágio racional ou especulativo da filosofia representa "um retorno ponderado à racionalidade impensada do pensamento e da fala ordinárias que anteriormente haviam sido dissolvidos pela ação do Entendimento". Um anseio de Totalidade alcançado, realização e conexão com uma primeira experiência intuitiva, que não anula as contradições em um continuum homogêneo, pois as engloba, tornando-as a medula e medula de sua unidade superior. Movimento triádico que parte de um todo imediato para fraturá-lo, posteriormente perceber sua explosão dinâmica miríádica e finalmente elevá-lo a uma nova e rica estabilidade.
Tese, Antítese e Síntese anunciam incansavelmente o futuro do Espírito, do Conhecimento Absoluto. A verdade é definitivamente o Todo; sua forma de se manifestar, a Wissenschaft ou Ciência Sistemática; sua tarefa, "a realização do universal pela superação de pensamentos fixos e definidos". O "Idealismo" da Razão mostra a façanha de compreensão e domínio do mundo por meio do Conhecimento Absoluto, cumpre a reconciliação entre consciência e autoconsciência.
A história fragmentou-se através de uma série de momentos, posteriormente reunidos no Espírito Absoluto. Assim, "o Espírito pensante da História Universal, na medida em que se despoja das limitações dos Espíritos Nacionais particulares e da sua própria mundanidade, capta a sua própria universalidade concreta e eleva-se ao conhecimento do Espírito Absoluto, como a verdade eterna em que A razão é livre para si mesma, enquanto a necessidade, a natureza e a história são apenas os ministros de sua revelação e os vassalos de sua honra”.8
A modernidade como um discurso global
Achei oportuno retornar a esses breves traços do pensamento hegeliano para nos lembrar o quanto estamos distantes de sua epopéia romântica e, no entanto, pretendo mostrar o quão absortamente envolto em retóricas totalizantes.
Don Jorge Guillermo Federico tinha algo de visionário e, como Napoleão dos conceitos, teve seu Waterloo do esquecimento. A modernidade foi construída com as pedras do Iluminismo e a argamassa da industrialização, adiando as pompas do Sturm und Drang; mas não deixa de ter, retrospectivamente, um certo humor sistemático, aquele que outorga a crença nos Valores Universais e uma fé quase indiscutível nos baluartes do Sujeito, da Razão, da História ou do Progresso.
O projeto da Modernidade foi datado por Habermas no esforço iluminista de desenvolver a partir da razão as esferas da ciência, da moral e da arte, separadas das esferas da metafísica e da religião. Se isso for colocado no campo da teoria, a concretização material acarreta um processo de modernização:
revolução industrial, avanços científicos, crescimento populacional, desenvolvimento tecnológico, expansão de mercados, capitalismo... que desenha um eixo imparável caracterizado pela primazia do dinamismo e da inovação. A modernidade representa um olhar para o futuro; é nele, e não na imitação do passado, que o indivíduo pensa encontrar a realização de suas expectativas mais ou menos utópicas; o novo atrai como rejeição e aperfeiçoamento permanente, daí o espírito vanguardista que anima a modernidade estética. Esses dois aspectos, fundamentação teórica e desenvolvimento material, têm, porém, uma solidez desigual; enquanto a segunda parece constante, assumindo as novas formas (sociedade pós-industrial, novas tecnologias de informação...), a primeira tem sido fortemente criticada.
Como aponta Albrecht Wellmer: “a modernidade, do ponto de vista técnico e econômico, é feita de madeira tão dura que brincar com sua ponta facilmente se torna brincadeira de criança; por outro lado, sua substância político-moral, suas tradições democráticas e liberais são tão frágeis que brincar com seu fim é brincar com fogo. Transgredir a modernidade, no sentido de uma recaída na barbárie, é hoje uma possibilidade real”9.
A modernidade, para além da heterogeneidade dos seus conteúdos, é percebida como um conjunto coerente de racionalidade e progresso ético-social, cujo enfraquecimento é sentido por muitos como uma verdadeira ameaça. Um paradigma onde, por assim dizer, tudo ocupa o seu devido lugar. O conhecimento responde a um modelo objetivo e científico, validado pela experiência e pelo domínio progressivo da natureza, consolidado no desenvolvimento da técnica. Isso converge em uma emancipação superior do indivíduo e na conquista de maiores níveis de liberdade e justiça social como um horizonte gradualmente alcançável. É esta Utopia que une um modelo, cuja falência, do seu próprio ponto de vista, só pode conduzir à barbárie.
A falência da pós-modernidade
A modernidade está ancorada, portanto, na possibilidade e legitimidade de discursos globais. A crise pós-moderna atentará justamente contra essa possibilidade e legitimidade.
Lyotard denunciou o fim dos Grands Récits (modelo iluminista, hegelianismo, marxismo, cristianismo...). A história não é mais entendida como um progresso linear rumo à emancipação. Com isso entraríamos, nas palavras de Arnold Gehlen, na era da pós-história. A razão universal teria revelado sua face manipuladora da racionalidade instrumental (Escola de Frankfurt) e sua utopia teria se mostrado como uma efetiva jaula de ferro (Weber).
O fim do paradigma unitário abriu portas a micrologias múltiplas, discursos contextualizados, que ofereciam um panorama heterogêneo e disperso. Fragmento, polissemia, diferença, excesso, hibridez... foram os conceitos preferidos para caracterizar esta situação. O descrédito da inovação levou ao abandono do espírito vanguardista, o futuro deixou de ser a referência e o passado tornou-se um celeiro de imagens, estilos e ideias a reutilizar. Pastiche, hipertexto, cultura da cópia, em suma, e simulacro.
Porém, é hora de analisar não apenas a falência da pós-modernidade, no sentido da ruptura que ela implicou com relação à fase anterior, mas sua própria falência, ou seja, sua crise.
Qualquer inovação cultural, desde que rompa com o discurso hegemônico, tem um efeito crítico e repulsivo. A realidade nos aparece de outra forma e nos incita a pensar com outros conceitos, até mesmo forjando-os, dando nome ao que ainda não o tem. É o trabalho de pioneiros intelectuais. Mais tarde, toda uma legião de operários vai escorar a construção, delinear suas arestas e reproduzir o modelo até esgotar-se. É a fase da escolástica estagnada, que, por ser conhecida e estereotipada, torna a construção conceitual ultrapassada. Já não nos deparamos com a incerteza do pioneiro que se aventura por terras desconhecidas e avança incerto com o pé, sem saber se a consistência do terreno suportará a audácia da sua subida, mas sim com a certeza plena do papagaio que repete palavras comuns lugares como se fossem axiomas, e que mesmo quando parece falar igual ao pioneiro, cumpre justamente a tarefa oposta: enfrentar o avanço por territórios inexplorados, ancorando-se no Mesmo, fechando olhos e ouvidos para uma realidade dinâmica que explode em todos os quatro lados em um terno que já é muito estreito.
No alvorecer do século 21, podemos continuar repetindo sem pestanejar os pós-conceitos que foram disruptivos há mais de vinte anos?
Um dos pilares do pós-pensamento foi, como já sublinhamos, a afirmação da impossibilidade das Grandes Histórias, de uma nova totalidade teórica. No entanto, de uma década para esta parte, um conceito de estrela surge em todos os lugares.
A fragmentação e a multiplicidade que a Pós-modernidade relatava pareciam irreversivelmente condenadas a forças centrífugas e, entretanto, os fragmentos dispersos foram colocados em contacto, "encaixados", graças à virtual revolução da sociedade da informação, tornando possível uma nova Grande História: uma Globalização.
As Grandes Metanarrativas da Modernidade foram fruto de um esforço teórico, de um desejo de sistema, pertenciam ao campo do conhecimento. A globalização, por outro lado, é fruto do fato de uma revolução tecnológica, efeito prático de um desejo de interconectividade, e pertence ao campo da informação.
A sociedade industrial correspondia à cultura moderna, à sociedade pós-industrial a cultura pós-moderna, a uma sociedade globalizada responde a um tipo de cultura que, há muito, venho chamando de transmoderna.
Modernidade, Pós-modernidade, Transmodernidade seria a tríade dialética que, mais ou menos hegelianamente, completaria um processo de tese, antítese e síntese.
Globalização
O fenômeno da globalização não pode ser reduzido hoje ao mero começo do “sistema mundial capitalista” que alguns (Wallerstein) datariam do século XV com a ascensão do capitalismo. Após o chamado fim da política ou fim do social, nos encontramos diante de uma nova interseção de ambos os setores para além do paradigma dos Estados nacionais.
Para uma boa caracterização, parece pertinente a diferenciação que Ulrich Beck10 faz entre globalismo, globalidade e globalização. Por globalismo ele entende “a concepção segundo a qual o mercado mundial desloca ou substitui a atividade política; isto é, a ideologia do domínio do mercado mundial ou a ideologia do liberalismo”11. A noção de globalidade apontaria para a constatação de viver em uma “sociedade mundial” onde não há espaços fechados. Esta globalidade pretende ser irreversível precisamente porque responde a processos profundos, embora não todos ao mesmo nível, de globalização económica, política, social, cultural, ecológica... Assim, a globalização reúne, responde e nomeia todos aqueles “processos em virtude dos quais Estados nacionais soberanos se misturam e se sobrepõem por meio de atores transnacionais e suas respectivas probabilidades de poder, orientações, identidades e vários enquadramentos”12.
Tudo isso configura um horizonte certamente não novo, mas cada vez mais estruturado de forma mais coerente e consolidada, que apontaria para as seguintes linhas gerais: mercado global, cultura globalizada, desenvolvimento constante das tecnologias de comunicação, sociedade da informação, política mundial, implicação global pós-internacional e policêntrica de guerra, conflitos transculturais, ataques ecológicos e o problema da pobreza. Essa presença constante de fluxos e conectividade constitui um processo nascente de totalidade, cujo modelo não é hierárquico ou piramidal, mas reticular, desorganizado, sem centro hegemônico. Se a consolidação do Estado nacional dirigiu o impulso moderno, e a sociedade pós-industrial representou um esforço fluído para dar sentido às organizações internacionais, tentando expandir o modelo político moderno de um contrato social renovado e plural, a globalização mostra as limitações do modelo estritamente político, incorporando os recentes atores financeiros, movimentos não-governamentais, a mídia... sem que a ideia de um governo mundial seja sequer pensável ou desejável, mesmo fundado em vagos princípios democráticos ou respeito a normas compartilhadas como os Direitos Humanos.
São essas declarações formais, assim como a já mencionada sobre os direitos humanos, que hoje carregam uma marca paradoxal. Por um lado, permanecem como paradigmas ocos de um espírito iluminado já ultrapassado; por outro, reivindicam ideais reguladores para um novo cosmopolitismo republicano ou elemento mobilizador leve de organizações não-governamentais que parecem, suavemente, ter substituído a outrora revolucionária classe trabalhadora. Em todo caso, seu universalismo, para além dos Estados nacionais, e pelo próprio enfraquecimento destes, também encontra diminuídas as atribuições dos órgãos fiscalizadores de sua observância.
O Glocal (R. Robertson), ou seja, a preponderância dos níveis global e local em detrimento dos espaços territoriais tradicionais, desenha uma nova geopolítica, onde o espaço em que prosperou a construção da Modernidade parece despojado do seu protagonismo histórico e fortalecimento da urdidura de todo um modelo político, ético, social e identitário. O fim do “estado de domínio do espaço” (Agnew e Corbridge) mergulha-nos num “espaço de fluxos” (Castells), que põe fim definitivamente ao paradigma moderno.
A teoria política e ética parece estar ficando para trás, erguendo conceitos abafados e inadequados, numa vã tentativa de racionalizar fenômenos que não cabem em algumas formas desenhadas para um mundo diferente do atual. Nosso pensamento, como nossa realidade social, deve se tornar “transfronteiriço”, fluído, reticular e instável. Um pensamento de risco para pensar a sociedade de risco global. Depois do nacional, o pós-nacional e, depois, o transnacional. Trans é o prefixo que deve nortear a nova razão digital em uma realidade virtual e flutuante.
Essa “política mundial policêntrica” segundo de Rosenau13, caracteriza-se, segundo Beck14, pelo surgimento de:
- Organizações transnacionais (do Banco Mundial às multinacionais, das ONGs à máfia...).
- Problemas transnacionais (crises monetárias, mudanças climáticas, drogas, AIDS, conflitos étnicos...)
- Eventos transnacionais (guerras, competições esportivas, cultura de massa, mobilizações solidárias...)
- Comunidades transnacionais (baseadas na religião, estilos de vida geracionais, respostas ecológicas, identidades raciais...)
- Estruturas transnacionais (trabalhistas, culturais, financeiras...).
Transmodernidade
A globalização mostra como o que realmente acontece, ocorre em muitos lugares ao mesmo tempo, e não como mero eco ou reverberação. É a própria interligação que produz essa simultaneidade. O local torna-se translocal.
A possibilidade de ações em tempo real cria uma espécie de eternidade laplaciana, não estática, mas dinâmica, a permanência da velocidade. A realidade é uma transformação constante. As circunstâncias específicas são transcendidas, fazem parte de um todo interligado, que se reajusta globalmente sem cessar. Finalmente, o Todo não nos remete a uma instância religiosa ou supranatural, nem ao reino numenal da metafísica ou da Lógica Absoluta. O transcendente estava além e aquém da realidade empírica, agora tornou-se a própria realidade empírica hiper-realizada: transcendência virtual.
A cultura não é mais a matriz universal que atenua as diferenças, mas também não é a expressão de um Volkgeist. A sociedade pós-moderna, por meio da crítica pós-colonial, tentou acabar com aquele universalismo vilipendiado dos "homens brancos mortos ou velhos" em favor do multiculturalismo; Diante disso, a sociedade da informação globalizada nos oferece um panorama efetivo que não é nem pós nem multi, mas transcultural, como síntese dialética, pois inclui em si tanto o impulso cosmopolita quanto as mais escassas presenças locais.
Chamamos a sociedade da informação de “sociedade do conhecimento”, e isso implica uma sutil mudança epistemológica. Conhecer foi, durante séculos, revelador, penetrante – não em vão a verdade foi entendida platonicamente como aletheia. Tivemos que prescindir das aparências para chegar à essência, ir além dos fenômenos para descobrir o numenal, encontrar a figura, a lógica subjacente aos acontecimentos, a fórmula que nos permitisse o processo indutivo-dedutivo adequado. Pois bem, agora o critério de correção do conhecimento não é mais prescrito pela adequatio (intellectus ad rem), mas pela transmissibilidade. Esta é a sociedade do conhecimento porque se configura e se transforma a partir da quantidade de conhecimento que transmite. O intransferível não conta. Todos nós, na medida em que somos fornecedores de software, conseguirmos reciclá-lo, utilizá-lo, divulgá-lo, aplicá-lo, estaremos em condições de ocupar a posição de liderança entre os favorecidos. Ser interativo é dominar os códigos de transmissibilidade; sucesso, obtenha receita com isso. Se na sociedade industrial a mais-valia era gerada pela força de trabalho, na sociedade digital a mais-valia configura-se pelo insumo da transmissibilidade.
Estamos na era das transformações, os compartimentos estanques já não fazem sentido, tudo funciona desde que esteja interligado, trabalhe em equipe ou seja passível de ser reformulado de acordo com novas exigências ou aplicações. A sociedade industrial promoveu a produção e o consumo em massa como critérios de rentabilidade, hoje os produtos básicos devem ser capazes de se adaptar à demanda individualizada, seja em móveis de design, programação de computadores ou televisão a cabo. E não apenas produtos manufaturados: a própria natureza se torna maleável por meio do design, os transgênicos representam esperança e ameaça. E até o corpo promove uma simbiose entre a biologia e a máquina: chips, implantes, reprodução assistida, clonagem, anexos tecnológicos que estendem nossa sensorialidade do celular ao computador de pulso. O modelo ciborgue traça a metáfora de uma corporalidade transumana, mutante, da mesma forma que a transexualidade deslocou e abriu toda uma possibilidade combinatória de gêneros, desejos e identidades, para além do par masculino/feminino.
Jean Baudrillard descreveu com maestria toda essa cena trans. Segundo sua percepção “somos todos transexuais, enquanto o corpo sexual está hoje fadado a uma espécie de destino artificial”15. O social torna-se a sua própria encenação mediática: “estamos na transpolítica, ou seja, no grau zero do político, que é também o da sua reprodução e da sua simulação indefinida”16. A semiurgia das coisas através da publicidade, da mídia e das imagens levaria a uma vertigem transestética e eclética das formas. “O sistema funciona menos pela mais-valia da mercadoria do que pela mais-valia estética do signo”17.
Se a glasnost (transparência) marcou a queda da perestroika, o degelo do regime soviético e o fim da política de bloco, essa mesma metáfora da transparência hoje exemplifica um mundo que quer ser uma imagem, uma presença instantânea na tela, um holograma translúcido e transferível.
Um mundo transacional cujo modelo de legitimação não é a autoridade, mas o contrato, a negociação para a esfera política, financeira ou social, critério que sustenta tanto o espírito democrático quanto o dinamismo econômico.
Não é um mero jogo de palavras, a frequência aleatória de um prefixo sem grandes consequências. Sua presença avassaladora naqueles qualificadores com os quais pretendemos descrever nosso presente é o alerta para uma configuração epistemológica diferente, para uma série de deslocamentos epistêmicos que geram um novo paradigma. Insistimos em pensar política e eticamente com noções modernas, repetimos clichês pós-modernos cultural e esteticamente, refletimos sobre a globalização com a perplexidade desse ir e vir entre os dois paradigmas falecidos. A realidade já é outra, urge um pensamento transmoderno, é preciso, se quisermos entender o que está acontecendo, pensar a Globalização com o paradigma da Transmodernidade.
A transmodernidade aparece-nos como uma síntese dialética da tese moderna e da antítese pós-moderna, bem verdade que no modo leve, híbrido e virtual típico da época. Ironicamente, encarando as pretensões hegelianas, não como acréscimo do Absoluto, mas constituindo seu esvaziamento onipresente; não como verdadeira realidade, mas como virtualidade real; abandona a estrutura piramidal e arborescente do Sistema, para adotar o modelo reticular da excrescência replicante. Obviamente, a globalidade não é o Espírito, nem o pensamento único é a Razão Absoluta, mas justamente a síntese, para ser assim, teve que reunir tanto a positividade moderna quanto o vazio pós-moderno, a ânsia de unidade da primeira e a fragmentação da segunda . Aqui estamos numa soma totalização das contingências, que esquece o Fundamento e a Definição, tornando-se cristalografia proliferante.
Talvez uma enumeração das características dos três momentos possa nos esclarecer o processo, embora isso implique necessariamente uma simplificação e uma divisão de um continuum muito mais complexo.
Se olharmos para as três colunas, a primeira é dominada por princípios bem definidos que tendem à coesão, unidade, afirmação e pensamento forte. A segunda é geralmente ordenada como antítese: desintegração, multiplicidade, negação, pensamento fraco. O terceiro costuma manter o momento definidor do primeiro, mas despojado de seu fundamento: ao incorporar sua negação, resolve o terceiro momento em uma espécie de fechamento espelhado.
Vamos olhar um pouco mais de perto as tríades.
A modernidade tinha a herança da realidade, aspirava à sua transformação. A semiosfera, nutriz do pensamento pós-moderno, tudo transforma em linguagens; o significante, afastado do referente, encontra o seu sentido no domínio do sentido, da construção eidética, pelo que não é de estranhar que, em vez de realidades, encontre simulacros. No entanto, esse caminho para o desaparecimento toma um rumo inesperado na visão transmoderna. O real e o irreal não são mais opostos, pois surge um novo conceito de realidade, aquele que não se liga ao material sem com isso se tornar ficção. Realidade e existência já não são sinônimos: há uma realidade que não deixa de “ser” porque “não existe” e que não se contenta com o mero estatuto de simulacro, é a verdadeira realidade: o virtual.
A noção de presença é modificada, portanto, com esse processo. O sujeito moderno é um sujeito atuante que afeta os acontecimentos por meio de seu envolvimento físico neles, seja na transformação material das mercadorias, no transporte, nas viagens, nas guerras, etc. A invenção do telégrafo, do telefone... prepara as primeiras provas de ação à distância. A sociedade pós-moderna está submersa em toda uma série de meios, mas a separação entre emissor e receptor mantém o atraso espaço-temporal, o receptor é dominado por uma série de aparelhos e um bombardeio de mensagens, a comunicação perde a proximidade dos fatos; desta forma, o indivíduo sente-se receptáculo passivo de processos sobre os quais não pode influir.
Com a possibilidade tecnológica de interação, quebra-se essa passividade, essa sensação de ausência. Na sociedade transmoderna, o sujeito recebe informações e age sobre elas, pode afetar o que está acontecendo em tempo real, seja para se comunicar por e-mail, participar de trabalhos em grupo, realizar operações financeiras ou expressar sua opinião ao vivo em um programa de televisão. Você está realmente no que está acontecendo a quilômetros de distância, graças à telepresença eficaz.
O discurso moderno buscava a primazia do Mesmo, ou seja, girava em torno do eixo da identidade e da definição, tanto no campo das nações, quanto no da cultura ou da ciência. Conhecer era, ainda de inovação, integrar o alheio ao seu, cujo critério de valência era constituído pela homogeneidade. Com a pós-crítica, emerge a primazia do Outro, discursos anti sistemas, margens, tudo falsamente subsumido numa homogeneidade indiferenciada: grupos raciais, culturas minoritárias, mulheres, homossexuais; o acaso, em suma, ou o inclassificável, a heterogeneidade como denúncia e abertura. Mas era uma heterogeneidade que parecia dispersa, irreconciliável, carregada de potencial negativo, auto absorvida em sua própria consolidação miriádica Atualmente, por meio das novas tecnologias de informação, grupos minoritários ocupam a rede, por vezes com atividade e presença maior que a de certos segmentos tradicionais da cultura, desde o agitprop, mobilizações internacionais até a produção de acervos documentais ou de difusão.
Por outro lado, os esforços e denúncias da etapa anterior criaram uma espécie de normalidade e assimilação, mesmo quando se trata do gueto dos estudos especializados, das minorias subsidiadas pelo Estado, da reivindicação de direitos civis específicos ou do exotismo comercializado. Não há, então, abismo ou negação, mas sim uma espécie de tolerância descontente, aceitação nominal para ser politicamente correto, mas que em casos específicos começa a ser um avanço de posições. Hoje, esta forma de apoio à biodiversidade cultural constitui, para além de uma afirmação mais ou menos programática, uma verdadeira visibilidade acessível.
Podemos encontrar as tendências mencionadas no imaginário estrutural com o qual cada etapa foi pensada. Hegel definiu o Sistema contra o mero Agrégat e, é claro, todo o seu trabalho visa alcançar esse Todo sistemático. Deleuze opôs o rizoma à estrutura da árvore, optando pela primeira. Vemos aqui a ruptura entre um pensamento que tende ao centro, à ordem, à origem tronco comum das derivações sucessivas e outro que aposta na dispersão em sentido libertador. Todo o após lutava para explodir aquele centro nevrálgico em séries, fragmentos, golpes, um universo gnoseológico em expansão que não se esquivava do equilíbrio caótico e conceituado como entropia aniquiladora. Essa dispersão, porém, encontra agora uma metáfora através da qual as forças inevitavelmente centrífugas se ligam, dinamicamente, num incessante entrelaçamento de conexões. Não há centro ou sistema ordenado, mas de alguma forma a Rede fornece uma coerência instável, uma imagem global sem trair ou se opor ao dinamismo da dispersão.
A modernidade está indissociavelmente ligada à noção de tempo devido ao seu próprio espírito de inovação e progresso, uma temporalidade histórica que, de forma esclarecida, procura um aumento para o melhor ou, em termos hegelianos, a realização do Espírito Absoluto. A industrialização, a maquinaria, as revoluções, as utopias sociais... procuram fazer um avanço histórico progressivo. É esse otimismo que começa a vacilar com a crise das Grandes Histórias de emancipação; parece que não havia mais uma utopia esperando por nós no futuro, e o rosto mortal que eles tiveram em suas tentativas de corporificação prática é denunciado. O colapso do socialismo real apresenta-nos a sociedade de mercado como a única alternativa a suceder-se. O otimismo e o caráter épico desaparecem, é hora da famosa barragem de Fukuyama celebrando o fim da história. Mas, mais do que o fim dos tempos, a situação tecnológica atual nos surpreende com o salto epistêmico de sua concretização. O tempo não é mais curso, projeção ou esperança: ele acelera exorbitantemente, condensa e se realiza, é a conquista da instantaneidade. Tudo já está acontecendo, na nossa frente e ao mesmo tempo, vertiginosamente, na velocidade da fibra óptica. O mundo transmoderno não é um mundo em andamento, nem fora da história, é um mundo instantâneo, onde o tempo adquire a velocidade estática de um presente eternamente atualizado. O antes e o depois, a cadeia causal dos acontecimentos ou a sua sincronia, também se alteram, pois a prioridade dos acontecimentos é dada pela velocidade da sua transmissão, assim as notícias menos importantes ou de lugares menos conectados chegarão mais tarde ou nem sequer chegarão, então nesse caso não existem. O que é considerado menos relevante será percebido como consequência, e circunstâncias distantes no tempo, se apresentadas em conjunto, conformam um todo contemporâneo.
A razão foi por excelência a protagonista do espírito iluminista. Para além das nuances terminológicas, estamos nos referindo a esse impulso de explicar o mundo e à confiança em sua possibilidade, cuja realização progressiva dará lugar a um consequente aperfeiçoamento social e ético. Mas o século XX foi um século infestado de desconfiança e autocrítica, o que enfraqueceu esse pensamento forte e jubiloso. Se por detrás dela, afinal, apenas se evidenciava uma vontade de poder, uma manipulação ideológica ou obscuras pulsões inconscientes, não podíamos senão exercitar-nos na lucidez da sua desconstrução, demolir aquele logocentrismo dominador que engendrou uma conspiração onerosa, escondida na parafernália das grandes palavras: Verdade, Justiça, Moralidade... Desvendar esse nominalismo mendaz e ficar com os signos, num pensamento pós-metafísico, a meio caminho entre a nostalgia e a euforia da divulgação. As sínteses não são necessariamente benéficas, às vezes envolvem o mais rejeitável dos momentos anteriores ou o retorno nebuloso de sua confusão. Sem ser celebrado por ninguém, o chamado pensamento único apresenta-se-nos com toda a pretensão da necessidade sem alternativa da razão esclarecida e do sopro instrumental dos discursos pragmáticos. No entanto, repudiada ou arrogante, ostenta esse consenso alimentado pelo declínio de teorias alternativas, interlínguas políticas de uma organização internacional ou financeira. É preciso aguçar muito a nuance para encontrar a diferença entre as várias opções ideológicas.
Se a Razão corresponde ao ideal do conhecimento, sua crítica é acompanhada de um antifundamentalismo cético. As últimas décadas viveram do relativismo, do contextualismo, do culturalismo... A ironia tem sido a arma para travar o regresso do esplendor, e também o instrumento para compor, a partir da reiteração distanciada, uma nova estética. Mas não poderíamos deixar de dizê-lo a nós próprios, divulgá-lo, com grande alarde e forçar a máquina de todos os recursos tecnológicos à nossa disposição. Esta fúria da mensagem, esta compulsão por comunicar, encontrou-se, quase sem esperar, com meios cada vez mais sofisticados, configurando uma espécie de noosfera digital, a sociedade da informação, em que tudo – os fatos, os negócios e nós próprios – se reduz a pacotes de dados transferíveis. A informação não requer fundamentos metafísicos, sua legitimidade não reside em uma causa anterior, mas em seu próprio funcionamento operacional. Mais um passo e a síntese estará completa: chamemos este viveiro de fluxos de comunicação de “sociedade do conhecimento” e teremos resolvido todos os problemas de mais de vinte séculos de metafísica com um golpe de caneta. Da academia aos negócios, da substância ao hardware, do monge na biblioteca ao homem de gestão.
A modernidade representou a consolidação dos Estados nacionais como domínio territorial e definição de identidades coletivas; todas as práticas sociais (cultura, língua, economia, história, autoimagem...) referem-se a uma homogeneidade interna, controlada pelo Estado. Essa soberania vai sendo gradativamente enfraquecida em favor de um maior predomínio das relações internacionais que, cada vez mais, deixam de ser o mero cenário da diplomacia, das alianças políticas e comerciais dirigidas pelos Estados nacionais, para adquirir um predomínio próprio, dando origem a um cargo -política nacional e pós-internacional, regida cada vez mais por organizações internacionais, movimentos sociais e empresas transnacionais. O transnacional não é uma mera pós-negação, mas sim uma configuração muito recente em que os atores nacionais são superdimensionados e superados, como indiquei acima, por organizações, problemas, eventos, comunidades e estruturas transnacionais.
O Estado moderno corresponde a um simples imaginário global, ou seja, a um desejo universalista quanto à sua cultura, e a uma vocação imperialista quanto à sua expansão política: procura consolidar o seu território e projetar-se para além dele. Esse simples imaginário global foi duramente criticado pelo pensamento pós-moderno. A atração momentânea do local assume-se neste conjunto envolvente que inclui o específico, o Glocal.
O pós-colonialismo é algo mais do que o acesso à independência dos países anteriormente colonizados, representa uma crise de legitimidade de todo expansionismo que tenta aliar a vocação de investimento, a exploração dos países dependentes e a sua modernização através de uma cultura supostamente desmarcada. Denúncia política, econômica e cultural que, no entanto, é realizada em um mundo onde as identidades nacionais estagnadas não podem mais ser recuperadas, pois os fluxos populacionais produziram uma miscigenação tanto nos países colonizadores quanto nos países colonizados, gerando ao mesmo tempo comunidades transétnicas dentro territórios delimitados e comunidades étnicas transterritoriais. A transmodernidade recupera assim o ideal moderno do cosmopolitismo, mas não por uma universalidade limpa de diferenças específicas como imaginava o espírito iluminista, mas justamente por disseminar essas diferenças para além de sua localização tradicional, gerando uma síntese completa, um cosmopolitismo transétnico.
A cultura não pretende mais ser um caldeirão de valores universais desvendados, nem um esplêndido Volkgeist. No entanto, o chamado multiculturalismo também se torna uma fase transitória, aquela em que os países desenvolvidos observam como perderam a pureza de suas culturas nacionais e, entre a rejeição e o fervor do politicamente correto, constatam, não sem tensões, a configuração heterogeneamente agrupada de sua população. Mais um passo e esse efeito centrípeto de coesão das minorias nacionais dentro dos Estados sofre novamente o efeito de uma redistribuição interligada. A etnicidade não é o campo de estudo da antropologia moderna, nem é o lugar das reivindicações das minorias. O mercado assume e valoriza as diferenças num verdadeiro “bazar de culturas”, as identidades locais desenraizam-se ao mesmo tempo que adquirem uma difusão inesperada graças à sua mercantilização, a essência torna-se design, produtos como estilos de vida ou gastronomia: jantamos num restaurante libanês, compre um futon japonês, decore as paredes com motivos africanos, ouça música celta ou assista a todos os filmes rodados em Hollywood. Aqui e ali, fragmentos de culturas se recombinam em uma mistura híbrida. Não se trata de multicultura, mas de transcultura.
A modernidade era o reino dos fins, projeto, futuro, meta, realização, horizonte de riqueza e emancipação, utopia de progresso e realização. Depois de sua crise, pensamos o conhecimento como jogos de linguagem, a vida também como jogo de um certo yupismo hedonista. Uma certa infantilização introduziu-nos num ludismo sem transcendência e, ainda por cima, projetaram-se heterotopias libertadoras nesta combinatória aleatória sem futuro. O mercado de ações é jogado da mesma forma que a guerra (a Guerra do Golfo exemplificou essa suspensão da realidade compreendida à maneira de um videogame). A união desse espírito combinatório com a realização de realizações situadas é chamada de estratégia. Buscamos efetividade sem arrogância, esferas de controle sem legitimação do poder. Sujeitos estratégicos, não queremos mais ser um eu transcendental, nem uma mera máscara, mas sim a construção de identidades múltiplas e operacionais. Não mais a paz perpétua no horizonte, mas o equilíbrio instável calculado, a turbulência sob controle. Para além da hierarquia, para a qual não encontramos legitimação divina, e para além da anarquia de cuja ingenuidade festiva nos distanciamos, o Caos integrado representa o nosso desideratum.
A inovação foi, reiterei, o impulso modernizador por excelência. Essa confiança um tanto ingênua nos avanços científicos e tecnológicos teve sua pedra de toque no cogumelo nuclear de Hiroshima. A partir daquele momento, os Estados pensaram, enfaticamente, que deveriam fiscalizar as investigações – suas e alheias – e estabelecer pactos para deter um mundo descontrolado, possuidor de capacidade de autodestruição. A ressaca da modernização postulou ideais de segurança: nada, nem o delírio científico nem os ideais revolucionários, deveriam perturbar um mundo que precisava ser estável para ser trivial. Hoje, porém, o conceito de “sociedade de risco” nos fala de um novo paradigma global e emocional. Arriscar no sentido positivo que só a audácia empreendedora pode gerar riqueza, modelos inovadores que não podem derivar da repetição, e em que a promoção profissional se equipara não à qualificação inicial, mas à capacidade de adaptação a novas metodologias e à geração de novas aplicações. Mas também riscos como a percepção de um perigo ecológico global, de uma projeção constante dos últimos desenvolvimentos nas atuais situações complexas, políticas, industriais, de exploração de recursos ou estratégicas.
A revolução industrial marcou o início da era moderna: mecanização, produção em massa, especialização da mão-de-obra, expansão do capital e organização sindical de um grande contingente de trabalhadores, êxodo do campo para as cidades, quebra dos modos comunitários tradicionais de vida, etc. A sociedade pós-industrial procurou caracterizar um nível avançado de produtividade, acumulação de riqueza, um dinamismo interno que distorcia as noções de classes sociais, a separação entre o público e o privado, as formas de conhecimento e sua difusão, o predomínio do setor terciário sobre o secundário, a generalização da sociedade de consumo e novos espaços de conflito social. O atual paradigma tecnológico, baseado na tecnologia da informação, subsume a lógica industrial, incorporando a informação e o conhecimento nas áreas de produção e circulação do capital. Assim nasceu a nova economia, informacional e global, na definição de Manuel Castell: “uma economia cujos componentes centrais têm capacidade institucional, organizacional e tecnológica para funcionar como uma unidade em tempo real, ou em um tempo definido, em um planeta escala”18. Efetiva globalização financeira, com a desregulamentação dos mercados e liberalização das transações, apoiada em telecomunicações avançadas e sob o risco de movimentos especulativos dos fluxos financeiros.
Tudo isso nos situa para além das modernas determinações da cidade e do território. Se a ocupação yuppie dos bairros periféricos e, no extremo oposto da economia, a hipertrofia da cidade suburbana, marcaram uma reorganização urbana, a noção de extraterritorialidade gerou metáforas culturais positivas. Mas a sociedade globalizada não é mais governada pelo par centro-periferia, mas por uma rede de megacidades conectadas que nos fala, em todo caso, da onipresente fronteira.
As mudanças descritas, sem dúvida, afetam também as relações sociais, configurando um novo tipo de vida, de ver, de sentir, de comunicar, um horizonte emocional no qual reconhecemos o cotidiano e fabulamos o extraordinário. Os agentes sociais que construíram a modernidade partiram do indivíduo, mas acreditaram no grupo, no povo, na classe, na cidadania, articularam formas de integrar um projeto político desejável. A pós-modernidade lançou uma sombra cética sobre a fé no progresso ou possibilidades revolucionárias. Surge assim o indivíduo, mas desta vez retraído para o privado, num hedonismo doméstico, longe do fervor do público e da epopeia do esforço como chave ética. Atualmente, contemplamos um deslocamento: aquele egoísmo de apenas uma década atrás, mergulhando em si mesmo, gera novas formas de interação com o social. Vemos surgir uma forma de isolamento conectado. Os sujeitos isolados estabelecem diante da tela do computador toda uma rede de comunicações pessoais, eróticas, para passatempos e até como estratégias de mobilização virtual. O chat substituiu amplamente os mecanismos tradicionais de agrupamento, mantendo a privacidade do individualismo, mas incorporando modos de interação social de uma expansão até recentemente inimaginável. Não se trata de atividade moderna, nem de esgotamento pós-moderno, mas de conectividade transmoderna estática. É esta configuração do eu através do ecrã que confere uma visibilidade avassaladora e ao mesmo tempo abrigada. Protegido por essa distância e instantaneidade, o pessoal torna-se um espetáculo, desde programas de televisão estilo Big Brother até imagens íntimas postadas na Internet. É uma obscenidade da intimidade que procura, tornando-se imagem difusa de si mesma, recuperar a realidade, pois a realidade reside, mais do que nos fatos, na sua representação. A rejeição das formas usuais de ação política e da partidocracia impulsiona o individualismo para diferentes formas de influenciar eticamente os acontecimentos; assim nasceu um individualismo solidário, que se considera envolvido pelas questões ecológicas, pela pobreza, pelas catástrofes naturais ou pelas consequências da guerra.
Também o campo da fisicalidade foi transformado. A realidade material, sua realização última, átomo, massa, força, espaço, tempo...foram conceitos que ordenaram o universo newtoniano. A teoria da relatividade, a mecânica quântica, veio para subvertê-los, ondas, cordas, incertezas, linhas gravitacionais, temporização do espaço...toda uma lógica difusa que devolveu a física quase ao reino da metafísica. A sociedade digital sai do campo da especulação, sintetiza a eficácia e o etéreo. O real não será mais a circulação de agregados de átomos (objetos), mas a circulação de pacotes de bits, quanto de informação, enviados em tempo real. O espaço não é o locus das transformações, nem a suposição temporalizada e multiplicada em n dimensões: torna-se irrelevante, deixa de existir, quando o limite nunca atingido, a velocidade da luz, torna-se instantaneidade diária.
O espírito, a alma, a razão, o subjetivo, o objetivo, o absoluto, encenaram os feitos modernos, embora progressivamente enfraquecidos pelo materialismo científico, tornaram-se uma metáfora para si mesmos como impulso dinâmico e racionalidade compartilhada. Depois disso, ficamos com o corpo, fragmentado, alegre, libidinal, subversão moral, carne abismal. Hoje, o mero resíduo orgânico parece um lastro primitivo, a mente brinca com sua transformação, transforma-o em experimento de engenharia genética, expande-o com próteses tecnológicas. Somos todos mutantes conectados à rede, ciborgues que anunciam a era do pós-corpo, do transumano.
Da mesma forma, o sexo, normalizado, reprodutivo, arma de submissão ou de libertação política, deu lugar ao erotismo, que desintegrou gêneros e estereótipos com os artifícios da sedução. A ameaça da AIDS abriu novos espaços assépticos. Pensamos na carne com a mesma antecipação de uma ameaça bíblica, daí a perversão visual e profilática do cibersexo.
A modernidade também preencheu o imaginário masculino. Para os homens, era o espaço público e a representação política, enquanto as mulheres eram relegadas a serem os anjos do lar. A crise dos discursos fortes também afetou a lógica patriarcal. Falava-se então, juntamente com a incorporação das mulheres nas esferas públicas, de uma feminização da cultura, por mais discutível que fosse. Mas na era da tecnologia cibernética, as mulheres conotam excessivamente o reino da natureza. É, por assim dizer, muito carnal. O design reformula o que é natural, a biologia torna-se um ramo da engenharia, não queremos que a anatomia determine nenhuma de nossas pré-eleições, por isso o ícone da artificialidade se exemplifica hoje no transexual.
A cibercultura também traz transformações em relação aos dois momentos anteriores que analisamos. A alta cultura respondia a critérios hierárquicos e elitistas, a progressiva extensão da educação às classes mais desfavorecidas foi gerando uma contracultura popular altamente politizada, o marxismo contribuiu em grande medida para mostrar a manipulação ideológica dos discursos e também para forçar a acessibilidade ao saber, mas foi a sociedade pós-industrial que passou a precisar de uma cultura de consumo de massa; os intelectuais, como se sabe, ficaram divididos entre sua demonização e sua defesa. Se a alta cultura teve acesso restrito e a cultura de massa tentou rentabilizar seu consumo exponencial, teremos que esperar a redução tecnológica dos meios de difusão para que a extensão possa contemplar também a adaptação ao consumidor. Cultura de massa, mas personalizada, a la carte, televisão a cabo, revistas especializadas de acordo com preferências raciais, profissionais, orientação sexual, incorporação ao mercado do exótico e do marginal. Padronização aberta que permite a incorporação de diferenças.
Não se requer, portanto, a inovação rupturista do tipo das vanguardas. Em suma, parece-me conveniente sequenciar os momentos do pós e da transvanguarda, para salvaguardar um primeiro passo de rejeição, esgotamento, kitsch, cultura da cópia, crítica da noção de obra de arte, da função do museu, ironia destrutiva e uma segunda etapa, a atual, de ironia reconstrutiva, pastiche, hibridação, intertextualidade, transgênero...em que a net-art e, em geral, as novas possibilidades tecnológicas aos poucos retomam dinâmica de inovação e ruptura, típicas das velhas vanguardas. Trans, mais uma vez, volta ser o nosso prefixo.
A oralidade, a obra e a narrativa foram substituídas na cultura pós-moderna por uma valorização da escrita, do texto e do visual. A sociedade trans volta a realizar uma síntese que se funde para frente, incluindo ambos os aspectos transcendidos qualitativamente. A tela subsume oralidade e escrita, torna-se cada vez mais interativa em tempo real e ao mesmo tempo gera cyber literacia: não é tanto por imagens, mas por textos, que a interação se atualiza. Mas é uma textualidade que não remete ao autor, à vocação do sistema, embora também não constitua mero hino a uma combinação de significantes alheios à intenção dos sujeitos; cortam, colam, enviam, afetam a série discursiva, de modo que é sua própria intencionalidade múltipla e desconexa que gera um redemoinho proliferante.
O mesmo processo sequencia a mídia (cinema, televisão, computador...). A Internet será a síntese da velha imprensa escrita e das mídias de massas numa gradação que, segundo as fases demarcadas, obedeceria sucessivamente à Galáxia de Gutenberg, à Galáxia de McLuhan e, finalmente, à Galáxia de Microsoft. Voltamos assim à incerteza de uma visão ambientada no futuro, uma expectativa futurística cansada do cansaço dos revivals, atormentada por heróis cósmicos, ameaças de extermínio e épicas gloriosas, mutantes pós-humanos disfarçados de executivos transnacionais, um Final Fantasy para o qual, cada Hoje, inventamos os conceitos, ansiosos por transcender limitações, angustiados e delirantes porque tudo se move muito rápido, e os fragmentos atrozes das misérias que restam respinga um universo falsamente vidrado, os bits circulam como estilhaços e não temos ainda resolvido a dimensão da justiça humana.
A globalização é toda envolvente, caótica e dinâmica do imperativo dialético, um novo paradigma que escolhi chamar de Transmodernidade.
Por baixo disso, fica pendente o desafio de pensar, a urgência de agir.