Do que Judith Butler tem medo?
Lançado no Dia de Conscientização sobre Destransição, livro de Butler menospreza as consequências do seu discurso, evoca inimigos ao invés de argumentos e ilustra decadência intelectual da esquerda
É uma ironia (de mau gosto?) que o novo livro de Judith Butler (aquela que quem ama não entende nada do que ela fala e quem não ama não aguenta mais ter que falar sobre), Quem tem medo de gênero? — publicado no Brasil obviamente pela editora Boitempo, que está aberta a diversidade de pensamento contanto que essa diversidade esteja em consonância com a própria ideologia, se não são todos fascistas no melhor estilo argumentativo butleriano — seja lançado no Dia de Conscientização Destrans e em meio às tentativas de comunidades destrans nos EUA de garantirem apoio médico e psicológico do Estado e dos planos de saúde para pessoas destransicionadas.
Hoje mesmo, a WDI EUA lança a “Declaração de Direitos das Mulheres Desistentes e Destransicionadas no Dia de Conscientização sobre a Destransição”, o mais recente projeto do Desisted & Detransitioned Women's Caucus, que defende mulheres e meninas que passaram pelo chamada transição de gênero e amplifica as suas histórias na esperança de que os seus esforços contribuam para chamar atenção para o que já se tornou um verdadeiro escândalo médico nível crise dos opioides (o que torna o estado de negação da esquerda ainda mais assombroso). O objetivo é garantir que essas meninas e mulheres tenham apoio e direito de procurar cuidados de saúde que abordem quaisquer problemas causados por bloqueadores da puberdade, testosterona e cirurgias e que tais cuidados sejam cobertos pelo plano de saúde.
Olhando de forma superficial, não há motivos para que o movimento transativista não apoie a implementação de apoio e cuidados para quem escolhe destransicionar na mesma medida que se busca apoio para a transição. Na verdade, seria o mais coerente e óbvio a ser feito já que ao passo que aumenta exponencialmente o número de pessoas sob a medicalização permanente da vida, aumenta também o número de pessoas enfrentando as consequências dessa medicalização permanente, incluindo aquelas que buscam sair desse estado. Mas coerência nunca foi o forte desse movimento e estou vendo, parcialmente abismada, este se opor às demandas de apoio solicitadas por grupos de destransicionados, compostos majoritariamente por mulheres.
Digo parcialmente porque, primeiro, como são mulheres a maioria entre os destransicionados, não há a menor empatia, assim como não há com as meninas e mulheres que são obrigadas a compartilhar vestiários, celas de prisão, dormitórios, abrigos para vítimas de estupro e violência com pessoas do sexo masculino, com genitália intocada e muitas vezes com histórico de crimes sexuais, ou para com as mulheres que perdem bolsas, prêmios e espaços duramente conquistados para qualquer sujeito que acorde um dia e queira se autoidentificar como uma mulher e reivindicar o lugar de sujeito político das mulheres. Vivemos em um mundo patriarcal, afinal, e o movimento transativista simboliza o reacionarismo masculinista da crise epocal do capitalismo.
Segundo, a própria existência das pessoas destrans parece ser percebida, ao menos pelos transativistas mais radicalizados, como evidência empírica de que não existe tal coisa como identidade de gênero inata. O essencialismo tem sido balizado há muitos anos como forma de validar o apagamento do sexo na Lei para substitui-lo por uma identidade de gênero intangível, imaterial e que só o sujeito na sua individualidade pode acessar (olá, neoliberalismo, adeus luta de classes!). Dessa forma, negar completamente a realidade dos destransicionados, os diversos casos de médicos e clínicos denunciantes da negligência e ganância médica em níveis quase inacreditáveis, incluindo o WPATH Files, e todo e qualquer argumento lógico, inclusive estudos e pesquisas científicas sobre dimorfismo sexual, é a única forma de se manter imerso na ficção, embora isso não seja particularmente bom para ninguém, como até mesmo alguns dos crentelhos queer estão pontuando.
Mas aqui está Judith Butler, mais um vez, fugindo dos críticos como o diabo foge da cruz e recorrendo ao ad hominem em cada frase. Nada melhor do que chamar alguém de fascista quando não se tem argumentos lógicos para um debate de alto nível. Com tantas leituras feministas massas para gente comentar, é uma pena que tenhamos que gastar tempo desmistificando os escritos chatos, entediantes, desconexos e inúteis do ponto de vista feminista e de classe de Judith Butler, uma mulher anti-feminista, branca, sem graça, norte americana, de classe alta e sem nenhum envolvimento de base nos movimentos feministas anti-capitalistas — em teoria a figura de sujeito (a mulher branca educada) que a esquerda brasileira ama odiar, mas que, curiosamente, foi transformada em Papa da Religião Queer na América Latina, sobretudo Argentina e Brasil, sem dúvidas por detestar sua condição de mulher e ser útil em desmantelar a articulação classista das mulheres. Seria cômico se não fosse trágico.
Então meus caros e caras, com vocês, Kathleen Stock em What is Judith Butler afraid of? The academic's new book conjures enemies at every turn (“Do que Judith Butler tem medo? O novo livro da acadêmica evoca inimigos a cada passo”, em tradução livre), publicado no UnHeard.
Lembrem-se: compartilhem!
Do que Judith Butler tem medo? O novo livro da acadêmica evoca inimigos a cada passo — por Kathleen Stock
Preocupada com o fato de os médicos administrarem medicamentos que destroem a fertilidade a adolescentes fisicamente saudáveis? Perturbada pela colocação de homens estupradores ao lado de prisioneiras, ou pela permissão de qualquer homem entrar no vestiário de uma mulher quando bem entender? Irritada com a visão de homens corpulentos quebrando recordes no esporte feminino? Vamos lá - por que você não admite do que realmente tem medo? A guru de estudos de gênero mais famosa do mundo, Judith Butler, quer entrar na sua cabeça e está até preparada para abandonar seu famoso estilo de prosa opaco para ter sucesso na empreitada. O resultado de seus esforços, Quem Tem Medo de Gênero?, será lançado esta semana.
Embora ela tenha publicado abundantemente sobre tópicos adjacentes, já faz um tempo desde que Butler dedicou um livro inteiro aos seus próprios pensamentos sobre gênero. Algumas coisas mudaram nesse ínterim, incluindo seus pronomes (ela agora é um “eles”, embora generosamente preparada para tolerar a designação anterior) e o comprimento de suas frases, que – pelo menos por enquanto – não se estendem mais epicamente para cobrir páginas inteiras. Ainda assim, apesar das ambições aparentemente de mercado de massa da nova publicação, alguns hábitos familiares permanecem.
Não é para ela a tarefa prosaica de analisar os argumentos dos críticos, fornecer provas apartidárias e expor pacientemente as contradições e lacunas internas de uma forma discreta mas cumulativamente devastadora. Na longa introdução do livro, ela diz-nos que “é claro” que ela poderia “fornecer bons argumentos sobre por que é errado olhar para o gênero desta forma, o que seria útil para educadores e tomadores de decisão”; na verdade, “como educadora”, é “tentador tentar expor e perfurar esta caricatura inflamatória de gênero através de um exercício intelectual”. Por mais tentada que esteja, no entanto, acontece que ela não vai se preocupar muito com essas coisas. Em vez disso, ela quer dar ao povo o que ninguém realmente pediu: uma desconstrução dos “elementos sintáticos” do “movimento antigênero”, entendido como uma “cena fantasmática” segundo a “formulação teórica de Jean Laplanche”.
Traduzido para o inglês comum, Butler vai colocar as pessoas anti-gênero no sofá do psiquiatra. Ela parece tranquila pelo fato de que, ao processar seu caso, ela não consegue definir claramente “gênero” – seu pronunciamento mais definitivo é que é “uma sensação sentida do corpo, em suas superfícies e profundezas, uma sensação vivida de ser um corpo no mundo desta forma”. Mas não importa os detalhes incômodos: se você é anti-gênero (seja lá o que isso signifique, exatamente), então você é muito provavelmente um maluco nacionalista cristão racista patriarcal, e também secretamente gay. Ela está sondando seu inconsciente, lembre-se, e entende você melhor do que você mesmo.
Ou talvez – e isto é o mais caridoso possível – você é simplesmente um tolo ingênuo e crédulo, para quem entrar em pânico moral sobre o casamento gay e os livros da biblioteca LGBTQ+ atua como um substituto psíquico para medos razoáveis sobre as mudanças climáticas e o neoliberalismo. Como tal, você está sendo manipulado pela retórica reacionária de vários deploráveis, incluindo Orbán, Trump, Bolsonaro, vários Papas, e er… J.K. Rowling, Holly Lawford-Smith e Kathleen Stock. (Um capítulo inteiro passa incompreensivelmente pelo título “Mais sexo, por favor, somos britânicos” e vai para “TERFs e questões sexuais britânicas”.)
Embora às vezes a autora finja uma curiosidade caridosa sobre alguns de seus alvos argumentativos, a atitude nunca dura. Uma frase sobre feministas críticas de gênero que começa com “Para ser justa” termina, uma ou duas cláusulas mais tarde, falando sobre as suas supostas afinidades com a “política fascista”.
Não há uma única objeção apresentada contra os oponentes que não venha carregada com a implicação de mácula moral e/ou estupidez. É claro que pintar os inimigos intelectuais como personagens de desenhos animados é uma tática conhecida do transativismo moderno; ainda assim, é chocante ver isso feito de forma tão crua por alguém que mantém uma reputação elevada em muitos setores.
Também é impressionante o quão banais são alguns desses pensamentos. Os escritos de Butler em seu apogeu pelo menos exibiam um pouco de elegância e originalidade, supondo que você pudesse analisá-los com sucesso. Em contraste, aqui ela aparece como escravizada por tropos ativistas estabelecidos, e com toda a profundidade de um vídeo TikTok em alguns lugares. Ela até cita o Pink News como fonte de dados. Na verdade, se você passou muito tempo circulando pela chamada “comunidade queer” na última década, já deve ter lido muitos dos pontos de discussão deste livro.
Se antes insistia, admiravelmente, na fluidez e na impermanência na expressão da identidade de gênero, agora exorta à “afirmação” e ao reconhecimento da “realidade das vidas trans”. O capítulo sobre as chamadas TERFs britânicas é um compêndio de difamações recolhidas de adolescentes online sobre as suas mães que criticam o gênero: elas não são verdadeiras feministas; são efetivamente racistas que se concentram num ideal branco de feminilidade, do lado do “colonialismo e do império”; espalham “medos infundados” sobre mulheres trans vulneráveis; e assim por diante.
Suas evidências são cuidadosamente escolhidas e muitas vezes provenientes de fontes partidárias. Não há nenhuma tentativa real de levar a sério as crescentes evidências apresentadas por hospitais e denunciantes de negligência médica contra crianças e adolescentes em nome da “afirmação”; o número crescente de agressões contra mulheres e meninas como resultado da autoidentificação; a desmoralização das atletas femininas; ou a dor física e psicológica dos destransicionados. (Sobre este último, ela afirma que “as taxas de arrependimento para pessoas de todas as idades são muito pequenas”, com base num único estudo de 2021 que tem sido fortemente criticado desde então.) Também familiarizados com as discussões com avatares de anime no Twitter, encontramos coisas estúpidas: você diz que está interessado em acabar com a violência contra as prisioneiras, mas por que não se preocupa com o fato de os guardas prisionais do sexo masculino as estuprarem? (Er… nós nos preocupamos?) Como sempre, a mensagem parece ser que essas coisas não estão realmente acontecendo; e mesmo que estivessem, não importariam realmente.
Da mesma forma, Butler declara que eu pessoalmente estou trazendo “toxicidade” e “crueldade para a mesa” ao insistir que um homem que declara ser mulher ainda não é uma mulher. “Imagine se você fosse judeu e alguém lhe dissesse que você não é. Imagine se você é lésbica e alguém ri da sua cara e diz que você está confusa porque você é heterossexual mesmo”. Como uma amiga judia observou, rindo, quando lhe contei isso pela primeira vez, há judeus que passam a vida inteira insistindo que alguns outros pretendentes não são realmente judeus. E, como infelizmente sei por experiência própria, algo semelhante também vale para as lésbicas. Mas, nos cálculos histriónicos de Butler, deixar de afirmar as reivindicações de identidade de outra pessoa é aparentemente mais traumático do que qualquer coisa que um cirurgião possa fazer a um adolescente confuso e infeliz identificado como trans, ou um violador identificado como trans a uma prisioneira já traumatizada.
Ela também objeta que os críticos interpretaram mal a natureza da construção social em escritos anteriores sobre o seu trabalho; e que ela pode e defende, de fato, que o sexo biológico é “real” (pelo menos, mais ou menos), mesmo que também seja “mutável”. Passei meu tempo nas minas de sal acadêmicas tentando dar sentido às contradições nos escritos de Butler, então deixarei que outros julguem quem está certo. Em vez disso, prefiro recorrer a uma questão mais interessante, tornada perfeitamente legítima pelo precedente que ela própria estabelece.
Ao produzir um livro tão terrível, o que está acontecendo psicanaliticamente com Butler? Do que ela realmente tem medo?
Dada a sua conhecida volatilidade, uma resposta plausível são os transativistas; um medo também indicado pela observação submissa da autora de que as suas próprias opiniões publicadas anteriormente sobre gênero se revelaram “questionáveis de várias maneiras, especialmente à luz das críticas trans e materialistas”. Afinal de contas, se o que é considerado uma metodologia aceitável na sua própria disciplina acadêmica inclui envergonhar os outros por escrito por danos não quantificáveis a uma comunidade muito mitificada, mais cedo ou mais tarde uma pessoa importante como Butler será ela própria vítima desta prática. Quanto mais venerável você se torna, mais provável é que jovens pretendentes venham ao seu trono, e eles terão algumas ferramentas assustadoras à sua disposição. Se eu fosse ela, também ficaria com medo.
Mas suspeito que também existe aqui um medo mais profundo e um desejo inconsciente de sublimar a culpa. (Vê como isso é irritante, professora Butler?) O nível de projeção neste livro – ou seja, a atribuição de características não reconhecidas do próprio comportamento a outros, no sentido freudiano e junguiano – está fora da escala. Butler vê canceladores autoritários e inimigos do pensamento crítico em todos os lugares, embora aparentemente não tanto entre aqueles mais próximos de casa.
Ela nos diz que no movimento antigênero existe um ódio à discussão racional. Dizer que o gênero é uma ideologia é, em si, “um movimento ideológico por excelência”. Enquanto os estudos de gênero — estudos de gênero, pelo amor de Deus — são um “campo diversificado, marcado pelo debate interno”, pelo contrário, os seus inimigos recusam-se a “ler os textos aos quais se opõem — ou a aprender a melhor forma de os ler” e “não se apegam a padrões de consistência ou coerência”. É impossível convencer os membros do movimento anti-gênero “com bons argumentos por causa do medo de que a leitura introduza confusão na mente do leitor ou a coloque em contato direto com o diabo”. Para qualquer pessoa que já tenha ficado sem plataforma como resultado de queixas transativistas, tenha sido submetida a uma ação disciplinar ou pior por causa de pontos de vista críticos de gênero, ou mesmo que apenas tenha trabalhado em uma das frases anteriores de Butler, este aspeto do livro deveria vir com um alerta de saúde.
Ainda assim, há algo de correto na observação de Butler de que os críticos do transativismo estão a tornar-se cada vez mais intolerantes e iliberais. A emoção dominante que ela atribui a eles é o medo, mas uma descrição mais precisa seria a fúria. É óbvio que muitos em todo o mundo ficaram irritados com o excesso grandioso e narcisista de acadêmicos como ela: pensadores indiferentes ao caos no mundo real causado pelas suas ideias excêntricas e códigos de discurso impenetráveis, e que denunciam todos os opositores como mal-intencionados ou profundamente confuso, não importa qual seja o raciocínio de fundo. Butler tem razão em temer ameaças crescentes contra pessoas e mulheres LGBT em todo o mundo, mas não percebe a sua própria responsabilidade significativa na etiologia do problema. Falando pessoalmente, não tenho nem um pouco de medo do gênero, entendido suavemente como expressão sexual e corporal; mas tenho muito medo do que Judith Butler fez com isso.
Kathleen é MARAVILHOSA. E necessária para o debate com a “manteiga derretendo”.