É raro ouvirmos sobre celibato (períodos temporários de abstinência sexual) como prática de liberação. Vivemos em uma sociedade pornográfica e obcecada com o sexo, porém quanto mais experienciadas são as mulheres no patriarcado, mais me parece que são capazes de entender o celibato como um tipo de práxis feminista. Sem dúvidas, há mais de um motivo pelo qual mulheres escolhem esse caminho. Muitas coisam devem ser consideradas, inclusive trauma referente ao abuso sexual na infância, não raro para quem nasce num corpo sexuado feminino. No meu caso, como parece ser o caso de várias mulheres que são heterossexuais ou bissexuais, tem a ver com o comportamento dos homens, claro. Mas não é só isso.
Falar sobre esse tema nunca me pareceu simples, pois há muitas nuances e experiências particulares. Ao mesmo tempo, existem também um tanto de experiências partilhadas que fazem mulheres pensarem sobre ou praticarem o celibato (ou ainda a assexualidade, ou seja, recusa sexual permanente) como escolha consciente. É por isso que essa track será divida em duas partes. A primeira, que vocês estão recebendo agora, é uma visão mais ampla acerca do tema, trago algumas curiosidades históricas bem como algumas referências e experiências anteriores para mostrar que não estamos falando de algo novo.
Compartilho também experiências pessoais e introduzo algumas perguntas e comentários de outras mulheres que recebi ao falar sobre o tema nas redes, e que também nos guiarão na parte dois. Apesar de serem mulheres de idades e realidades diferentes, algumas mães, outras bem jovens, outras heterossexuais, outras lésbicas, notei algumas similaridades em seus questionamentos e relatos e, no final, me parece que o que todas buscam de alguma forma nessa jornada é paz de espírito e saúde mental.
Nesse primeiro momento, o foco é a relação homem-mulher não limitada ao aspecto sexual-afetivo. Na parte dois, incorporarei algumas trocas que tive com mulheres lésbicas e algumas experiências pessoais em círculos exclusivamente femininos para argumentar que, inclusive por conta das questões estruturais, mulheres também têm muito trabalho pela frente porque o patriarcado capitalista produz ad nauseum uma sociedade repleta de pessoas, como diria Abdullah Öcalan, disfuncionais, independente do sexo (e na era das múltiplas verdades, isso ficou um tanto mais bizarro).
Fiquei me questionando sobre os objetivos de escrever sobre esse tema. Primeiro, entendo ser importante lançar luz a um tabu social, normalmente estigmatizado como “conservador” , e mostrar que há uma série de mulheres vivendo suas vidas muito bem, e na maioria das vezes de forma até melhor, mais “revolucionária” e mais sã do que mulheres em relacionamentos estáveis (ou ainda do que aquelas pulando de cama em cama em busca menos de sexo do que de aceitação) como celibatárias ou assexuadas por escolha. De forma ampla, isso desafia a lógica hipersexualizada da nossa sociedade e coloca a questão sobre quão saudável essa lógica poderia ser para as mulheres sob a ordem patriarcal. Muitas vezes e de várias formas, homens representam atraso na vida das mulheres e quanto mais mulheres tiveram noção disso melhor1.
Ao mesmo tempo, essa também é uma conversa sobre mulheres aumentarem suas réguas e mandarem pastar aqueles que não forem capazes de se comprometer com nada além do mínimo - e isso não só em se tratando de conexões sexuais-afetivas. Por exemplo, está nítida para mim a importância de mulheres não se aliarem a nenhum grupo que não seja capaz de se aliar a elas. Me parece que quanto mais repetimos esse erro, menos autonomia, sobretudo política, somos capazes de ter. Tenho total consciência que não temos controle sobre todas as coisas e, muitas vezes, estamos falando de uma falta de escolha. No entanto, quando a possibilidade de escolha existir, que sejamos capazes de escolher o que acreditamos que mais nos aproximará dos nossos objetivos maiores.
Por fim, não estar com a maioria e desafiar a narrativa hegemônica sobre o que de fato é pertinente para o caminho de uma sociedade outra, capaz de liberar a vida, sem dúvidas pode ser solitário. A esquerda brasileira no geral, e o antifeminismo (ou fakenismo) em particular que surge como expressão desta, estão tomados por narrativas liberais, por vezes imaturas, ausentes de radicalidade e um tanto hedonistas, carecendo de compromisso individual mínimo para extirpar não só o atual “sistema” do mundo e dos outros, mas sobretudo de si. Tampouco tenho visto proposições viáveis e que não passem de simples negação juvenil da velha ordem ou romancismo acerca de um passado pré-colonial idílico que nunca existiu.
Isso me soa como reflexo de acreditarmos que nossas crenças e ideologias são suficientes em si mesmas. Como se homens e mulheres se transformassem por meio de um batismo marxista, anarquista ou seja lá o que for2. Como se fossemos seres “iluminados” por uma “razão distinta” e, portanto, superiores aqueles que não foram “tocados” pelo privilégio do “pensar” de forma “consciente”. A fé transcendental na política descorporificada e, portanto, descompromissada com as questões incorporadas no nosso cotidiano me impressiona, e me incomoda, há bastante tempo. No entanto, minha práxis me diz que “a revolução externa e a revolução interna se pressupõe e têm de ser simultâneas para serem frutíferas”3. Em alguma medida, o esforço de escrever sobre isso segue tal compromisso.
celibato como práxis feminista [parte 1]
das cidades-templos aos conventos da modernidade
Na Mesopotâmia, filhas da nobreza podiam ser bem educadas para exercerem papel de sacerdotisas no templo, onde sua sexualidade e a prática sexual por prazer eram dedicadas às deusas e deuses. Esse grupo de mulheres extraordinárias tinha grande prestígio social e, mesmo com a complexificação do aparato estatal e estabelecimento de relações patriarcais, se mantiveram importantes até o destronamento da Grande Deusa e o estabelecimento do monoteísmo. Eram mulheres sexualmente ativas, mas sua sexualidade parecia se manter dedicada ao sexo por prazer, uma prática considera divina4. Entre a mais famosa das sacerdotisas está Enheuduana, a primeira poeta da história5.
Na Idade Média, a sexualidade feminina já estava sob uma ordem patriarcal e religiosa um tanto diferentes. Muitas mulheres escolhiam espaços religiosos, como os conventos, para fugir de casamentos indesejados, acessar a educação formal, podendo alcançar grande prestígio social e poder, bem como influência política. Ainda assim, o status das mulheres não estava totalmente fixado como dona de casa. Mulheres solteiras e viúvas entre os séculos XII e XIII eram bem vindas nas cidades, pois sua mão de obra era necessária para expandir o comércio. Na Alemanha, mulheres solteiras com posses ou artesãs e comerciantes também tinham alguma liberdade civil, chegando a formar guildas exclusivas de mulheres, e podiam se manter economicamente ativas. No entanto, e de forma geral, a sexualidade feminina se mantinha como propriedade dos homens.
A velha ordem feudal começa a mudar completamente a partir dos séculos XV e XVI, com a transição para o capitalismo, possibilitada pela colonização do chamado “Novo Mundo” e da grande “donadecaseficação” das mulheres europeias. Para Maria Mies, é plausível entender a fúria desencadeada pela caça às bruxas dos séculos XII ao XVII na Europa não apenas como resultado do velho regime em confronto com as novas forças capitalistas e manifestação do sadismo masculino atemporal, mas uma reação dos homens das classes dominantes contra as mulheres, sobretudo as pobres e expropriadas de seus meios de subsistência e habilidades6.
O processo de donadecaseficação tornou a vida ainda mais restrita para as mulheres, retirando grande parte de sua autonomia econômica remanescente e fixando seu status de dona de casa7. Dessa forma, os conventos continuaram como estratégia feminina para ter um padrão de vida melhor, escapar de casamentos indesejados e ter acesso à educação. Pesquisadoras também afirmam que os conventos eram espaços de experimentação da sexualidade entre mulheres e relacionamentos lésbicos.
feminismo setentista
Nos anos 70, o Cell 16, um grupo feminista radical com sede em Boston defendia a abstenção de sexo, unidade radical entre as mulheres (incluindo mulheres protegendo outras mulheres da violência) e separatismo político. Para a feminista Sheila Jeffreys (1990), a revolução sexual dos anos 60 e 70 não se apresentava como liberação das mulheres. Na verdade, podia ser mais entendida como a substituição de uma forma de opressão por outra. O que aparecia como novas formas de expressão sexual, como, por exemplo, pornografia, livros e discussões sobre sexo na televisão, eram apenas um novo aparato de uma velha ordem.
Outras vozes nos movimentos radicais entendiam que a revolução sexual apenas facilitou o acesso dos homens ao sexo e ao corpo de um maior número de mulheres, e, portanto, “trabalhou em oposição direta às mulheres terem mais controle sobre sua liberdade pessoal e sexual”. Outras feministas, ainda, levantaram a questão sobre a transferência do controle reprodutivo para a indústria farmacêutica, notando que mulheres tinham mais conhecimento sobre métodos contraceptivos antes da caça às bruxas do que na idade moderna, criticando o chamado “progresso” da revolução sexual8.
Em grande medida, essas críticas apontam para o fato que a revolução sexual ignorou as verdadeiras experiências sexuais das mulheres (como brutalização, estupro e socialização masculina). De fato, me parece bastante ingênuo acreditar que uma “revolução sexual” sob o patriarcado capitalista realmente poderia significar liberação das mulheres. Talvez mulheres ocidentais nunca tenham sido tão livres para transar com a maior quantidade de homens possíveis desde a Antiguidade clássica. E talvez, e ao mesmo tempo, a violência sexual contra as mulheres nunca esteve tão disseminada, inclusive na cultura9 - e as consequências disso nós podemos acessar parcialmente nos dados acerca de estupro (veja aqui e aqui), feminicídio (veja aqui e aqui), pedofilia (veja aqui), tentativas de suicídio (veja aqui) e estatísticas de saúde mental (veja aqui).
a complexidade econômica, psicológica e política do patriarcado
Esse contexto pode adiantar alguns dos motivos pelos quais mulheres escolhem o celibato ou a assexualidade e porque para muitas mulheres parece bastante contraproducente fazer conciliação de classe no atual estado das coisas. Eu diria que conciliação de classe é o que mulheres vêm fazendo desde 2.500 a.C, quando mulheres foram paulatinamente sendo dominadas e desumanizadas, excluídas da educação formal, da luta armada, da economia e da religião, e passaram a ficar sob tutela de homens, dependendo deles para sobreviver. Até hoje, não estar com um homem pode significar mais vulnerabilidade econômica, sobretudo para as mulheres que são mães.
Segundo IBGE, 63% das famílias chefiadas por mulheres com filhos vivem abaixo da linha da pobreza. Se falarmos apenas de mulheres negras, esse número era 7,5% maior em 2018. A realidade não é muito mais positiva para mulheres do Norte global. Segundo Seiichi Inagaki, professor da Universidade Internacional de Saúde e Bem-Estar, a taxa de pobreza das mulheres japonesas solteiras e idosas pode dobrar em 50% nos próximos 40 anos. Nos EUA, “as mulheres que nunca se casaram acumulam 29% menos patrimônio líquido médio do que um homem que nunca se casou. Predominantemente, o casamento tem um impacto positivo no patrimônio líquido de homens e mulheres. Para as mulheres, no entanto, esse impacto é claramente ampliado”. Poderia continuar com as estatísticas, mas você já entendeu o ponto. De uma perspectiva econômica, não há vantagem para as mulheres se manterem solteiras. No entanto, mulheres solteiras têm mais liberdade (e eu diria disposição) para se dedicar à carreira, sendo normalmente os homens os maiores obstáculos para que elas possam avançar nas suas trajetórias profissionais. Seja como for, a desigual valoração do trabalho (re)produtivo das mulheres necessário ao modo de produção capitalista tem sido uma forma importante de manutenção da dominação masculina.
Mas o patriarcado não é apenas econômico. Ele é também psicológico10. Como estamos falando de um processo de submissão imposto ao longo de centenas de milhares de anos, é imprescindível reconhecer o papel dessa dominação psicológica milenar ao qual mulheres de todas as classes, etnias e religiões sob a hegemonia global masculina foram submetidas e que, em ampla medida, colocam mulheres para proteger a ordem patriarcal de múltiplas formas, permitindo a continuação da dominação masculina, e portanto do patriarcado, até o nosso presente momento.
Dessa forma, junto com uma série de outras feministas, argumento que patriarcado não pode ser entendido apenas como um sistema econômico e político, pois ele é também um patriarcado psicológico, responsável por manter mulheres crentes em sua suposta inferioridade enquanto seres humanos desde a mais tenra infância, bem como emocionalmente dependentes da aprovação masculina para encontrar algum valor na própria existência11. Esse último ponto pode ser resumido na frase da pesquisadora Valeska Zanello:“enquanto as mulheres são ensinadas a amar os homens, os homens são ensinados a amar muitas coisas”.
O patriarcado psicológico pode ajudar a explicar, ao menos em alguma medida, porque mulheres encontram alguma satisfação na objetificação, permanecem em relacionamentos ruins, para dizer o mínimo, mesmo quando têm condições econômicas de pular fora, se sujeitam a situações degradantes e, às vezes, inimagináveis, para estar com, satisfazer ou agradar homens. Observar a narrativa e a realidade do casamento também pode nos ser útil: o casamento aparece como grande prisão para os homens sendo que são as mulheres as maiores responsáveis pela carga de trabalho extra, o cuidado com os filhos e até mesmo pelo trabalho emocional envolvido em qualquer relacionamento. Ainda assim, muitas mantêm matrimônios falidos porque realmente acreditam que é melhor estar com um homem ruim do que com homem nenhum.
recusa revolucionária
Em Liberar a Vida: a Revolução das Mulheres, Öcalan nos lembra que “o homem sexista está tão interessado em construir seu domínio social sobre as mulheres que transforma qualquer contato com ela em uma demonstração de domínio”12. Para Öcalan, e nas elaborações de Jineolojî, não é possível homens e mulheres estabeleceram relações sexuais-afetivas até a morte do macho dominante (e da sua contraparte, a fêmea subordina), representados nos esteriótipos patriarcais de feminilidade como subserviência e masculinidade como dominação. É por isso que, para aquelas e aqueles que escolhem adentrar as fileiras do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), a assexualidade por escolha é (ou deveria ser) encarada como um compromisso revolucionário.
Eu não fui capaz de entender Öcalan completamente até algum tempo atrás. Precisei de um tanto de leitura feminista para elaborar minhas próprias experiências e realidade, e alcançar o líder curdo no que eu acredito ser uma compreensão mais ampla da nossa sociedade patriarcal capitalista. Isso, é claro, tem a ver com o próprio liberalismo, bastante presente no feminismo, até mesmo em suas vertentes mais radicalizadas. Enquanto aqui vivemos o ecstasy neoliberal, o Oriente Médio experimenta o capitalismo de uma forma que, para facilitar o entendimento, vou chamar de parcialmente feudal e, entre os curdos, as relações tribais se mantêm presentes, o que tem vantagens e desvantagens em se tratando de liberação das mulheres. É importante notar que muitas mulheres adentram o Yekîneyên Parastina Jin (YPJ) como forma de escapar de casamentos arrumados e um dos grandes desafios da região é acabar com os assassinatos de mulheres por crime de honra.
No entanto, dadas as nossas atuais estatísticas, me parece um erro achar que não podemos traçar paralelos com as nossas camaradas curdas. Talvez, justamente porque podemos, um tanto de mulheres passam a escolher uma vida pessoal o mais independente possível dos homens. Afinal, em um contexto social onde o ódio contra a mulher é disseminado na forma de perseguição política, violência sexual e objetificação, e mulheres são ensinadas a amar e servir homens a qualquer custo, quando não pelas suas próprias famílias, por toda uma cultura, quem realmente pode acreditar que seja possível homens e mulheres estabelecerem relações realmente saudáveis?
Por motivos óbvios, me parecem ser as mulheres as mais dispostas a se livrarem das amarras. Enquanto isso, os homens estão bastante confortáveis em fazer o mínimo ao passo que aproveitam a “revolução sexual” do momento, encapsulada nos aplicativos de encontros e no discurso da não-monogamia sendo distribuído como pílula mágica para resolver todos os problemas sem que eles tenham realmente que mudar seu padrão mental e modo de funcionar. Os que ficam de fora da renovada lógica patriarcal, por falta de beleza ou habilidades sociais, podem simplesmente “se tornarem mulheres”. Não é difícil entender porque os homens da esquerda defendem tanto o antifeminismo.
ver de tudo e estarmos fartas
Indo além, há mulheres que escolhem reduzir seus contatos com homens de forma ampla. Esse é meu caso. Como gosto de homens na cama, há algum tempo procuro não gastar minha cota de paciência com eles fora dela. Vamos voltar à frase de Öcalan: “o homem sexista está tão interessado em construir seu domínio social sobre as mulheres que transforma qualquer contato com ela em uma demonstração de domínio”.
Homens não sabem existir ao lado de mulheres sem demonstrarem a certeza de superioridade humana concedida a eles historicamente, independe da roupa que usem (posso garantir, saias e vestidos não têm superpoderes para elevar indivíduos a nível de santidade suprema). As formas mais sutis, sem dúvidas, são para as mais atentas ou experienciadas porque, na sutileza, mora a manipulação. Será que as loucas não somos nós, afinal?
É preciso alguma experiência para enxergar o que pode parecer um detalhe, ou “má interpretação”, mas é, na verdade, aquela dose de dominação diária e permanente que aprendemos a aceitar e para a qual sorrir. Muitos homens, assim como muitas mulheres, de fato não percebem a lógica dominante-dominado operando em seu cotidiano, sobretudo se ela não estiver escancarada. Não é raro um homem desrespeitar uma mulher de muitas formas e, ainda assim, acreditar que ele não é, em absoluto, um homem que desrespeita mulheres. Para a maior parte deles, a violência e dominância masculinas só se expressam no estupro, no soco e nos xingamentos. Bem que nós mulheres gostaríamos que fosse assim. A luta feminista seria um tanto mais simples.
Talvez seja por isso que Valeria Solanas diz que “você tem que passar por muito sexo para ficar anti-sexo”. Você já viu tudo e, provavelmente, está farta. Talvez você chegue a conclusão que o esforço envolvido, inclusive mental, deixa de valer a pena quando tudo é mais do mesmo. Quando nossa paciência é escassa e conseguimos enxergar os detalhes isso invariavelmente significa, no meu caso, brigas. E depois de um tempo comprando muitas brigas, a gente aprende, e tenta colocar em prática o aprendizado, sobre em quais delas vale a pena entrar.
uma questão de prioridades
Sem dúvidas, estaria sendo injusta se dissesse que é impossível passar um tempo tranquilo com homens - na cama ou fora dela. Meu braço direito no trabalho e em muitos dos perrengues da vida nos últimos quase dez anos foi um homem que hoje já é irmão e faz parte da nossa ampla família de mulheres. É claro que atritos não faltaram, mas no fim das contas fizemos muitas coisas legais juntos, entre elas o Instituto Modefica.
Em um dos últimos encontros antes do meu atual momento de celibato, sai para um drink com um cara mais ou menos da minha idade que me acompanhava no Instagram há algum tempo. Papo tranquilo, vida sossegada, o sexo fluiu, eu gozei e poderíamos ter nos visto novamente. Não foi, de maneira nenhuma, uma experiência horrorosa que me fez desistir de tudo.
Mas seja como for, há sempre uma dose de energia que precisamos colocar - e, justamente pela assimetria inerente às relações entre homens e mulheres sob o patriarcado (ver nota de rodapé 1) - a cota que fica para as mulheres é mais pesada. Também há a realidade crua que nunca sabemos de fato com quem estamos saindo: um pedófilo, um viciado em pornografia, um misógino que disfarça bem. E se? O sentimento de ser “mais uma caça” também pode ser desestimulante.
No topo, está o fato que as coisas mais importantes e minhas maiores conquistas aconteceram quando estava completamente fora do circuito sexual-afetivo e não estava pensando sobre isso. É uma questão tanto de saber estar sozinha, bem como de saber o que esses encontros e trocas podem nos causar, reconhecendo o impacto da socialização feminina, e aceitar que nem sempre mulheres podem se dar ao luxo de ter tudo.
No final de A criação do Patriarcado, Gerda Lerner fala sobre como pensadoras “desviantes” lidaram com os meios historicamente utilizados para desencorajar a práxis de liberação das mulheres, como o isolamento e a desaprovação: celibato, separação entre amor e sexo, voltar sua afeição às mulheres. Ainda assim, os desafios não cessam e, com a disseminação da pornografia digital violenta e hipersexualização, diria que estão ainda mais complexos.
Talvez a tarefa seja ligeiramente mais fácil para mulheres que, por qualquer motivo, não têm prazer sexual com corpo masculino, pênis, penetração, esperma, e tudo o que geralmente envolve uma relação heterossexual. Esse não é o meu caso, sobretudo porque, diferente de muitas mulheres, a estimulação vaginal por penetração é algo que preso e gosto. Para mim, não há substitutos para isso, nem para o toque, a troca de suor, a pele com pele, a tensão, energia e fluídos. Essas são as coisas das quais abrimos mão no celibato ou assexualidade. Como comentou uma das mulheres que me escreveu sobre o tema, o prazer e o orgasmo existem no celibato (temporário ou permanente), mas existem de outra forma.
Há muitas perguntas que surgem a partir daqui: como escapar da solidão? Como lidar com o desejo e o sentimento muitas vezes ambíguo de querer pele com pele, mas saber o que isso pode significar de forma mais ampla? E se conhecer alguém legal no meio do caminho? Por que então não escolher a lesbianidade? A essas questões voltaremos na próxima parte.
Até a próxima,
Marina Colerato
Por vários anos, tenho acompanhado e me cercado de mulheres que, de forma consciente, lidam com as consequências da dominação masculina em suas vidas. Além de terapia e conversas extensas com outras mulheres, alguns livros que me ajudaram a tirar algum senso da realidade e sobre as formas distintas que mulheres e homens lidam com relacionamentos foram Mulheres Que Amam Demais, da Robin Norwood; Complexo de Cinderela, da Colette Dowling e Amar Para Sobreviver, de L. R. Graham.
Aqui, faço referência ao texto de Javierre no jornal Solidaridad Obrera, intitulado Reflejos de la vida rusa en el régimen familiar. A citação de Javierre aparece no livro Mulheres Livres: a luta pela emancipação feminina e a guerra civil espanhola, p. 82, 2019.
Ibid, p. 97.
Ver LERNER, Gerda. A criação do Patriarcado (2021); GRAEBER, David. Dívida (2016).
Ver Inana: antes da poesia ser palavra era mulher (2022).
É pertinente ao contexto lembrar que havia múltiplos interesses da ciência e economia modernas na caça às bruxas. Ver Carolyn Merchant (1989), Maria Mies (2022), Silvia Federici (2017).
Ver MIES, Maria. Patriarcado e acumulação em escala mundial (2022).
Mies e Shiva também abordam o tema nos textos do livro Ecofeminismo (2021). Os textos da autora Mary Harrignton trazem uma reflexão correlata. Ver, por exemplo, The progress boner doesn’t care about your health.
A violência contra a mulher toma várias expressões. Entre elas, ressalto a completa objetificação feminina, que pode ser vista de forma bastante crua, e brutal, na pornografia digital disseminada e na indústria do sexo de forma ampla (que vai das divas pop como Anita à barriga de aluguel). Ao mesmo tempo, podemos afirmar sem medo de errar que a objetificação feminina alcançou uma nova etapa com o transumanismo e a completa comodificação das mulheres.
O patriarcado político pode ser resumido no Estado e em seu papel em manter relações patriarcais entre os sujeitos, não se resumindo apenas aos relacionamentos homens e mulheres, mas tentando inserir todas as relações dentro do aparato legal que serve para a reprodução do sistema. Aqui podemos falar de um amplo esquema legislativo que vai da legalização do casamento homoafetivo, barriga de aluguel e casamento com menores de 18 anos à Lei de Alienação Parental. Uma série de feministas fazem essa crítica, entre elas a feminista materialista francesa Jules Falquet.
Sendo o modo de produção capitalista a expressão mais recente do patriarcado. Acerca do patriarcado em sua versão socialista real, ver Por que as mulheres tem melhor sexo sob o socialismo e outros argumentos a favor da independência econômica (2021).
Citação retirada do livro The Political Thought of Abdullah Öcalan, p. 58, 2017.
maravilhoso, marina! 🖤