a ideologia da identidade de gênero é um ataque político ao feminismo radical
por Jo Brew
Queridas e queridos leitores,
Estou correndo bastante no offline para resolver burocracias e preparar o anúncio de algumas novidades que virão em outubro. Tenho certeza que vocês vão curtir muito o que vem por aí. Também já estou dedicada à roteirização dos episódios do Feminismo é luta de classes! Agora que a parte das recompensas físicas foi resolvida, é hora de começar o trabalho de produção do conteúdo em si.
Essas coisas todas têm me animado e me mantido respirando frente às muitas dificuldades do meu momento pessoal e do nosso momento social, mas também têm me tomado um tempo enorme. Por isso, e porque tenho priorizado manter os podcasts (na fogueira e Papo de Fera) em dia, estou com menos tempo e energia do que gostaria para pesquisa, escrita e interações nas redes.
Mas, apesar da correria, tenho lido algumas coisas bacanas nesse universo à parte chamado Substack que quero compartilhar com vocês, entre elas o Substack da
, o . Dois dos seus textos ressoaram por aqui de forma significativa, mas o “A ideologia [da identidade de] gênero é um ataque político ao feminismo radical” (em tradução livre) bateu mais forte quando ela - assim como eu - disse compreender essa agenda como parte de um reajuste do capitalismo.Como ecofeminista de tradição materialista tenho divergências com o construcionismo social radical proposto por algumas teóricas do feminismo radical (análogo ao construcionismo social radical pós-moderno), sobretudo no que tange os conceitos de “gênero” e “feminilidade”1. Nós também compartilhamos de uma visão específica de mundo e organização da (re)produção, a perspectiva de subsistência. Porém, tais divergências não me impedem de compreender a importância do feminismo radical para o movimento de libertação das mulheres como um todo, tampouco reconhecer que, desde o final da década de 1960, ele construiu uma base sólida para a luta feminista a partir da compreensão de que “o pessoal é político” sobre a qual foram elaboradas todas as outras correntes teóricas e práticas que surgiram depois.
Então trago para vocês a tradução dessa fala da Jo Brew, feita em julho na conferência da WDI em Londres que suscitam reflexões importantes para qualquer pessoa comprometida, de verdade, com a liberação feminista.
A ideologia [da identidade de] gênero é um ataque político ao feminismo radical
por
Muitas causas da ideologia da identidade de gênero2 foram identificadas: autoginefilia, fetichismo, lucros da indústria farmacêutica, homens medíocres querendo ganhar prêmios em dinheiro e bolsas de estudo, desejo dos homens de penetrar corpos e espaços femininos, vontade das meninas de evitar se tornarem mulheres e escapar das restrições impostas pela feminilidade patriarcal. Outros dizem que a ideologia da identidade de gênero é um ataque à realidade, à racionalidade, à ciência, à liberdade. Alguns dizem que os poderes constituídos querem amolecer a população para ataques piores porque se você acredita que um homem pode se tornar uma mulher, você acreditará em qualquer coisa.
Todas essas análises estão corretas na minha opinião, mas acho que é melhor considerar a ideologia da identidade de gênero como um ataque político ao feminismo radical.
Primeiro, o Feminismo Radical é nomeado o inimigo número um. Transativistas (TRAs) nomeiam feministas radicais diretamente como o inimigo-chave. TERF (feminista radical trans excludente) é o termo usado por TRAs para descrever seu inimigo. Seja o inimigo uma feminista ou uma feminista radical, ela (ou até mesmo ele) será rotulado como TERF. TRAs não protestam em frente a Marks and Spencer (uma loja de roupas no Reino Unido) por terem seções de roupas masculinas e femininas, eles também não protestam do lado de fora das Olimpíadas, ou de qualquer outro evento esportivo, por existirem categorias masculinas e femininas. Eles escolhem as mulheres com uma visão feminista radical para atacar e silenciar. Mais notavelmente, os eventos da Kellie-Jay Keen, Let Women Speak (“Deixe as mulheres falarem”).
Em segundo lugar, a ideologia da identidade de gênero mina a luta de classes sexual. No cerne da análise feminista radical está o entendimento de que pessoas do sexo feminino formam uma classe sexual que é explorada e dominada pelas pessoas do sexo masculino. A habilidade da classe sexual masculina de subjugar a feminina foi reduzida pelo feminismo radical nos últimos anos. Essa é uma luta de classe sexual e nossa ideologia de liberação é o feminismo radical. Nós estávamos tendo ganhos, e os patriarcas sabem que se eles quebrarem as feministas radicais, eles podem quebrar o restante do movimento de mulheres. Nós temos a compreensão política mais nítida e os métodos mais nítidos para lutar de volta - grupos de trabalho somente para mulheres, lesbianismo político, conscientização e muitos outros métodos que desenvolvemos como feministas radicais.
Uma parte central do projeto político Thatcherista nos anos 1980 foi quebrar os mineiros na Inglaterra, a força mais resistente da classe trabalhadora organizada. As feministas radicais são as mineiras da guerra sexual - as lutadoras mais fortes, mais bem organizadas e mais resistentes da nossa classe. Como a grande greve dos mineiros nos anos 1980, nós, feministas radicais, fazemos parte de uma ampla luta de classes travada em muitas frentes por nossa classe sexual. O ataque direcionado a nós mostra uma compreensão de que somos uma parte incrivelmente forte da luta.
Terceiro, a ideologia da identidade de gênero causa redução da consciência.
Algumas agressões às mulheres são ataques físicos diretos com o objetivo de torná-las obedientes ao patriarcado. Por exemplo, uma mulher que deixa a Igreja Cristã pode ser ostracizada ou fisicamente atacada ou afastada ou agredida por abandonar a Igreja. Isso pode fazê-la retornar e serviria como um aviso para as outras mulheres. A lição para a mulher é que ela pode permanecer viva e possivelmente ter uma vida razoavelmente confortável contanto que ela se mantenha na órbita patriarcal.
A ameaça representada pelo feminismo radical é a sugestão de sair do abrigo patriarcal rumo a um espaço metapatriarcal, fora do patriarcado.
Nessa guerra política e ideológica, as ideias contam. A ideia de que você pode sair do patriarcado é útil. Grupos de conscientização sugeriram a muitas mulheres a possibilidade de deixar o marido violento, se tornar lésbica, viver separadamente ou ser centrada nas mulheres.
Quarto, a ideologia [da identidade de] gênero atua em oposição a esse conhecimento feminista como forma de redução de consciência. Ela reduz a consciência das mulheres, nosso entendimento e habilidade de ver nossa opressão. Torna um tabu dizer que mulheres são oprimidas por homens. Nós podemos ver isso nas ações disseminadas de homens demandando que mulheres não falem sobre a opressão relacionada aos seus corpos. Eles personalizam isso, dizendo “Isso me dá um gatilho, ou me deixa triste” e os apoiadores do patriarcado ao entorno politizam esse comportamento e o expande, demandando novas normas sociais que colocam os sentimentos pessoais dos homens acima da libertação política das mulheres.
Quinto, a ideologia [da identidade de] gênero significa que homens podem falar por mulheres. Um ponto massivo que as feministas radicais estabeleceram é que as mulheres devem falar por elas mesmas. Nós também estabelecemos uma compreensão de classe e uma solidariedade de classe. Quando uma mulher se posiciona para falar, outras mulheres sentem isso. Mesmo que nós não gostássemos das políticas da Margaret Thatcher, pelo menos ela era uma mulher e isso significava alguma coisa. Nós sabemos que as mulheres estão conectadas por meio da nossa opressão de classe compartilhada. A ideologia [da identidade de] gênero significa que homens podem falar por mulheres de novo. Os homens estão sendo apontados como mulheres para falar em nome das mulheres, e isso é um grande ganho para os homens e para o patriarcado, porque, por exemplo, eles podem dizer que as mulheres adoram sexo anal, obtêm prazer físico com sexo anal ou qualquer coisa que seja adequada à classe sexual masculina.
As quatro grande questões do feminismo radical são prostituição, pornografia, barriga de aluguel e violência contra a mulher. A ideologia [da identidade de] gênero se alinha em direção oposta ao feminismo radical nessas quatro grandes questões. Isto indica que essa ideologia é um ataque direto ao feminismo radical.
Sexto, a ideologia [da identidade] de gênero aumenta a taxa de lucro. Às vezes é lucro monetizado (pornografia, prostituição, barriga de aluguel, os fármacos vendidos, as cirurgias realizadas) mas às vezes é o lucro da classe sexual – a quantidade de trabalho não remunerado que uma mulher fará para o homem. Poderíamos dizer que eles gostam da taxa de lucro que pode ser de 2% sobre o investimento. O capital pode crescer. Há boas oportunidades para investidores. Pessoas que lucram com o desmatamento da Amazônia farão vista grossa para a devastação. De forma semelhante, os homens lucram com as mulheres. Mas esse lucro não é apenas dinheiro: é sexo, é status, é trabalho livre e controle, são bens não monetizados e são eles que têm todo o poder político ou a maior parte dele, são eles que são os palestrantes, os artistas, os comediantes, eles que têm o palco. A ideologia [da identidade] de gênero acaba com a competição.
A ideologia [da identidade] de gênero é o ajuste estrutural de classe sexual da economia mundial. É uma reestruturação em larga escala da sociedade, economia, leis e instituições que constroem e reconstroem a sociedade. Onde o ajuste estrutural na década de 1980 transformou economias e sociedades de controladas pelo Estado para lideradas pelo mercado, abrindo liberdades de mercado e oportunidades para novas formas de exploração econômica, aumentando a taxa de lucro e a capacidade de extrair valor agregado das pessoas, do meio ambiente e da natureza, este é o ataque global às mulheres e abre oportunidades. Remove as proteções que as sociedades, o Estado e as instituições concederam às mulheres. As remove da mesma forma que a Cortina de Ferro3 foi removida, e os estados em todo o mundo não conseguiram mais proteger suas indústrias, comunidades, campos e florestas porque tudo ficou disponível para exploração. Não que eu apoie tudo o que aconteceu por trás da Cortina de Ferro, mas existiam algumas proteções contra as devastações do capitalismo. Esse ajuste estrutural sexual quebra o Muro Feminista Radical, a Cerca Feminista, que havia estabelecido algumas barreiras à exploração sexual.
Então agora os homens têm mais oportunidades para explorar e conseguir coisas que eles valorizam das mulheres. O feminismo radical evitava algumas destas explorações - por exemplo a habilidade para pagar para estuprar uma mulher na prostituição. Essa exploração masculina tem sido ameaçada sobretudo por feministas radicais - SWERFs (sex worker exclusionary radical feminists) - observe o FR feministas radicais novamente. Foi adicionado a estes o novo termo SERF - surrogacy exclusionary radical feminist4. Note que eles não atacam TELFs or TESFs or TEPFMs (feministas liberais trans excludentes, ou feministas socialistas, ou feministas pós-modernas). É verdade que estes termos também não saem da língua tão facilmente.
Em contraste direto com as sufragistas, que conseguiram uma oportunidade e deram voz às mulheres, as feministas radicais agora estão sendo expulsas pela porta dos fundos, sendo excluídas da tomada de decisões da sociedade em todos os níveis e também estão sendo vilipendiadas. É como as bruxas, demonizadas por serem curandeiras e acusadas de serem aliadas do diabo. Nós estamos no meio da expulsão das TERFs. Nós vimos a expulsão das TERFs da maior parte das instituições e espaços de trabalho. Também estamos vendo a expulsão do feminismo radical da consciência das mulheres. Nós não estamos sendo expulsas de um país porque como mulheres não temos país. Nós estamos sendo expulsas da vida pública e isso serve à classe sexual masculina muito bem. O feminismo radical está se tornando um tabu. O feminismo radical é “a ideia que não deve ser nomeada”.
TRAs and TRAs aliados estão garantindo que não expulsem apenas as pessoas, mas as ideias. Existe uma difamação das ideias feministas radicais e castigo para as mulheres que mantêm essas ideias. Nos últimos anos, descobri que até mesmo a menção ao feminismo está se tornando socialmente inaceitável. Na minha família e no meu trabalho as pessoas me toleram contanto que eu não levante o tópico tabu. É como ir a um chá da tarde com suas primas e tias e alguém perguntar o que você fará durante o fim de semana e eu responder: “vou passar a tarde inteira assistindo pornografia”. Dizer a elas que eu regularmente faço feminismo radical é inaceitável. As pessoas parecem nervosas, doentes, preocupadas comigo e com minha gafe. Elas mudam de assunto rapidamente. Se feminismo radical é uma conversa inaceitável, ela caminha sombra adentro.
A ideologia [da identidade] de gênero levantou muitas questões sobre o que significa ser uma mulher. Nós sabemos que estamos conectadas, e que o pessoal é político. Quando uma mulher é agredida em um beco escuro, as feministas radicais disseram que ela foi agredida não porque ela é um indivíduo, digamos Jo. Ela é agredida porque é uma mulher, porque pertence à classe sexual. É uma forma de terrorismo contra as mulheres. Uma vez que entendemos que as agressões direcionadas a nós não é pessoal, é político, nós nos tornamos mais integralmente ligadas a todas as mulheres. Essa compreensão é fragmentada pela teoria [da identidade] de gênero. A teoria [da identidade] de gênero é a privatização do feminismo. Eles o estão vendendo pelo maior lance e nesse caso é a Big Pharma e cafetões, pedófilos e fetichistas financiados pelo Estado. Em vez de saber que fazemos parte de um grande movimento de mulheres, nos dizem que somos indivíduos privados com oportunidades iguais. A identidade de gênero nos diz que não existe sociedade feminina. Somos apenas indivíduos feminilizados. A ideologia [da identidade] de gênero permite que um homem que representa todos os homens entre em organizações femininas, mas exige que não reconheçamos sua classe sexual.
A ideologia da identidade de gênero é um absurdo ilógico, mas isso não impediu Estados, instituições, negócios e veículos de mídia de adotá-la e apoiá-la.
Eles escolheram fazer isso porque não a teoria da identidade de gênero não é o que diz ser. A ideologia da identidade de gênero pretende ser progressista, mas seu impacto é colocar as mulheres em segundo plano e reabrir oportunidades para os homens nos dominarem e explorarem. Eles podem parecer progressistas e dizer que estão apoiando os pobres homens gays sofredores de longa data. Eles podem até seguir a linha virtuosa de dizer que estão quebrando estereótipos de gênero, mas o verdadeiro efeito de sua ação é exatamente o oposto: reforçar papéis sexuais estereotipados e ao mesmo tempo silenciar e enfraquecer as mulheres, permitir mais acesso aos corpos femininos, mais exploração e silenciamento das mulheres, mais empregos para eles, e se livrarem daquelas feministas radicais irritantes. Feministas radicais há muito são uma ameaça ao patriarcado porque nós não queremos apenas banheiros seguros, nós queremos derrubar todo o sistema. A coisa toda. E é por isso que somos as inimigas número um dos identitaristas de gênero.
Ver, por exemplo, a concepção construcionista social radical de Marilyn Frye em Políticas da realidade: ensaios em teoria feminista, publicado no Brasil pela Oitava Feminista. Também falamos brevemente sobre isso no Papo de Fera #1 e você pode compreender melhor a abordagem ecofeminista sobre gênero e feminilidade na minha dissertação de mestrado, disponível aqui.
A autora utiliza as expressões “ideologia de gênero” e “ideologia da identidade de gênero” de forma intercalada, pois na Europa, EUA e Canadá não existe diferença entre ambas e a expressão “ideologia de gênero” não está atrelada politicamente à direita ou ao conservadorismo como no Brasil.
A cortina de ferro foi uma expressão usada durante a Guerra Fria para fazer menção à barreira ideológica existente no continente europeu entre as nações capitalistas da Europa Ocidental e as socialistas da Europa Orienta sob a influência do governo da União Soviética.
As traduções SWERF e SERF, literalmente, significariam “feministas radicais excludentes de trabalhadoras do sexo” e “feministas radicais excludentes de barriga de aluguel”.