A track de hoje é um excerto de alguns parágrafos da minha dissertação de mestrado, onde uso o trabalho das ecofeministas, com destaque para Mary Mellor, sobre transcendência e imanência. Na semana passada, li a descrição de um livro de um autor marxista no site de uma editora marxista-leninista dizendo que o progresso alcançado pelos humanos, incluindo o de “transcender a biologia”, sinaliza que estamos no caminho para um futuro maravilhoso. Esse exemplo é realmente significativo dado tudo o que venho falando sobre a tecnotopia. As referências bibliográficas aqui mencionadas podem ser conferidas na própria dissertação.
transcendência e imanência
Os seres humanos são animais materiais vivendo em uma moldura ecológica da qual são inteiramente dependentes (MELLOR, 1997a); ou seja, humanos-na-natureza, nem fora e nem acima do ecossistema terrestre, o responsável por sustentar as variadas formas de vida na Terra e, portanto, garantir o que é necessário para qualquer modo de produção humano. Embora possam interferir em grande medida no ecossistema, os humanos não podem transcendê-lo e são incapazes de mensurar as consequências precisas das tentativas de transcendência.
A crise climática pode ser lida como uma das consequências da sociedade patriarcal capitalista em ignorar a realidade material e ecológica da própria existência corporificada e encarnada. Ainda que os cientistas possam ter alguma previsibilidade das consequências das alterações do clima por meio de modelagens climáticas, é impossível dimensionar os danos reais, sobretudo os danos acumulados das emissões de gases de efeito estufa e da destruição ambiental, dada a própria complexidade das interações ecossistêmicas existentes na natureza (IPCC, 2023).
Ao longo do seu desenvolvimento, a civilização central criou a si mesma em oposição à natureza e o poder pôde ser definido como "a habilidade de certos indivíduos ou grupos de se liberarem (temporariamente) da corporificação e encarnação, do tempo ecológico e biológico." (MELLOR, 1997a, p. 189, tradução nossa). O tempo ecológico é o ritmo da sustentabilidade ecológica da natureza extra-humana, o tempo necessário para a regeneração dos ciclos reprodutivos da própria natureza.
A tentativa de transcender esses limites é, ainda que de forma limitada, apontada pelo "Dia de Sobrecarga da Terra". Calculado anualmente desde 1970, esse dia marca a data exata em que os recursos naturais produzidos pelo planeta não são mais suficientes para suprir o consumo da humanidade e absorver os resíduos do fluxo de extração, produção e descarte do atual sistema hegemônico de produção. A cada ano, esse dia chega mais cedo: há dez anos, o dia da sobrecarga da Terra foi em 18 de agosto; vinte anos atrás, em 29 de setembro. Em 2022, foi 28 de agosto e em 2023 espera-se que seja em torno de 02 de agosto (GLOBAL FOOTPRINT NETWORK, 2023).
Por sua vez, o tempo biológico representa o ciclo de vida e o ritmo de reposição corporal dos seres humanos, por exemplo gerar, nutrir, cuidar e socializar uma criança ou manter, cuidar, alimentar um idoso. Historicamente, foram as mulheres as responsáveis por carregar as obrigações humanas inerentes ao tempo biológico, com os homens se tornando "livres" para operarem no tempo social e linear do relógio, desatrelado da realidade material e ecológica. Esse tempo "livre" foi ocupado pelas práticas de política, guerra, comércio e manutenção da dominação masculina em todas as esferas da vida. Devemos lembrar mais uma vez que o objetivo último dos Grandes Homens para a Humanidade é "autonomia" da natureza em termos ecológicos e biológicos (MELLOR, 1997a, MIES, 2022; SALLEH, 2017).
As consequências dessa pretensa autonomia são colocadas de lado como "externalidades", que recaem sobretudo nas vidas e nos corpos da grande maioria das mulheres não só na forma da violência necessária para manter a apropriação gratuita do trabalho (re)produtivo, como também nas consequências materiais da destruição ambiental justamente porque a maior parte das mulheres está posicionada na esfera que medeia a relação entre o capital e o trabalho. Essa mediação envolve "exclusão e exploração; significa garantir tempo, espaço, ou recursos para outra pessoa." (MELLOR, 1997a, p. 189).
Para algumas mulheres (normalmente de classe alta), só é possível se deslocar da realidade do tempo biológico e ecológico adotando uma postura de individualidade, independência e autonomia da esfera privada, normalmente alcançada às custas de outras mulheres por meio do pagamento, reproduzindo a imagem individualista e as estruturas econômicas idealizadas no patriarcado capitalista e na imagem do "homem econômico". Em outras palavras, a necessidade da corporificação humana é uma realidade de toda a humanidade, mas é desproporcionalmente suportada no corpo e na vida das mulheres (MELLOR, 1997, 2000; MORENO; NOBRE, 2020); são as mulheres que carregam o fardo de fazer a conexão entre os sistemas econômicos dominados por homens e a inserção e a corporificação humana no ecossistema (SALLEH, 1992, 2006).
Embora haja quem incorra no erro de chamar tal análise de essencialista, tal argumento não significa que as mulheres estão “naturalmente” mais afinadas com o mundo natural, mas que essa é a experiência material das mulheres em um mundo dominado por homens há milhares de anos, "pois diferente dos homens dominantes que afirmam estar acima da natureza (transcendência), as mulheres são vistas como mergulhadas no mundo natural do corpo (imanente)”. Em outras palavras, "as mulheres são essencializadas, naturalizadas e condenadas por sua associação com o corpo" (MELLOR, 2000, p. 110-111) e essa relação é expressa no fato que, diferente dos homens, não é só o trabalho das mulheres que é apropriado, mas seu corpo, sua sexualidade e até mesmo suas habilidades emocionais. Para aqueles que possam entender tal afirmação como determinismo biológico, basta dizer que:
O que existe é a realidade biológica da personificação da humanidade. Esta é a base material da vida humana que Marx identificou; a humanidade faz parte da natureza e a natureza faz parte da humanidade. A biologia não determina o desenvolvimento humano, mas a humanidade também não pode transcender sua própria estrutura biológica e ecológica. Mulheres e homens são naturais e socialmente construídos; é impossível separar os dois. Um debate essencialista sobre as diferenças fundamentais entre homens e mulheres é redesenhado de maneira mais útil em termos de uma análise materialista do envolvimento da humanidade com sua própria corporificação e sua natureza generificada. (MELLOR, 1997a, p. 136).
Para as ecofeministas, “a consciência humana desenvolve-se de forma dialética através da interação corporal sensual com o ambiente natural” de forma que a dispensa ao ecofeminismo tendo como base seu suposto essencialismo mais parece “uma expressão de elitismo em nome da ‘pureza’ intelectual.” (GODFREY, 2006). Ademais, as mulheres não são as únicas fazendo o trabalho de mediação; trabalhadores de subsistência, cuidadores, trabalhadoras domésticas podem ser citadas como alguns dos grupos por meio dos quais a maior parte dos homens e algumas mulheres garantem a própria mediação com sua própria natureza e com a natureza externa. Transcender a realidade imanente da existência humana só pode acontecer por meio da mediação e para que alguns possam viver como se não houvesse limites, esses limites precisam ser suportados por outros, como as mulheres e a própria Terra.
Até a próxima,
Marina Colerato