elus/delus perderam as eleições
sobre a guinada política global à direita e respostas à esquerda
Na última semana, li uma quantidade significativa de análises sobre o por quê Donald Trump ganhou as eleições de lavada e, algumas, achei válido trazer para vocês. Não foi uma mera diferença, foi um verdadeiro massacre. Para quem está aqui no Substack e faz um scroll do notes de vez em quando, o roteiro era previsto e a reviravolta estava evidente, embora eu sinceramente não achasse que seria tão feio. Estados que, em 2020, elegeram democratas, quatro anos depois mudaram completamente seu voto.
Bem, talvez nem tão completamente. Há uma série de bons argumentos sobre Kamala Harris e Donald Trump serem duas faces de uma mesma moeda - ambos representam o imperialismo norte-americano com todas as suas garras. Não faz diferença se estamos falando de uma mulher negra ou de um homem branco neste caso porque eles estão afundados no establishment até o topo e comprometidos - cada um à sua maneira - com as elites econômicas e culturais que visam controlar o planeta terra - dos recursos naturais às nossas postagens nas redes sociais. Os jornalistas Jonathan Cook e Chris Hedges tocaram um pouco na questão.
Inclusive, parece que a retórica vazia de Harris sobre democracia foi um dos seus pontos fracos - afinal, de qual democracia ela está falando? Aquela que ignora que a maior parte dos próprios eleitores não apoia suas políticas - como o envio de armas para Israel e homens em espaços femininos como presídios e esportes? Aquela que, por meio da coerção, obrigou as pessoas não convencidas a tomarem vacinas que elas não queriam? Aquela que está perseguindo os considerados erráticos e hereges com processos e prisões? A democracia não está funcionando, sob governos liberais ou progressistas, e muita gente já percebeu.
Outra jornalista errática, a Ana Kasparian, falou muito bem sobre a necessidade de compreender as motivações reais dos diferentes perfis de eleitores de Trump para além do espantalho e coloca na conta da mídia uma cota significativa da responsabilidade pela forma como a narrativa em torno de figuras como Trump tem sido construída de maneira a impactar negativamente na política.
A crítica é um pouco parecida com a do Chris Hedges sobre a insistência em reduzir a crise econômica, política e social na figura de Trump (ou qualquer outro político populista, de qualquer partido político). Mas a mídia liberal e progressista não está sozinha nessa. A esquerda “radical” também é rápida em dizer que os eleitores de Trump são fascistas e que Trump é fascista e que vivemos a nova era do fascismo e que com fascista não se dialoga, se espanca e blah blah blah. Talvez seja uma ótima maneira de vender livros sobre fascismo, mas está longe de dar conta da realidade (e converter votos, se este é o objetivo). Parece que, como bons seres humanos que somos, amamos um drama e uma boa dose de histeria.
Obviamente, eu não teria votado no Trump (eu teria ficado em casa), mas, quando olhamos a partir de diversos pontos de vista, é possível compreender porque milhões de pessoas (muitas das quais eu tenho certeza que não são “fascistas”) o fizeram, basta deixar a arrogância prevalecente na nossa bolha de lado e não ignorarmos a realidade - algo que, infelizmente, ninguém tem feito melhor do que a esquerda e os liberais norte-americanos. Dessa forma, também não precisamos gastar horas em debates acadêmicos exaustivos e ensimesmados sobre a extrema direita para compreender porque o Brasil provavelmente enfrentará um cenário parecido com o norte-americano nas próximas eleições.
Em 2020, eu não podia entender o que se passava na cabeça das pessoas apoiando figuras um tanto execráveis como Trump e Bolsonaro. Hoje eu entendo um pouco melhor, afinal, de lá pra cá, precisei lidar, por exemplo, com o fato de que, além dos terraplanistas, existem os sexoplanistas. Ou seja, a verdade é que há um tanto de insanidade sendo levada adiante e abundam as gentes execráveis do “nosso” lado da cerca, cuja prática moral está bem distante do discurso; nada qualitativamente diferente do virtuosismo e da hipocrisia dos “homens de bem” e do lunatismo dos “negacionistas científicos” para os quais tanto se gosta de apontar.
Aqui eu cheguei em uma questão importante para a guinada rumo à Trump: as políticas de auto-identificação de gênero e como, nos EUA, o negócio se tornou incontornável após todos os escândalos envolvendo a questão, sobretudo a transição de crianças. Mexer com as crianças dos outros pode significar comprar uma briga enorme, sobretudo quando mais e mais acompanhamentos de longo prazo mostram arrependimento e danos irreversíveis. Defender homens nos esportes femininos também tem se revelado um tiro no pé. A política foi tão repudiada que alguns Democratas estão considerando que sustentar essa defesa é completamente contraproducente em termos políticos. Algo que os Trabalhistas ingleses perceberam antes de correr o risco de perder as eleições.
A questão se tornou mais importante do que o aborto legal, sobretudo porque muitas mulheres não viram qualquer chance de Harris de fato reverter o cenário e conseguir reestabelecer a legalização. Assim como “a proteção da democracia”, essa foi recebida como uma promessa vazia. Outros trouxeram à tona que os Democratas tiveram anos para inscrever o direito na Constituição antes de um presidente antiaborto chegar ao poder, mas nunca o fizeram. Na verdade, eles estão no poder e poderiam fazer algo a respeito agora. Mas o argumento de que os Democratas nunca irá codificar o aborto para ter sempre um trunfo nas campanhas eleitorais parece o que faz mais sentido. Além disso, a maior parte das eleitoras está acima dos seus 39 anos e a Gen Z está transando menos que a Inglaterra medieval, ou seja, o aborto não é uma questão real e imediata para a maior parte da população feminina nos EUA.
Por último, mas não menos importante, direto dos piores pesadelos dos supostos amantes da democracia, a mídia de direita e a desinformação (eu até consigo ouvir a trilha sonora de horror gore soar toda vez que leio estas palavras juntas). Alguns argumentam que a vitória da direita está completamente atrelada à mídia de direita e portanto, ao seu viés. Eu concordo que a mídia de direita tem uma parcela importante de responsabilidade na guinada à direita onde ela está presente. Assim como acredito que a vitória da direita está também atrelada ao fracasso da mídia liberal, progressista e independente, seus vieses, sua realidade paralela e suas posturas abertamente militantes, cada uma a seu modo, o que afeta a credibilidade do jornalismo que produzem. Todo mundo está espalhando a “informação” sob o viés que quer, alguns mentindo deliberadamente, inclusive mantendo mentiras online mesmo depois delas serem desmentidas ou garantindo que determinadas coisas jamais venham à tona.
Eu não sei os dados dos EUA, e me chama atenção que um jornalista faça um texto sobre a suposta super audiência da mídia de direita sem trazer um número sequer. Mas no Brasil, eu descobri que enquanto a mídia de direita tem um amplo alcance, a liberal também tem. Me surpreendeu que até mesmo a mídia progressista consegue entrar na competição, o que eu considero significativo e suficiente para sustentar o argumento de que o papel da mídia de direita não pode explicar sozinho a guinada à direita. Em termos de audiência, o The Intercept está no top 10 de sites mais acessados junto com veículos como Revista Oeste e o Antagonista (que disputam o top 3). Abaixo, mas ainda com considerável audiência, estão o Brasil de Fato e o Brasil 247. Em termos de veículos locais, a disseminação destes só aumenta, sobretudo por meio de TVs e rádios comunitárias. A TV Globo não é mais o principal meio de se manter informado e mais e mais pessoas estão dispersando sua atenção nas redes sociais.
Pessoas de todos os espectros políticos estão somando no fenômeno de evasão de notícias e a confiança na imprensa segue em queda - algo que começou antes e se estende para depois do mandato do Bolsonaro. A crise no jornalismo é global e, cada vez mais, os veículos estão atrelados aos seus financiadores de forma a comprometer a credibilidade do conteúdo que produzem - sejam eles conservadores ou progressistas. A saída para esta encruzilhada ainda não foi encontrada e, enquanto insistirmos na “benevolência” dos bilionários liberais e no “brilhantismo” das elites jornalísticas, ela não será.
Então, o que vem depois? Compartilho de algumas conclusões de outras pessoas à esquerda que me parecem razoáveis, feitas após as nossas eleições municipais, das quais os que tentam se passar por centristas saíram vitoriosos.
Primeiro, retomar algum horizonte político. Insistir, ano após ano, na ideia do menos pior é completamente desmotivador - talvez por isso o número de pessoas que não compareceu nas votações ou anularam o voto foi significativo.
Para as mulheres, escolher entre um projeto de aniquilação dos seus direitos pela via da esquerda porque ela é menos pior do que o projeto de aniquilação dos direitos das mulheres pela via da direita é simplesmente uma insanidade. Ser de esquerda, para as mulheres, é minimamente exigir que a esquerda saia do transe, o que só vai acontecer conforme ela for perdendo e perdendo e perdendo cada vez mais apoio político. Se posicionar contra o projeto transumanista de colonização dos corpos e da reprodução humana é uma grande coisa e equivale à resistência anterior a tratados de recolonização da era neoliberal.
Segundo, reconhecer que, seja qual for a estratégia contra a guinada à direita (se é que, de fato, há alguma), ela não está funcionando e não vai funcionar se não conseguir dialogar com um público mais amplo; algo que parece preocupar a poucos já que a “pureza” moral e a fidelidade aos dogmas progressistas estão impedindo qualquer tipo de diálogo com qualquer um que demonstre a mínima desconfiança na palavra dos grandes mestres - os políticos de estimação e os militantes profissionais.
Terceiro, olhar para o chamado “identitarismo” de forma séria, sem lançar a palavra deliberadamente para se referir às lutas de classe que não cabem no marxismo ortodoxo, e parar de equalizar transgressão com transformação, menos ainda com revolução. Isso sem minimizar o impacto dessa ideologia, sobretudo para mulheres e crianças, e reconhecendo que ela é completamente reacionária e anti-feminista, não se tratando de mero “pânico moral” ou “conservadorismo de esquerda”. A Isabela Callegari falou muito bem sobre isso em uma live recente no Instagram.
Estou muito próxima do limite do tamanho do e-mail então me despeço deixando os comentários abertos para quem quiser compartilhar mais leituras e reflexões coerentes sobre a guinada à direita e o fracasso da esquerda.
Até a próxima,
Marina Colerato
Ótima análise eu tava mesmo com essa impressão que o abordo não tava dando tração. Me pergunto quanto tempo ainda vai demorar pra ficha cair, para as análises políticas aqui no BR entenderem as pautas do transativismo vão de encontro com os interesses das mulheres, que não são pautas convergentes. Eu vejo as análises aqui ainda colocarem isso na dicotomica "pauta de costumes" ou como pauta de "diversidade de gênero", como se as mulheres daí fossem aderir essas pautas automativamente. Eles não percem o raxa que isso gerou, as categorias de análise dicotômicas "conservadores nos costumes" vs progressistas não tão dando conta de interpretar o fenômeno. Ficam nessa de "pânico moral", "diversidade de gênero", formando um ponto cego enorme, quando que vão entender as nuances e sair do chavão? Eu morei nos EUA 3 anos, (até o meio desse ano), e passei acompanhar muitas mulheres lá nas redes, vi vários relatos no sentido dela estarem se sentindo "homeless" politicamente, era uma questão. Meu ponto é quem quisesse ter feito uma apuração decscente teria conseguido ao menos identificar esse fenômeno e começar a ver que algo de errado não tava certo.
Muito boa análise. Obrigada por elucidar tantas coisas confusas e distópicas