master of puppets: a filantropia liberal e os movimentos sociais
algumas reflexões acerca de dinheiro, poder, prestígio, esquerda e o jornalismo independente
A track de hoje faz parte de uma pesquisa em andamento sobre filantropia liberal e filantro-jornalismo, por isso parte do conteúdo é exclusivo para quem apoia o lado b. Como estamos falando de um tema pouco pesquisado e debatido, compartilhar o andamento da pesquisa é uma forma de ouvir feedback com dúvidas e pontuações por parte da minha comunidade de leitoras e leitores que acompanham os debates por aqui com mais assiduidade. Se você não apoia o lado b, mas quer começar a apoiar, é só clicar no botão abaixo. Lembrando que os comentários ficam visíveis apenas para quem apoia, então sinta-se à vontade para engajar.
Comecei a refletir criticamente sobre a filantropia bilionária e as fundações liberais há uns três anos até chegar no meu estágio atual de completa obsessão com o tema. Como alguém de dentro, eu comecei a notar algumas coisas e questões começaram a surgir para mim. A primeira e mais óbvia delas é: por que estes sujeitos estão distribuindo dinheiro para determinadas organizações e grupos? Seria sobre equilibrar o carma? Mas gente podre de rica não é muito preocupada com equilibrar carma e há uma série de incentivos fiscais capazes de justificar doações milionárias. No entanto, se fosse apenas sobre ficar mais rico por meio de evasão fiscal, não haveria necessidade das organizações beneficiadoras demonstrarem resultados e provarem impacto, sobretudo em termos de políticas públicas. A partir daí, não foi difícil puxar o fio e levantar várias outras perguntas:
Por que alguns temas/agendas/organizações são financiados e outros não?
O que acontece com os temas/agendas/organizações que não são financiados? Eles têm alguma chance de prosperar?
Quando algumas organizações da sociedade civil têm mais poder que outras de fazer lobby (chame de advocacy se quiser) por causa do dinheiro que recebem da filantropia bilionária, isso não fere alguns princípios básicos sobre o que entendemos acerca da democracia?
Quando se trata do financiamento para organizações de jornalismo e pesquisa, quais as consequências para o debate público e para a própria credibilidade da imprensa e da pesquisa?
A filantropia bilionária é realmente a melhor saída para a crise financeira e o encurtamento de verbas que atinge o jornalismo e a pesquisa científica?
Por vivência, descobri que a filantropia privada é um grande negócio, envolto em uma aura de prestígio, poder e benevolência. Somado a outros fatores, isso ajuda proteger o ecossistema da filantropia da crítica e os beneficiados da autocrítica. Em geral, pessoas e organizações que se beneficiam dos recursos e dos privilégios vão dispensar toda e qualquer crítica dizendo que estão fazendo algo bom com o dinheiro e, portanto, os fins justificam os meios. Eu costumava concordar, mas hoje tenho minhas muitas dúvidas.
Por pesquisa, descobri que há alguns nomes muito mais relevantes que outros em termos de doações globais, e que decisões não são tomadas sem que os interesses das fundações liberais sejam considerados. Como apontou a pesquisadora Lisa McGoey, que tem se dedicado a compreender o filantrocapitalismo no geral e a influência da Bill e Melinda Gates Foundation em particular, não há uma decisão importante da Organização Mundial da Saúde que seja tomada sem a presença de algum funcionário da fundação (McGoey et al., 2018). Funcionários das fundações liberais estão nos governos, nas empresas e nas agências da ONU. Basicamente, em todos os lugares. Eu não esqueço do quão estranho me soou o diretor da Open Society no Brasil, o Pedro Abramovay, estar entre os nomes escolhidos para a transição do governo Lula em 2022.
Uma fundação é uma grande quantidade de dinheiro completamente cercada por pessoas que querem um pouco.
Dwight MacDonald
Também descobri que há uma miríade de sujeitos beneficiados ao longo dos últimos 20 anos no Brasil - da Central Única dos Trabalhadores (CUT) à editora Boitempo, passando por universidades públicas, escritórios da ONU, dezenas de organizações da sociedade civil de norte a sul do país e basicamente todas as organizações de jornalismo independente. Se parece um contrassenso que a embaixada dos EUA financie um programa para promoção da ideologia transgênero na CUT, imagine só essa mesma CUT recebendo dinheiro - para o que quer que seja - da Ford Foundation! Todos nós sabemos que não existe tal coisa como almoço grátis, então cada “doação” tem seu “preço”. A questão é: qual?
Essa teia um tanto esquisita de financiadores e beneficiários levantou novas questões para mim, como: quais as consequências da onipresença e onisciência das fundações liberais do Norte global por meio de uma imensa rede de beneficiários no Sul? Existe qualquer possibilidade de colocar um freio no poder dos muito ricos e, ainda assim, ter centenas de organizações e pesquisadores dependentes de suas doações? Pessoas e organizações que influenciam e elaboram políticas públicas estão sendo amplamente financiadas, por que? Quais são as consequências de longo prazo na organização social e na própria esquerda dessa rede de poder, influência e dinheiro?
As fundações liberais e o declínio da Nova Esquerda
O termo filantrocapitalismo (também conhecido como filantropia capitalista ou filantropia bilionária) apareceu pela primeira vez no The Ecofeminist em 2006 e pode ser compreendido como a influência crescente de atores do setor privado no endereçamento de desafios sociais e ambientais. Os filantrocapitalistas visam promover as forças de mercado e estratégias dos negócios nas atividades filantrópicas, assim como na análise dos resultados destas atividades. A Bill e Melinda Gates, fundada em 1991, representa a quintessência do filantrocapitalismo.
Mas o filantrocapitalismo é a versão atualizada, neoliberal eu diria, da filantropia dos muitos ricos. É uma nova forma de mensurar resultados e racionalizar os investimentos, visando otimizar o dispêndio de recursos por meio de uma lógica um tanto tecnicista. A racionalidade neoliberal, para citar Foucault. Porém, o advento do filantrocapitalismo não muda a essência da filantropia da elite, que há décadas, por meio de suas fundações, está financiando a agenda de justiça social para alcançar objetivos bastante específicos (liberais, no sentido americano do termo, e capitalistas per se).
A trajetória da filantropia liberal nos movimentos sociais começa em 1949, mas é na efervescência dos movimentos sociais de 1968 que as coisas tomam a forma que conhecemos hoje e as fundações liberais passam a investir nas mudanças sociais necessárias para, ao mesmo tempo, acalmar os ânimos, não agitar as massas e garantir os lucros. Joan Roelofs, em um artigo de 1987 para a Insurgent Sociologist, argumenta que um aspecto importante do declínio da chamada Nova Esquerda nos anos 1970 foi sua transformação, via doações e assistência técnica das fundações liberais, em organizações fragmentadas e locais sujeitas a várias instâncias ao controle da elite. Embora Roelofs esteja olhando para os EUA, a influência das fundações liberais passará exponencialmente a ser global.
Há uma série de esclarecimentos no artigo de Roelofs e vamos mergulhar neles aqui. O primeiro - e um muito importante - é que as fundações liberais - Ford, Open Society, Oak, Luminate, etc - não atuam de forma atomizada. Na verdade, elas formam um grupo de elite interligado responsável por moldar o ecossistema das doações e do próprio terceiro setor. Elas são poderosas sozinhas, mas são muito mais poderosas juntas. Elas operam sob a mesma lógica, financiam os mesmos grupos e influenciam o sistema das doações públicas e corporativas. Elas também se juntam em projetos específicos para empurrar determinadas agendas. Um exemplo contemporâneo é o Global Philantropy Project, no qual várias fundações liberais se uniram para enfiar a agenda LGBTQIA+ nos movimentos sociais e nas políticas do Sul global. Um tanto decolonial, não?
É difícil duvidar que essa rede interligada de fundações liberais (assim como as conservadoras) agem de acordo com os interesses do mundo corporativo, afinal, elas “se originaram na riqueza de barões ladrões e capitalistas de uma era mais recente que encontraram vantagens fiscais, de relações públicas, de redução de culpa e de política pública no exercício da filantropia” (p. 33). A estratégia central das fundações liberais foi se antecipar em entender os problemas sociais para propor suas próprias soluções. Roelofs vai argumentar - e eu tendo a concordar - que os milhares de dólares em bolsas de estudo acadêmicas moldaram grande parte do conhecimento da ciência social moderna, e serviram amplamente para projetar a ideologia do pluralismo, que reforçou a diferença entre os grupos sociais e acabou por fragmentar completamente a Nova Esquerda.
Embora as fundações liberais contrastem com o conservadorismo das suas colegas à direita, é difícil assumir que estas são grandes adeptas da democracia. Os milhões de dólares gastos para inflar determinadas causas, ideias e grupos - e não outros - são, eles mesmos, uma bela forma de distorção do funcionamento democrático. Além disso, o financiamento direto é uma forma do dinheiro escapar do escrutínio público e das lupas da burocracia estatal. São milhões de dólares despendidos em uma forma de ativismo que pode ser controlado e, acima de tudo, desradicalizado, pela própria elite. O financiamento por projeto garante instabilidade e dependência, enquanto permite às fundações financiarem projetos mais moderados mesmo dentro de organizações mais radicais, direcionando a energia dos grupos de acordo com seus próprios interesses. Aqui, master of puppets, o título dessa newsletter e do clássico do Metallica, se justifica.
Por sua vez, o financiamento a uma miríade de organizações sobrepostas e concorrentes garante que o pluralismo projetado enquanto ideologia se materialize na prática: “organizações diversas enfatizam as diferenças entre os grupos desfavorecidos e ajudam a impedir a formação de uma ampla esquerda que reconheça interesses em comum” (p. 37). Muitas vezes, as fundações liberais criam suas próprias organizações, aparentemente “de base”, o que colabora para somar na confusão e na fragmentação.
Se ainda não está óbvio o porquê das fundações liberais financiarem organizações e lideranças sociais, Roelofs resume em quatro convincentes pontos:
Os desavantajados podem se organizar de qualquer forma, e acabar por privar a elite de exercer influência em suas organizações;
Teóricos da elite reconhecem que a falta de participação política de determinados grupos pode ter um efeito desestabilizador no capitalismo. Portanto, o objetivo é apoiar formas de ativismo e participação política que não desafiem fundamentalmente a estrutura de poder;
As lideranças desses grupos - potenciais problemas para a elite - têm posição, prestígio, salários e dinheiro. Ao serem financiados, são cooptados pela burocracia governamental e da elite para servir em forças-tarefas de prestígio (alguém ouviu viagens pagas para encontros da ONU, para a COP ou para o Fórum Econômico Mundial?). Ademais, e muito importante, seu tempo e energia devem ser dedicados ao levantamento de recursos e prestação de contas. Consciente ou inconscientemente, os sujeitos moldam suas organizações para agradar aos financiadores (e garantir o próximo grant);
Financiadores da elite veem organizações como recipientes de contenção. Em 1969, McGeorge Bundy, presidente da Ford Foundation, compareceu a uma audiência do Congresso dos EUA sobre fundações e foi questionado sobre o motivo pelo qual a Ford apoiava organizações radicais. Ele respondeu:
“[E]sta aqui uma proposição muito importante de que para instituições e organizações que são jovens e que não estão totalmente moldadas quanto à sua direção, isso pode fazer uma grande diferença quanto ao grau e maneira em que se desenvolvem se, quando têm uma proposta responsável e construtiva, conseguem encontrar suporte para ela”.
Para os ideólogos da elite, “tire toda a retórica”, o que essas pessoas querem é uma parte dos direitos e do prestígio que o sistema pode lhes oferecer. Dê isso a elas e parte da insurgência radical estará totalmente contida. É por isso que as fundações liberais também apoiam lideranças políticas - inclusive nos países do Sul global - com viagens, formações políticas e bolsas de estudo. Elas também constroem figuras com ascensão meteórica na política.
As razões, no entanto, não param por aí. As isenções fiscais criam dinheiro “grátis” que pode ser usado da forma que as fundações desejarem em atividades diretamente sem fins lucrativos. Muitas dessas atividades podem, indiretamente, promover suas atividades com fins lucrativos. É o caso inequívoco do que faz a Bill e Melinda Gates Foundation na área da saúde.
Com o poder do financiamento, também vem o controle do conteúdo. Isso fica muito óbvio na área do filantrojornalismo e na histeria ao entorno do “combate à desinformação”. Nesse quesito, é um tanto assustador perceber que as fundações estão conseguindo moldar o que é fato e o que é fake por meio de uma complexa rede de financiamento e influência. Nós estamos falando aqui de gente muito grande e muito poderosa, mobilizando acadêmicos, ONGs e a chamada “opinião pública” para literalmente construir narrativas e criminalizar a dissidência de formas que não são particularmente novas, mas que sem dúvidas levantam alguns cabelos da nunca. Nesse contexto, Elon Musk é só um bode expiatório errático com pouca disposição para colaborar.
Fato é que a coisa toda funciona, muito bem, obrigada. Não à toa, a maior parte das corporações estabeleceu suas fundações privadas ou padrões de doações semelhantes àqueles das fundações liberais “independentes” - e não há pontas soltas. Se antigamente a filantropia privada era ligada a relações públicas ou a necessidade de propaganda de uma indústria específica, atualmente as corporações estão colaborando com as fundações liberais e com os governos para salvar o capitalismo “no geral”. Em suma, todo mundo está comprando parte da ação, de muitas formas, ainda que isso envolva financiar organizações e sujeitos que, na superfície, contrariem os interesses do próprio sistema.
the biggest of the puppets: o jornalismo “independente” hiperfinanciado
Em 3 de maio de 2020, com apoio do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas e com financiamento do Google, trinta veículos digitais se uniram para criar a Associação de Jornalismo Digital (AJOR). Atualmente, a associação conta com mais de 100 membros, variando de grandes portais como Terra, a veículos nichados como o Farofafá, passando por organizações de jornalismo sem fins lucrativos especializadas como a Repórter Brasil, Agência Pública, O Joio e o Trigo, AzMina, Ponte, entre outros, além de nomes consolidados como a revista Piauí, que em 2021 passou a ser gerida pelo Instituto Artigo 220.
Recentemente, a Ajor articulou a criação e lançamento do Fundo de Apoio ao Jornalismo Brasileiro, cujo financiamento inicial de 2 milhões de dólares é proveniente de recursos doados pelas fundações International Fund for Public Interest Media (IFPIM), Ford Foundation, Oak Foundation, Luminate e Open Society Foundations (OSF), todas fundações liberais do Norte Global.
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