do saque das terras ao saque dos corpos
o colonialismo imperialista não tem limites || por Vandana Shiva
O texto abaixo é uma tradução de um trecho do prefácio atualizado do livro Oneness vs. the 1%: Shattering Illusions, Seeding Freedom [“A unidade versus o 1%: Rompendo ilusões, somando liberdade"] de Vandana Shiva. A autora adiciona uma camada ao debate sobre a colonização dos corpos-territórios por meio da guerra contra a vida que venho fazendo aqui com vocês há algum tempo.
No seu trabalho recente, Shiva vem destacando o papel da elite dominante que, por meio de suas corporações e de sua filantropia, cria problemas para nos vender as soluções - financiando determinadas narrativas em detrimento de outras. Esses caras estão em todos os espaços de tomada de decisão e, com tamanho poder acumulado, sua influência insidiosa no Estado, nos organismos multilaterais como a ONU, na mídia e no terceiro setor é difícil de mensurar.
Enquanto assistimos a guerra colonial do Império se desenrolar, utilizando a mesma cartilha falaciosa de sempre, nós devemos lembrar que não existe paz em um sistema que depende do saque, do roubo e da pilhagem para continuar funcionando. Como Rosa Luxemburgo bem analisou, o capitalismo existe por causa do colonialismo e não apesar dele. Enquanto houver patriarcado capitalista, haverá guerra.
Como disse Shiva: ”Estamos diante de um precipício de extinção. Vamos permitir que nossa humanidade — como seres vivos, conscientes, inteligentes e autônomos — seja extinta por uma máquina de ganância que não conhece limites e não consegue parar sua colonização e destruição? Ou vamos deter a máquina e defender nossa humanidade, liberdade e autonomia para proteger a vida na Terra?”.
Para quem chegou agora, no final do texto tem dicas de leitura relacionadas para seguir com a reflexão.
A Agenda Global de Bill Gates e Como Podemos Resistir à Sua Guerra Contra a Vida
Não há “vida” no paradigma de saúde que Bill Gates e os seus promovem e impõem ao mundo inteiro.
Em março de 2015, Bill Gates mostrou uma imagem do coronavírus durante uma palestra no TED e disse ao público que era assim que se pareceria a maior catástrofe do nosso tempo.
A verdadeira ameaça à vida, afirmou, “não são os mísseis, mas os micróbios”. Quando a pandemia de coronavírus varreu o planeta como um tsunami cinco anos depois, ele retomou a linguagem de guerra, descrevendo a pandemia como “uma guerra mundial”.
“A pandemia do coronavírus coloca toda a humanidade contra o vírus”, disse ele.
Na realidade, a pandemia não foi uma guerra. A pandemia foi consequência da guerra. Uma guerra contra a vida. A mente mecânica, conectada à máquina de dinheiro extrativista, criou a ilusão de que os seres humanos são separados da natureza, e de que a natureza é uma matéria-prima morta e inerte a ser explorada.
Mas, na verdade, somos parte do bioma. E somos parte do viroma. O bioma e o viroma somos nós. Quando fazemos guerra contra a biodiversidade de nossas florestas, nossas lavouras e nossos intestinos, estamos fazendo guerra contra nós mesmos.
A emergência sanitária do coronavírus é inseparável da emergência sanitária da extinção, da perda de biodiversidade e da crise climática. Todas essas emergências têm raízes em uma visão de mundo mecanicista, militarista e antropocêntrica que considera os seres humanos como separados e superiores aos demais seres. Seres que podemos possuir, manipular e controlar.
Todas essas emergências são alimentadas por um modelo econômico baseado na ilusão do crescimento ilimitado e da ganância sem fim, que viola os limites planetários e destrói a integridade dos ecossistemas e das espécies.
Novas doenças surgem porque a agricultura globalizada, industrializada e ineficiente invade habitats, destrói ecossistemas e manipula animais, plantas e outros organismos sem respeito à sua integridade ou saúde. Estamos ligados globalmente pela disseminação de doenças como o coronavírus porque invadimos o lar de outras espécies, manipulamos plantas e animais por lucro e ganância, e cultivamos monoculturas.
Ao desmatar florestas, transformar lavouras em monoculturas industriais que produzem mercadorias tóxicas e nutricionalmente vazias, degradar nossas dietas com processamento industrial, químicos sintéticos e engenharia genética, e perpetuar a ilusão de que a Terra e a vida são matérias-primas para lucro, estamos, de fato, nos conectando. Mas, em vez de nos conectarmos por um contínuo de saúde, protegendo a biodiversidade, a integridade e a auto-organização de todos os seres vivos, inclusive humanos, estamos nos conectando por meio da doença.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, “1.6 bilhão de trabalhadores da economia informal (os mais vulneráveis do mercado de trabalho), de um total mundial de dois bilhões e uma força de trabalho global de 3.3 bilhões, sofreram danos massivos em sua capacidade de sustento. Isso devido às medidas de confinamento e/ou porque atuam nos setores mais afetados”.
De acordo com o Programa Mundial de Alimentos, um 250 milhões de pessoas serão levadas à fome e 300 mil poderão morrer todos os dias. Essas também são pandemias que estão matando pessoas. Matar não pode ser uma receita para salvar vidas.
Saúde diz respeito à vida e aos sistemas vivos. Não há “vida” no paradigma de saúde que Bill Gates e os seus estão promovendo e impondo ao mundo inteiro. Gates criou alianças globais para impor análises e prescrições de cima para baixo para os problemas de saúde. Ele dá dinheiro para definir os problemas e depois usa sua influência e dinheiro para impor as soluções. E, nesse processo, enriquece ainda mais.
Seu “financiamento” resulta na destruição da democracia e da biodiversidade, da natureza e da cultura. Sua “filantropia” não é apenas filantrocapitalismo. É filantroimperialismo.
A pandemia e os confinamentos do coronavírus revelaram ainda mais claramente como estamos sendo reduzidos a objetos a serem controlados, com nossos corpos e mentes como as novas colônias a serem invadidas. Impérios criam colônias, colônias cercam os bens comuns de comunidades indígenas vivas e os transformam em fontes de matéria-prima a serem extraídas para gerar lucros.
Essa lógica linear e extrativista é incapaz de ver as relações íntimas que sustentam a vida no mundo natural. Ela é cega à diversidade, aos ciclos de renovação, aos valores de partilha e doação, e ao poder e potencial da auto-organização e da mutualidade. É cega ao lixo que produz e à violência que desencadeia. O longo confinamento do coronavírus foi um experimento de laboratório para um futuro sem humanidade.
Em 26 de março de 2020, no auge da pandemia e em pleno confinamento, a Microsoft recebeu uma patente da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). A patente WO 060606 declara que “a Atividade Corporal Humana associada a uma tarefa fornecida a um usuário pode ser usada em um processo de mineração de um sistema de criptomoeda”.
A “atividade corporal” que a Microsoft quer minerar inclui radiação emitida pelo corpo humano, atividades cerebrais, fluxo de fluidos corporais, fluxo sanguíneo, atividade de órgãos, movimentos corporais como o dos olhos, do rosto e dos músculos, bem como qualquer outra atividade que possa ser detectada e representada por imagens, ondas, sinais, textos, números, graus ou qualquer outra informação ou dado.
A patente é uma reivindicação de propriedade intelectual sobre nossos corpos e mentes. No colonialismo, os colonizadores se atribuíam o direito de tomar terras e recursos dos povos indígenas, extinguir suas culturas e soberanias, e, em casos extremos, exterminá-los. A patente WO 060606 é uma declaração da Microsoft de que nossos corpos e mentes são suas novas colônias.
Somos minas de “matéria-prima” — os dados extraídos de nossos corpos. Em vez de seres soberanos, espirituais, conscientes e inteligentes, tomando decisões com sabedoria e valores éticos sobre os impactos de nossas ações no mundo natural e social do qual fazemos parte e com o qual estamos intrinsecamente ligados, somos “usuários”. Um “usuário” é um consumidor sem escolha no império digital.
Mas essa não é a totalidade da visão de Gates. Na verdade, é ainda mais sinistra — colonizar as mentes, corpos e espíritos das nossas crianças antes mesmo que elas possam entender o que são liberdade e soberania, começando pelas mais vulneráveis.
Em maio de 2020, o governador Andrew Cuomo, de Nova York, anunciou uma parceria com a Fundação Gates para “reinventar a educação”. Cuomo chamou Gates de visionário e argumentou que a pandemia criou “um momento na história em que podemos realmente incorporar e avançar as ideias dele… todos esses prédios, todas essas salas de aula físicas — por que com toda a tecnologia disponível?”
Na verdade, Gates vem tentando desmontar o sistema público de educação dos Estados Unidos há duas décadas. Para ele, estudantes são minas de dados. Por isso, os indicadores que promove são frequência escolar, matrícula em faculdades e notas em testes de matemática e leitura — pois são dados fáceis de quantificar e minerar. Na educação “reimaginada”, crianças serão monitoradas por sistemas de vigilância para verificar se estão atentas enquanto assistem aulas remotamente, sozinhas em casa.
A distopia é aquela em que crianças nunca mais voltam às escolas, não têm chance de brincar, não têm amizades. É um mundo sem sociedade, sem relações, sem amor e amizade.
Quando olho para o futuro em um mundo de Gates e barões da tecnologia, vejo uma humanidade ainda mais polarizada entre grandes massas de pessoas “descartáveis”, que não têm lugar no novo império. Os que forem incluídos serão pouco mais que escravos digitais.
Ou podemos resistir. Podemos semear outro futuro, aprofundar nossas democracias, recuperar os bens comuns, regenerar a Terra como membros vivos de uma Família Terra Una, ricos em diversidade e liberdade, unidos em nossa interconexão. É um futuro mais saudável. É um futuro pelo qual precisamos lutar. É um futuro que precisamos reivindicar.
Estamos diante de um precipício de extinção. Vamos permitir que nossa humanidade — como seres vivos, conscientes, inteligentes e autônomos — seja extinta por uma máquina de ganância que não conhece limites e não pode parar a colonização e destruição? Ou vamos deter a máquina e defender nossa humanidade, liberdade e autonomia para proteger a vida na Terra?
Para continuar a reflexão:
→ Podcast Feminismo é luta de classes!
→ Transgenerismo e a crise epocal do capitalismo
→ As guerras e os processos de acumulação primitiva
→ Master of puppets: a filantropia liberal e os movimentos sociais