No final do mês passado, o Talibã publicou suas Leis de Vício e Virtude, levando as mulheres afegãs de volta para 2001. Fico pensando nas jovens que nasceram depois de 2001, e que estão experimentando pela primeira vez tamanho cerceamento, violência e objetificação enquanto o mundo está vendo. Mas esse é um mundo dos homens, afinal, e nada é chocante quando se trata da desumanização de mulheres e meninas.
Originalmente publicado sob o título Life in a wearable tent: Afghan women time-travel back to the late 20th century, o texto abaixo reflete acerca da realidade nada romântica para as mulheres afegãs, sobretudo após o governo dos EUA fechar um acordo com o próprio Talibã e se retirar completamente do país há três anos. Se alguns analisam a saída dos EUA do Afeganistão como um tipo de vitória anti-imperialista, as mulheres provavelmente veem como a volta da era do horror.
A vida em uma tenda vestível: Mulheres afegãs viajando de volta para o fim do século XX
por
Talibã 2.0: Leis de vício e virtude, agosto de 2024
Mulheres não devem:
· Serem vistas
· Serem ouvidas
· Serem educadas
· Sairem sem escolta
· Terem um emprego
· Olharem para homens que não são parentes
· Escolherem não se casarem ou escolherem com quem se casam.
Punições: açoites; apedrejamento; estupro. E várias outras formas de violência legalmente sancionadas ou ignoradas.
Talibã 1.0: 1996-2001
Mulheres não devem:
· Serem vistas
· Serem ouvidas
· Serem educadas
· Sairem sem escolta
· Terem um emprego
· Olharem para homens que não são parentes
· Escolherem não se casarem ou escolherem com quem se casam.
Punições: açoites; apedrejamento; estupro. E várias outras formas de violência legalmente sancionadas ou ignoradas.
Identifique a diferença.
Anedota. No fim de março, 2000, eu estava em um avião da British Airways no Aeroporto Internacional de Islamabad, Paquistão, esperando o embarque terminar e o avião decolar rumo à Manchester. A atmosfera estava tensa, pois nossa partida coincidiu com a do então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. (Quanto ao Afeganistão, Clinton expressou mais preocupação pública naquela época com a destruição de estátuas budistas pelo Talibã do que com a destruição das vidas de mulheres e meninas afegãs.)
No mesmo avião estava embarcando um grupo bastante grande de familiares e amigos, todos de preto, com os homens usando barbas e as mulheres usando burcas. (Você já viu uma mulher de burca tentando comer em um avião? É muito trabalhoso. Uma mão está ocupada levantando levemente o véu, enquanto a outra leva a comida à boca por baixo dele, tomando cuidado para não acabar derrubando a comida no processo.) Como o grupo era grande e possivelmente organizou seus assentos um pouco tardiamente, os membros do grupo estavam espalhados em várias fileiras. Os patriarcas dentre eles continuavam andando pela cabine verificando o vestuário e o comportamento dos membros femininos. Eles ignoraram vários pedidos dos comissários de bordo para se sentarem enquanto o avião se preparava para a decolagem. No final, uma comissária de bordo simplesmente gritou para eles, como faria um professor primário para uma classe turbulenta: SENTEM-SE!!!!
Foi engraçado na época. Depois perguntamos a ela se era assim sempre. Ela respondeu afirmativamente com uma risada triste. Ela parecia um pouco aflita.
Bem-vindo a Um Dia na Vida. Mas isso era o Paquistão. Mesmo em seus piores excessos, o Paquistão é um piquenique no parque (embora talvez um que ocorra durante uma tempestade) comparado ao que é a vida para as mulheres no Afeganistão. Da logística de ser obrigada a viver em uma Tenda Vestível (elas são quentes — geralmente feitas de material sintético, incômodas, difíceis de enxergar através, difíceis de fazer coisas muito básicas enquanto estão usando, e assim por diante), à obliteração da personalidade de alguém por trás de muros de silêncio e vergonha, à constante ameaça ou realidade de violência física e sexual como punição por qualquer transgressão real ou imaginária, as mulheres afegãs estão vivendo na pior das prisões. Debaixo dos nossos olhos.
“Se mulheres realmente importassem…”
Esse foi o título do meu capítulo final na primeira antologia feminista internacional sobre o 11 de setembro e a "Guerra ao Terror" (não é tão fofo quando líderes políticos declaram guerra a conceitos?), coeditado por mim e
e publicado pela Spinifex Press em 2002, com uma edição norte-americana aparecendo no ano seguinte. O capítulo documentou minha curta, mas repleta de experiências, visita ao Afeganistão em junho de 2002, como parte de uma delegação francesa e estadunidense para a conferência de mulheres que aconteceu logo antes da Loya Jirga, que estabeleceu a administração transitória do Afeganistão após a guerra de 2001-2 declarada pelos EUA. Uma forte justificativa moral para essa guerra foi "libertar" as mulheres afegãs — as mesmas mulheres com as quais Clinton se importava tão pouco apenas alguns anos antes. Duvido que Bush Junior se importasse muito mais com elas. Mas cabia bem na imprensa. E, para minha surpresa, algumas mulheres afegãs na conferência estavam caminhando até as mulheres dos EUA e dizendo "obrigada". Obrigada por nos bombardear. Obrigada por acabar com o governo do Talibã. Agora, ajudem-nos. Por favor, ajudem-nos.No Afeganistão, como em outros lugares, até mesmo as políticas feministas eram complicadas. Nossa conferência foi organizada pela associação Negar, embora minhas afinidades pessoais provavelmente estivessem um pouco mais com a RAWA (Associação Revolucionária de Mulheres do Afeganistão) e publicamos declarações produzidas pela RAWA no livro. Mas quando alguém vem de fora do quadro, como eu, busca dialogar com todas as pessoas para tentar dar sentido ao que está acontecendo. Fala com todas as mulheres que estão lutando pela vida das mulheres.
Francamente, caras leitoras, eu não conseguia dar muito sentido ao que estava acontecendo com as mulheres. Elas estavam lutando tantas batalhas complicadas naquela época:
as mulheres que foram sequestradas e estupradas pelo Talibã que agora carregam a vergonha da violência perpetrada contra elas (nós sabemos sobre essa, não sabemos?);
as mulheres que estavam tentando cuidar de familiares que eram agricultores de ópio e se tornaram viciados em ópio. (Na época, o Afeganistão era o principal fornecedor de ópio, e longe de impedir o comércio, os talibãs lucraram com ele. Mianmar, outro país devastado pela militarização e regimes autoritários, pegou a posição do Afeganistão como principal fornecedor de ópio em 2023);
as mulheres que foram deixadas como arrimo de família, mas não podiam ler nem escrever, tampouco tinham “habilidades de trabalho” porque foram proibidas de desenvolverem alguma;
as mulheres que, como todas as mulheres em tempos de guerra - e no “pós-guerra” que pode durar décadas - tentando curar os feridos, os doentes e os traumatizados, tentando dar esperança às suas crianças, tentando remendar o tecido social de seu país juntas.
E na Loya Jirga, os senhores da guerra e outros estavam disputando posições, mas concordando com os fundamentos: um caminho a seguir baseado na xaria1. As mulheres ainda precisavam ser controladas, mas talvez o punho de ferro pudesse usar uma luva de veludo dali em diante.
Você sabe o que estava sendo reconstruído mais rapidamente após o 11 de setembro no Afeganistão? Estações de petróleo e mesquitas. Pelo menos foi isso que vi surgindo por toda a paisagem enquanto casas, hotéis, empresas e ruas jaziam em ruínas. Minha impressão pode não refletir a realidade, mas foi impressionante, e eu não fui a única mulher em nossa delegação a ter observado isso.
Ainda assim, houve mudanças significativas. Outra lembrança impressionante é a alegria de meninas indo às tendas escolares da UNHCR. Elas não tinham cadernos: elas aprendiam as coisas pelo coração. Mas elas sorriam. Muito. Mulheres começaram a frequentar universidades, ter empregos, concorrer a cargos políticos. Elas descobriram seus rostos senão suas cabeças. Elas foram permitidas ter um pouco de ar fresco. Existia esperança.
Então os EUA decidiu que não era mais interessante permanecer no Afeganistão. Então ele fez um acordo. Com o Talibã, que já vinha se reagrupando há algum tempo, à medida que a presença ocidental diminuía lentamente. Resultado: as mulheres afegãs foram lançadas em uma distorção temporal, e não do tipo Rocky Horror. Apenas do tipo horror.
Minha conclusão em 2002 foi que mulheres não importam. Importamos apenas quando é interessante para os nossos governantes fazerem concessões. A igualdade entre os sexos e “empoderamento” das mulheres têm sido frequentemente mobilizados a serviço de construir a nação. Foi o caso na França da Terceira República, foi o caso na Turquia de Kemal Atatürk — dois exemplos que muitas, inclusive eu, citaram. Mais frequentemente, no entanto, a subjugação das mulheres tem sido um instrumento-chave na subjugação de um povo.
As perguntas permanecem as mesmas: quem é prejudicado, quem se beneficia e quem se importa.
Quem se importa.
Leia mais:
→ My role and story as a woman activist from a country where it’s a crime to be a woman (WDI Afeganistão, 2024);
→ Increasingly repressive Taliban rules push girls and women to extremes as despair rises (Rukhshana Media, 2024);
→ Shutting Afghan women out of key UN conference to appease Taliban ‘a betrayal’ (The Guardian, 2024).
A Xaria é o sistema jurídico do Islã. É um conjunto de normas derivado de orientações do Corão, falas e condutas do profeta Maomé e jurisprudência das fatwas - pronunciamentos legais de estudiosos do Islã. Em uma tradução literal, Xaria significa "o caminho claro para a água".