O que a queda de Assad significa para Rojava e a Revolução das Mulheres?
por Kongra Star
Em 2011, os ventos da Primavera Árabe sopraram na Síria, e protestos contra o regime do Partido Baath, liderado por Assad deu origem a uma guerra civil que continua até o dia de hoje sob a influência de um grande variedade de forças políticas.
Na região Nordeste da Síria, também conhecida como como Rojava (que significa Curdistão Ocidental em curdo), o governo Sírio em grande medida abandonou a região após os levantes de 2012. A maior parte da população curda na região tomou a iniciativa e começou a estabelecer a auto-administração na base de comunas e conselhos e empoderamento das mulheres. Desde o começo da revolução, as mulheres se organizaram de forma independente, criaram suas próprias comunas e conselhos, participaram em todas as decisões políticas, e implementar um sistema de co-presidência e cotas para mulheres em todas as instituições, assim como leis de mulheres e família. Uma revolução das mulheres começou em Rojava.
Como consequência da divisão do Oriente Médio após a Primeira Guerra Mundial e o estabelecimento forçado de estados-nação na região pelos poderes hegemônicos coloniais, a Síria emerge como um estado no qual uma grande variedade de etnias e comunidades religiosas, tais como sunitas, xiitas, alauitas, drusos, curdos, árabes, cristãos assírios, yazidis, armênios e turcomenos foram forçados a se unir sob o governo centralizado.
Até a revolução, uma grande parte da população curda no Nordeste da Síria vivia sem cidadania síria e direitos políticos e culturais.
A língua, cultura e as estruturas civis e políticas foram suprimidas. O regime sírio repetidamente agiu de forma violenta contra ativistas e população curda. Com a Revolução de Rojava e o estabelecimento da Administração Autônoma Democrática do Norte e Oeste da Síria (DAANES), a região se tornou grandemente independente do regime sírio. Tanto as necessidades básicas cotidianas quanto a defesa da região foram organizadas pelo próprio povo, por exemplo, contra os grupos Islamistas-jihadistas emergentes como o Jabhat el-Nusra (Al-Qaeda na Síria), o Exército Nacional Sírio (SNA) apoiado pela Turquia e, a partir de 2014, especialmente contra o Estado Islâmico.
Todos estes grupos atacaram especificamente a DAANES e a idea de um sistema social no qual todas as comunidades vivendo na região podem se organizar de forma autodeterminada e federal. Eles também atacaram as conquistas da revolução das mulheres, que foram defendidas com grande sacrifício pelas forças de defesa femininas do YPJ e pelas lutas sociais e políticas do movimento de mulheres Kongra Star.
Embora tenha sido possível criar estruturas sociais estáveis baseadas em princípios democráticos e na liberdade das mulheres numa região marcada pela guerra, a administração autônoma ainda não é reconhecida internacionalmente.
Como parte da política neo-colonial no Oriente Médio, várias forças internacionais têm sido ativas na Síria desde a revolução, incluindo a Rússia, o Irã, os Estados Unidos, Israel e outros estados membros da OTAN, acima de todos a Turquia. Em linha com os seus próprios interesses geopolíticos e econômicos, ela influencia várias forças regionais e trava uma guerra por procuração pelo poder e pelos recursos. Uma guerra de divisão está ocorrendo atualmente em todo o Oriente Médio. As fronteiras desenhadas há cem anos estão sendo redefinidas. Os ataques coordenados em Aleppo, Hama, Damasco e Homs, que começaram em 27 de novembro, e a queda do governo de Assad após 15 anos de guerra civil, devem ser vistos neste contexto.
Para as mulheres e todas as pessoas, incluindo os curdos, a queda do regime Assad, que ignorava a diversidade social e suas necessidades, subjugando-as com os métodos mais cruéis, é um desenvolvimento importante. A situação atual abriu portar para um novo processo na Síria e na região como um todo. A forma como este caminho será seguido a partir de agora será essencial quando se trata de criar condições de vida iguais e democráticas para todos. Mais do que nunca, é claro que o objetivo só pode ser uma Síria democrática na qual todas as diferentes comunidades possam viver juntas com base na democracia, na paz e na igualdade.
Hayat Tahir al-Sham atualmente assumiu as estruturas governamentais em Damasco. Até que ponto um grupo que surgiu originalmente do Jabhat el-Nusra e do Estado Islâmico e é conhecido por métodos brutais semelhantes contra o povo, especialmente mulheres, estará pronto para este processo descobriremos em um futuro próximo.
O que é certo é que enquanto as mulheres estejam excluídas desse processo, enquanto a mentalidade patriarcal continue sendo simplesmente sobre quem ganha mais poder e território, o caminho não levará a uma Síria democrática, mas exacerbará a guerra civil.
O que é particularmente preocupante é que o estado turco e os grupos que ele apoia, como o Exército Nacional Síria (SNA) e as gangues do Estado Islâmico, intensificaram seus ataques e agressões terroristas na DAANES após a queda do regime. Em Tel Rifat, Shahba, Manbij e Kobane, milhares de pessoas foram deslocadas à força e mulheres, crianças e idosos morreram de fome, doenças e frio. Massacres ocorreram em Kobane e Ayn Issa, pessoas foram capturadas e torturadas, e centenas desapareceram. A Turquia está usando a situação atual para impor sua política genocida contra a população curda em Rojava e continuar a anexação do norte da Síria que começou em Afrin, Serekaniye e Gire Spi. A Turquia quer eliminar as conquistas da Administração Democrática Autônoma - um projeto que é atualmente a maior esperança de uma solução e paz para uma região marcada por décadas por uma guerra de forças hegemônicas por poder e recursos e aterrorizada por gangues islâmicas.
Continuaremos nossa luta por este modelo e pela liberdade de todas as mulheres nele com toda a nossa força. Custe o que custar, continuaremos defendendo as conquistas da Revolução das Mulheres de Rojava como uma esperança para a Síria, para o Oriente Médio e para o mundo por todos os meios.
Apelamos à comunidade internacional e especialmente às ativistas, movimentos feministas e defensoras dos direitos das mulheres para não abandonar Rojava e todas as mulheres e povos na Síria agora. Envie sua solidariedade e apoie-nos nas demandas por um processo de solução para uma Síria democrática e confederada, com a força e a vontade das mulheres.
Kongra Star
Movimento de Mulheres
12.12.2024
O texto acima foi escrito pelas mulheres da Kongra Star e publicado originalmente no site da Filia. Você pode ler o texto original em inglês aqui.
Sobre a Kongra Star por Marina Colerato
Em 2005, com a declaração do Confederalismo Democrático e a crescente movimentação política de mulheres na região, é fundada em Rojava a União Estrela das Mulheres Livres (Yekîtiya Star, no original). Após sair da clandestinidade, a União Estrela passou a organizar uma série de conselhos das mulheres nas cidades sírias de Damasco, Aleppo, Rakka e Haseki com objetivo de promover formação política e combater o patriarcalismo sobretudo por meio da atuação dentro da própria União e no envolvimento com o autogoverno. No mesmo ano, foi criada a primeira mal a jin, a "casa das mulheres". Nesses locais, mulheres voluntárias residentes na região, sobretudo mais velhas, trabalham para auxiliar e receber mulheres em situações de violência doméstica, poligamia, casamento forçado de meninas, divórcio e falta de acesso à educação.
Após a declaração da Revolução de Rojava, a União Estrela estendeu sua área de atuação para todos os cantões de Rojava e tornou-se referência na despatriarcalização da sociedade por meio da atuação em assembleias, organização de oficinas e criação de uma série de academias para o estudo de Jineolojî. Em 2016, com objetivo de fomentar a diversidade étnica, religiosa e linguística presente na região, a União Estrela foi renomeada como Kongra Star e passou a organizar uma rede horizontal de comunas, assembleias, cooperativas e espaços de ação direta. As mulheres também se apropriaram de antigos prédios públicos para desenvolver as próprias atividades, a exemplo da Academia de Mulheres Ishtar, antiga casa de visitas do governo baathista, agora um espaço dedicado ao desenvolvimento político e militar das mulheres.
Até a próxima,
Marina Colerato