o delírio progressista
e a incontornável realidade dos limites do feminismo na esquerda
Passou despercebido para mim, mas em 11 de março o lado b completou quatro anos. Quando comecei, no início da pandemia, não tinha muita intenção de trazer material jornalístico ou de pesquisa pra cá. A ideia era ser um espaço de escrita alternativo ao trabalho de jornalismo, pesquisa e articulação que eu fazia no Modefica. Também queria soltar mais a escrita, ser mais blogger, como eu sempre fui desde que tive meu primeiro computador, tudo sem grandes pretensões e com menos auto-julgamento, por isso o nome, lado b.
Se você não é da época do vinil, no lado A ficavam as faixas, ou tracks, que as gravadoras e os artistas acreditavam que fariam mais sucesso e, no lado B, ou B-side, as canções mais alternativas e experimentais. Embora algumas coisas tenham mudado por aqui nos últimos quatro anos, como o fato de eu acabar trazendo mais jornalismo e pesquisa do que previamente almejado, bem como ter mudado muitas das minhas referências, o lado b segue sendo sobre o outro lado, aquele que não encontra mercado e, portanto, não é de interesse da maioria.
Nessa despretensão, o lado b deu um salto importante de audiência desde o último ano. E, ainda mais importante, recuperei o gosto pela produção de conteúdo (em qualquer formato), que em grande medida havia perdido após quase dez anos me dedicando mais às burocracias e a encontrar formas de financiar nosso trabalho dentro do jornalismo, um segmento que enfrenta enormes dificuldades de financiamento e há muito tempo, do que realmente fazendo jornalismo e pesquisa. Por isso, agradeço a todo mundo que topou ouvir o lado b lá em 2020 e, mais importante, que continuou comigo em meio a todas as mudanças, mantendo o interesse permanente às versões alternativas.
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Antes de me despedir, quero compartilhar com vocês alguns links que atraíram minha atenção na última semana. Como eu não tenho adjetivos para descrever o que sinto, vou direto ao primeiro deles: na Espanha, homens acusados de violência contra mulheres usando a Lei Transgênero para mudar o sexo legal acessam abrigos onde suas vítimas estão alojadas. É isso mesmo o que você leu. E o alerta que isso aconteceria foi dado há anos.
Como reportado pelo Reduxx, a Ministra da Família, Juventude e Assuntos Sociais da Espanha, Ana Dávila-Ponce de León Municio, enviou uma carta à Ministra da Igualdade, em 18 de março, alertando para o fato de mulheres vítimas de violência doméstica estarem em perigo por conta da Lei Transgênero de 2023, que tornou extremamente simples a alteração do sexo nos documentos oficiais. Em Madri, pelo menos seis casos foram identificados e, em três deles, os homens fizeram pedidos para ficar nos abrigos onde estavam suas vítimas.
Outra questão é que quando um homem se declara mulher na Espanha, ele não pode ser condenado por violência de gênero. Como relatado anteriormente pelo próprio Reduxx, um homem na Espanha que abusou de sua parceira por se opor à sua transição de gênero evitou acusações de violência de gênero, alterando legalmente sua identificação para “feminino” e adotando o nome de uma mulher. Como resultado, a mulher vítima não conseguiu obter uma ordem de proteção por violência doméstica, o que normalmente resultaria na remoção do agressor masculino da casa para minimizar o impacto financeiro para a mulher em um momento em que ela está mais vulnerável.
Quando você cria a ficção de que não existe uma classe sexual masculina e uma feminina e que a primeira não é predadora da última, e que pessoas da classe sexual masculina ao se dizerem mulheres se tornam anjos intocáveis, é óbvio que você está ampliando as margens (já imensas) para que a violência masculina contra as mulheres passe impune. Esse comportamento delirante por parte da esquerda também torna incontornável o fato de que homens (e muitas mulheres) da esquerda são tão detestáveis, às vezes mais detestáveis, que políticos da direita em se tratando de feminismo e, em grande medida, politicamente inúteis para a luta feminista quando não deliberadamente reacionários, como vemos ser o caso com as políticas transgêneros sendo empurradas goela abaixo da sociedade.
Embora mulheres apostem alto nos homens da esquerda, a verdade é que tal aposta não só é uma ilusão completamente incompatível com a própria história do movimento feminista, como já está mais do que evidente que, em se tratando de mulheres, dos nossos corpos e da nossa disponibilidade emocional, os homens da esquerda em sua maioria querem livre mercado e exploração neoliberal.
Por que deveríamos trabalhar com quem nos vê como um ser humano de segunda classe, cuja existência pode ser resumida em um amontoado de esteriótipos estéticos baseados na pornografia e na hipersexualização disponíveis para consumo? Como trabalhar com quem acredita que mulheres devem estar sempre dispostas a serem definidas e tratadas como os homens bem entenderem, como colaborar com quem ignora deliberadamente nossa história milenar de superexploração e com quem não perde tempo em nos difamar no primeiro apontamento que fazemos acerca do nível absurdo de misoginia dos estratos progressistas ou da chamada esquerda radical?
Os atuais níveis de desumanização das mulheres que estamos vendo é parte e parcela de uma agenda progressista de liberdade sexual (criada, definida e colocada em prática a partir de critérios masculinos). Ora, o que esperar de uma sociedade que vê mulheres e meninas como um objeto oco, a ser criado, definido e usado pelos homens, sem restrições, inclusive como fetiche ou para tentar se livrar da homofobia internalizada, ainda que sem sucesso. Como bem apontou Kathleen Stock no seu livro, a mensagem que a esquerda (incluindo os governos de esquerda) está mandando para as mulheres em cada um dos seus passos é: “os interesses dos machos com identidades especiais são mais importantes que o seus”. [Que isso esteja na mente de todas vocês nas próximas eleições].
Porém, a priorização dos homens como o único sujeito de direitos e de uma pauta masculina também não é inédita e, sinceramente, causa menos espanto do que o fato desse comportamento estar afetando meninos de forma tão perturbadora que, a não ser que você seja um pedófilo, fica difícil ignorar ou consentir pela sacralidade da ideologia.
Como alguém que já esteve em articulações mistas na esquerda digo que há espaços mais úteis onde podemos colocar nossos esforços se nosso objetivo é o fim da dominação e exploração das mulheres (e natureza). Vocês sabem que entre minhas maiores referências nesse sentido estão as mulheres curdas, mas há muitas outras mulheres listando motivos para não nos organizamos com homens (a nível individual), compartilhando suas experiências e apontando a impraticabilidade da articulação mista para mulheres que buscam autonomia política-intelectual.
Aqui chegamos na indicação desse programa excelente de duas mulheres, Hannah Berreli e Jen Izaakson, conversando sobre diversos temas sob uma perspectiva marxista e feminista radical, entre eles: em um momento onde muitos se questionam sobre feministas trabalharem com a direita, elas invertem e lançam a questão: deveriam as feministas trabalhar com a esquerda? A parte 1 e 2 estão realmente imperdíveis e eu me identifico com toda a fúria de Jen em ambos.
A má notícia? Mandar todo mundo para a terapia não vai ajudar, embora o mito generalizado de que a terapia resolve absolutamente tudo tenha alguma parcela de responsabilidade na dificuldade, cada vez mais esquisita, da sociedade no geral, e da geração z em particular, em lidar com a realidade. A galera com menos de trinta anos parece que não foi ensinada que viver traz consigo sua cota de nãos, frustração, limites, negativas, insucesso e infelicidade. Life is a bitch, mas esqueceram de avisar isso para quem cresceu na frente de uma tela criando sua realidade paralela em um avatar virtual descolado das limitações mundanas.
Publicado em fevereiro, o livro mais recente abordando a temática é Bad Therapy: Why The Kids Aren’t Growing Up (“Terapia ruim: Por que as crianças não estão crescendo”, em tradução livre). Para quem quer entender mais por que terapia nenhuma é melhor que uma terapia ruim, é possível conferir a entrevista com a autora, Abigail Shrier no UnHeard. Talvez seja um saco dar o braço a torcer e reconhecer que nós mesmas ajudamos a criar parte dessa superstição nos últimos dez anos, mas podemos fazer a mea culpa: tivemos uma ajudinha da indústria fármaco-médica que encontrou uma fonte inesgotável de lucro.
Eu li algumas críticas ao livro, inclusive as negativas, e me parece que Shrier não é a primeira a levantar o problema, embora ela esteja particularmente interessada em olhar para os resultados da terapia ruim para meninas adolescentes, como no seu livro Irreversible Damage: The Transgender Craze Seducing Our Daughters (2020). Em tradução livre, “Dano irreversível: a loucura transgênero seduzindo nossas filhas”. O que todas as resenhas de Bad Therapy têm em comum é afirmar que o ponto de Shrier é incontornavelmente válido. Ainda que seja possível discordar ou apontar falhas em sua pesquisa, as resenhas confluem para a conclusão de que, no fim das contas, dor é lucro. Se for emocional, onde não há marcadores objetivos aos quais se ater, melhor ainda. A cereja do bolo vem com o laudo de “crônico”, “inato” ou, ainda que pareça contraintuitivo ouvir tal coisa de um médico, “essência”.
Vamos ser sinceras, o que é mais fácil e lucrativo: dizer às pessoas que estar vivo não é equivalente a ser feliz o tempo todo, algum nível de dor e frustração faz parte do processo e que uma parte importante dos sentimentos de depressão, ansiedade, inadequação e disforia são causados por fatores externos, ou seja, ambientais, sociais e econômicos que, a nível individual, estão em grande medida fora do nosso controle, o que demandaria encontrar formas de ajudar os sujeitos a encararem a realidade, oferecendo-lhes suporte para tomar a responsabilidade para si quando cabível (e correr o risco de perder os pacientes que não gostam de ser confrontados com a realidade), ou afirmar que há um desbalanço químico no cérebro, ou que a pessoa tem um essência que difere do seu corpo sexuado, ou que todo e qualquer problema que aparecer pode ser magicamente — e sem consequências — resolvido com drogas controladas de uso permanente e terapia?
Nós sabemos a resposta. E não importa o quanto se escreva sobre isso, escândalo após escândalo, da crise dos opioides à fabricação da epidemia da depressão e, agora, das “crianças trans”, a indústria fármaco-médica continua saindo ilesa. Terapeutas, psicanalistas e psicólogos têm sua parcela de responsabilidade no frenesi, embora nem sempre sejam eles quem diretamente assinam as prescrições. E um tanto dessas pessoas, vale lembrar, são simplesmente profissionais realmente ruins frutos da neoliberalização do ensino, da idiotização da sociedade por meio da complacência generalizada e do foco roubado.
É claro, não estou compartilhando nenhuma grande novidade aqui. É assim que as indústrias funcionam, não há nada realmente novo sob o sol, sobretudo em se tratando da indústria farmacêutica, que só nos EUA em 2022 despejou 347 milhões de dólares em lobby, mantendo sua primeira posição histórica em dinheiro gasto na compra de políticos (imaginem só o quanto não vai para o “financiamento” no setor da edução e pesquisa).
Talvez o que seja realmente inédito nessa história toda seja o fato dos espectros políticos progressistas que se dizem contra mega corporações transnacionais estarem estendendo o tapete vermelho para os magnatas dessas mesmas corporações e se vendendo barato para promover ideologias tecnofílicas e o que eu vou chamar de “anti-realidade”, ainda que estas envolvam a medicalização permanente da vida e o completo desaterramento da nossa realidade corporificada e encarnada em um momento no qual precisamos urgentemente reaterrar na realidade e aprender a lidar com os limites biológicos e ecológicos inerentes à nossa existência mundana, não só do corpo, como do planeta Terra. Em outras palavras, não é possível superar o tal capitalismo se vendendo para a ilusão masculinista de que não há nada que os homens não possam fazer.
Até a próxima,
Marina Colerato