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lado b, track 9

o poder do ódio e a tríade dialética da revolução

Marina Colerato
Nov 7, 2020
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tempo de leitura: 5 minutos
tempo de escrita: 2 horas

Para ouvir enquanto lê:


@opoemaensinaacair

ato 1 – a tristeza

A gente aprende a cair e levantar. Em looping. Alguns tombos doem mais que outros, mas sentir dor significa estar viva, e cair nos lembra que, no minuto anterior, estávamos de pé. Às vezes parece que todo mundo veio ao mundo para sofrer; que a dor é um tipo de objetivo compartilhado, até com os burgueses. Não tenho dúvidas que neles também dói. Porém algumas pessoas vieram ao mundo para sofrer mais do que outras, como se carregassem o peso da Terra; como se a gravidade não desse conta e alguém precisasse fazê-lo. Eu não estou falando dos dramáticos, ou dos coadjuvantes que só querem ser protagonistas porque não sabem não haver nenhum tipo de glamour em estrelar essa peça. Eu estou falando daquelas pessoas para as quais o mundo parece não ter sido feito. Para quem todo caminho não é convite, é tropeço. É gente que se importa demais, faz muito caso das coisas, ri alto e chora com vontade (seja para dentro ou para fora). Não tem doriana no café da manhã, vida programada, poupança. Não porque elas não querem, mas porque, por algum motivo, nada disso pertence a elas. Quem sou eu para dizer que é destino ser fora dessa órbita? Para mim, é culpa do capitalismo. 

Me surpreende muito pouco que a maioria dessas pessoas sejam mulheres. Nelas não têm mais corpo sem marcas, virou tudo cicatriz. Às vezes as marcas são visíveis: o rosto manchado de sol, com rugas profundas que são mais frutos do cansaço e da dor do que da idade. O corte na barriga para tirar dali um filho cujo pai nunca mais apareceu. Os pulsos marcados à lâmina porque ela precisou sentir na carne para suportar o que vinha da alma. Os dedos tortos por uma vida de lavar, passar, limpar e cozinhar. Tatuagens, muitas vezes, sinalizam que, por algum motivo, o ser que habita aquela pele nunca mais vai ser o mesmo. Se você olhar com atenção, dá para ver nos olhos delas também. Já as cicatrizes invisíveis... bem, essas são escondidas sempre com muito esforço. “Tá tudo bem?”. “Tá sim”. Já percebeu como sempre está tudo bem? As hereges foram colocadas na fogueira, a gente lembra bem e, por isso, é melhor disfarçar. Dizer que está tudo bem, engolir seco e fingir ser quem você não é. Afinal, vale perder tempo para descobrir quem se ou ser quem se é se nenhuma versão de você mesma será realmente bem-vinda? No fim das contas, o que pesa não é o tempo, é a vida. Uma vida carregando um mundo (deles) que não foi feito para você habitar. Se reclamar e querer algo diferente, é lenha e fogo. 

ato 2 – o ódio 

Dizem que a gente não pode guardar mágoa. E eu concordo. Mas a gente pode ter ódio. É do ódio que nasce a mudança. O ódio que vem depois da tristeza. Sem o ódio, a tristeza vira mágoa. Zizek diz que ódio, rebelião e novo poder formam a tríade dialética do processo revolucionário. Organizar o ódio é a chave desse fluxo. Eu discordo de Zizek em muitas coisas, mas, de fato, o cara tem uma sensibilidade e umas boas sacadas. Para derrubar o capitalismo e o patriarcado é preciso mesmo organizar o ódio e direcionar a rebelião. Organizar o ódio é, para mim, uma mesa de madeira bem comprida, cercada de mulheres, conversando e combinando como, em que momento e de que forma elas vão deixar de carregar o peso do mundo. Todas juntas, tirando a mão, ao mesmo tempo, para que tudo desmorone.  Elas são brancas, pretas, gordas, magras, trans, cis, novas, velhas, pobres ou nem tão pobres. Elas são muitas e estão cansadas. Sempre cansadas. O peso estressa os músculos mesmo quando você já ficou forte o suficiente para carrega-lo. 

Elas estão falando umas com as outras, agitadas, desordenadas, mas se entendem muito bem. Eu posso ouvi-las. Os diferentes tons de vozes, em ritmos destoantes, viram um uníssono. Um universo paralelo intocado pelo patriarcado. Uma utopia real. O cheiro de vinho amadeirado exala das taças refletindo o sol que brilha no alto ao meio dia, beija a pele, aquece, mas não queima. Não é possível contar quantas são. Elas são muitas, o comprimento da mesa, repleta de frutas, castanhas e água fresca, é a perder de vista. Algumas estão sentadas no gramado amplo repleto de flores selvagens e do que se convencionou chamar de erva-daninha, mesmo que estas sejam equilíbrio e, deixadas no lugar certo, não causam dano algum. Outras encostadas nas árvores altas que venceram os homens. Árvores grandes, de raízes que transbordam pela terra. Árvores que não foram cerceadas, espoliadas, expropriadas. Árvores com troncos carregados de seiva capaz de nutrir e curar. Elas riem, um riso resultado dessa chama permanentemente acesa em algum lugar de dentro. A chama faz a gente queimar mais rápido, mas também demarca nossa diferença, a nossa humanidade, a permissão que nos demos de sermos vida que insiste em viver mesmo quando querem nos matar.

ato 3 – a indiferença

Nós não queremos vingança. Queremos paz. Direcionar o ódio não é sobre se vingar, é sobre conquistar, finalmente, a liberdade. Ver o mundo desmoronar ao tirar as mãos talvez traga a elas um gosto doce à boca, mas isso é efeito colateral, não objetivo principal. Porque, no final das contas, como diria Belchior, amar e mudar as coisas nos interessa mais.  


Até a próxima,
Marina Colerato 

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