"somos todas mulheres" e a face conservadora, misógina e antiecológica da esquerda
lado b, track 15
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Misoginia é o ódio à mulher e a tudo aquilo que vem do feminino. E lembrem-se: feminino vem de fêmea, não de feminilidade. Há quem ame a feminilidade, mas odeie fêmeas. As vítimas da misoginia têm sexo, são fêmeas. Por ser uma opressão estrutural e histórica de um grupo social sobre outro para garantir a dominação, as vítimas são uma categoria política.
Fêmeas adultas cujos trabalhos de PRODUÇÃO e REPRODUÇÃO não ou mal remunerados depende o capitalismo patriarcal. Sendo assim, estamos falando de uma condição de classe, não de uma IDENTIDADE. Ou seja, sem a exploração sistemática das mulheres, dos grupos racializados e da Natureza, o capitalismo-patriarcal não se sustenta. Tire as mulheres e o capitalismo patriarcal não se REPRODUZ - por isso o desespero por achar formas de reprodução sem mulheres ou fingindo que elas não existem (tecnologia reprodutiva e barriga de aluguel são exemplos1).
Tentar dissolver nossa categoria de classe em uma identidade usando da violência física e simbólica é MISOGINIA, pois é justamente pelo reconhecimento da condição de mulher no sistema capitalista patriarcal a forma mais assertiva para as mulheres romperem com a submissão e dominação. Esse reconhecimento trouxe algumas conquistas (que estamos perdendo) como, por exemplo, a tipificação do crime de feminicídio. Não é a toa que homens agora querem erodir nossa categoria e nos empurrar de volta para as sombras (do qual nunca totalmente saímos) no espaço público, na arena política e na ciência.
O fato de eu afirmar que a condição das mulheres é uma condição de classe, não de identidade, não significa que eu não reconheça a legitimidade das demandas dos grupos igualmente balizados pela lógica da dominação e portanto dos “ismos de dominação” que hierarquizam as diferenças. Significa apenas dizer que, diferente desses grupos unidos por uma identidade, a condição da mulher enquanto classe é uma condição de subalternização estrutural e estruturante para produção e reprodução do sistema capitalista patriarcal, assim como as colônias, a natureza e o proletariado.
Enquanto condição de reprodução, as mulheres e a natureza, como nenhum outro grupo, são indispensáveis para a continuidade do sistema pois ambos reproduzem a vida. Dessa forma, homens não podem ser mulheres enquanto categoria política pois a construção de mulher está ligada a uma construção sócio-histórica corporificada e, novamente, tal reconhecimento é fundamental para superação da condição de dominação masculina.
Em suma, homens podem se vestir da forma como a sociedade moderna define feminilidade, utilizarem nomes que entendemos como femininos em determinada língua e contexto, fazerem cirurgias de resignação genital, tomarem hormônios que os mamíferos fêmeas humanas produzem, colocar bebês para sugarem seus mamilos (há controvérsias se podem mesmo e o quanto disso pode ser considerado fetichização relacionada à pornografia e pedofilia) mas nenhuma dessas coisas deveria ser capaz de colocá-los na condição de igual à mulher na nossa compreensão histórica da categoria política mulher, nas políticas públicas, nas leituras do exercício da violência física e sexual contra mulheres (como está acontecendo com a Lei Maria da Penha) etc., justamente porque isso ignora a realidade na qual vivemos hoje: onde uma mulher é estuprada a cada 10 minutos e uma mulher é morta a cada 7 horas (lembrando que a violência é, na verdade, muito maior por conta da subnotificação).
Ignorar a realidade na qual vivemos hoje significa não endereçar tal realidade e deixar as mulheres (ainda mais) à deriva. Significa também atenuar estatísticas de violência contra mulher e embalharar as cartas de modo que não consigamos mais ter noção da realidade coletiva das mulheres enquanto grupo. Se os dados sobre mulheres já são insuficientes, pois existe uma série de elementos que atrapalham o acompanhamento dos mesmos, como subnotificação, eles estão a caminho de desaparecer.
Ademais, o exercício da violência masculina contra mulheres exige homens treinados para dominação e por isso, desde muito cedo, socializados para verem as mulheres como objetos de foder e proletária particular sem remuneração. Numa sociedade envolta de narrativas de violência contra as mulheres e de objetificação feminina, humanos que nascem com pênis desde cedo entendem seu lugar na hierarquia sexual. Podemos então reformular e dizer que uma pessoa que nasceu com pênis, e portanto foi socializada para dominação, mata e violenta, respectivamente a cada 7 horas e a cada 10 minutos, pessoas que nasceram com vagina e foram socializadas para submissão. Essa é a realidade de quem vive num corpo sexuado feminino na sociedade pós-moderna no século XXI no Brasil (e na maior parte do globo) onde esse corpo está objetiva e subjetivamente suscetível à violência e dominação exercidas por aqueles nascidos e criados em corpos sexuados masculinos.
Por isso que ainda que gays, ainda que negros, ainda que pobres, ainda que com dissociação corporal, continuam homens. Por isso que ainda que digam que nasceram com uma essência feminina, nossa realidade social nos impede de levar tal afirmação a sério. Por isso também que mulheres acumulam experiências de violências físicas e simbólicas exercidas por pessoas do sexo masculino transidentificadas contra mulheres (alguns exemplos aqui, aqui e aqui) e tal movimento tem tanta liberdade para atacar mulheres.
Quando homens passam a adentrar a categoria política mulher é o apagamento do reconhecimento da existência da misognia em fluxo. Não é à toa que juízes brasileiros conseguem ser “progressistas” para permitir que homens possam se declarar mulheres na Lei Maria da Penha, ignorando completamente as motivações e as necessidades que levaram à criação da própria lei, mas jamais permitir que mulheres tenham controle sobre seu próprio processo de reprodução por meio do acesso ao aborto legal. Em outras palavras, não é à toa que a diluição da categoria mulher venha com um aumento da violência contra mulheres e/ou uma sistemática negação por parte da sociedade e das instituições dessa violência.
Tal afirmação não significa dizer que mulheres não reproduzem misoginia, até porque a existência do macho dominante exige a existência da fêmea submissa e mulheres são socializadas (sobretudo por meio da violência SEXUAL na infância e da condição econômica) para submissão, ao mesmo tempo que homens também terceirizam o exercício da violência simbólica contra mulheres para as próprias mulheres. Não existiria patriarcado sem a contínua colaboração das mulheres para manutenção do sistema. Também não signica dizer que as relações de poder não são contextuais. Eu sou branca no Brasil, latina na Europa, pobre perante um rico, rico perante um miserável, mas em todos esses lugares há uma condição existencial imutável: a de ser mulher (seja eu esteticamente percebida ou não com como uma mulher deve ser percebida). Já falei disso antes por aqui.
Tal afirmação igualmente não pode ser lida como determinismo biológico, pois isso seria distorcer o próprio conceito de determinismo biológico. Determinismo biológico é acreditarmos que quem nasce com um determinado órgão sexual precisa cumprir determinados papéis e se portar de um determinado jeito e, caso o sujeito não queira cumprir tais papéis e se parecer de uma determinada forma, ele precisa tentar “corrigir” a própria biologia para exercer devidamente os papéis sociais. Qualquer relação com a ideia de que “meninos usam azul e meninas usam rosa” não é mera coincidência.
Embora eu espero que, se você chegou até aqui, tenha ficado claro que a dominação é construída, o dualismo hierarquizante é socialmente criado e mulheres não são essencialmente submissas aos homens e os homens não são essencialmente opressores, relembro que “o que existe é a realidade biológica da corporificação humana”. Mas se a biologia não determina o desenvolvimento humano tampouco a humanidade pode transcender sua estrutura biológica e ecológica. Sendo assim, “homens e mulheres são tanto social quanto naturalmente construídos; é impossível separar os dois” (MELLOR, 1995, p. 136). Tal tentativa de transcendência é o que Ariel Salleh (2009) chamaria de “distopia tecnocientífica pós-moderna” e emana da mentalidade capitalista egocêntrica (o oposto de ecocêntrica) e sua suposta possibilidade de transcender todos os limites naturais e planetários (a exemplo da crise climática, da contínua sobrecarga da Terra e da engenharia genética, biologia sintética e tecnologias reprodutivas).
O que precisamos, de fato, é criar condições sociais (ou seja, econômicas, culturais, intelectuais, emocionais, espirituais) para romper com esse processo histórico que coloca sujeitos que nascem com um determinado corpo sob condições específicas de submissão, exploração e reprodução do sistema. Sem dúvidas é muito mais trabalhoso do que simplesmente alterar a linguagem e permitir fluidez e diversidade estética, sem alterar fundamentalmente a forma como as classes “homem” e “mulher” se organizam e são organizadas na sociedade. Até porque, tal transformação radical exigiria a superação do modelo capitalista de produção dependente da exploração das mulheres (e das colônias e da natureza) como também do constructo social que o legitima: a ciência positivista. Isso talvez esclareça para alguns o porquê a ciência (e o próprio ambiente acadêmico) é avesso tanto às mulheres quanto aos estudos feministas e de mulheres2, ao passo que o capitalismo despeja milhões de dólares na “promoção da diversidade” e ignora completamente as demandas das mulheres3.
Em suma, promover hoje o transhumanismo de amanhã, mantendo mulheres em sua condição corporificada de submissa, é muito mais lucrativo e, na verdade, necessário para expansão inerente do capital, pois possibilita um novo nicho de pilhagem por meio da tecnociência e suas variadas facetas4. De forma parecida, é possível fazer uma analogia com a questão climática e nossa dificuldade em endereçá-la: mercados de carbono e geoengenharia são muito mais lucrativos do que uma agência coletiva para redução drástica das emissões; a crise climática “caiu do céu” em se tratando de abrir novos espaços de acumulação5.
Concluindo, não fica difícil perceber que movimentos que não enderecem a questão das mulheres de forma radical, ou seja, de forma que vá à raiz do problema para sana-lo, erodindo as estruturas e instituições patriarcais e racistas e criando novas, ao mesmo tempo que transforma a cultura de objetificação feminina, não são nem um pouco ameaçadores ao capitalismo patriarcal, pelo contrário, são seus aliados.
Em outras palavras, movimentos e teorias que promovem a cultura da objetificação, consumo e instrumentalização do corpo feminimo, que sejam incapazes de reconhecer as especificidades da construção da categoria mulher enquanto classe, e não busque romper com os processos objetivos e subjetivos de subalternização dessa classe, garantem a manutenção de um pilar fundamental do atual sistema e, por isso, a manutenção do mesmo. É “conservadorismo por princípio”. Curioso sermos nós, as feministas que mais querem superar o capitalismo patriarcal colonial e que não aceita o “tecnofix” proposto pela lógica capitalista, as chamadas de conservadoras, inclusive por aqueles que se dizem da esquerda - e isso escancara como essa mesma esquerda nunca foi, de fato, nem feminista nem ecológica.
Até a próxima,
Marina Colerato
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Notas e referências bibliográficas:
MELLOR, Mary. Women, nature and the social construction of 'economic man'. Ecological Economics 20, p. 129-140, 1997.
SALLEH, Ariel. The dystopia of technoscience: an ecofeminist critique of postmordern reason. Futures 41, 2009. Tradução aqui.
Ver MIES, Maria; VANADA, Shiva. Ecofeminismo. Editora Luas: São Paulo (2021).
Ver SALLEH, Ariel. Moving to an embodied materialism. Capitalism Nature Socialism, 16:2, 9-14, DOI: 10.1080/10455750500108195. Tradução aqui.
Como um dos exemplos, ver Meio e Mensagem. Parada LGBT+ volta às ruas com apoio de 13 marcas. Disponível em: https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2022/06/17/parada-lgbt-volta-as-ruas-com-apoio-de-13-marcas.html. Último acesso 16/07/2022.
Ver La Hora Digital. Entrevista: La industria de reasignación de sexo espera convertir a más niñas en “niños” ya que calcula que ellas serán 75% del mercado. Disponível em: https://www.lahoradigital.com/noticia/33940/igualdad/la-industria-de-reasignacion-de-sexo-espera-convertir-a-mas-ninas-en-ninos-ya-que-calcula-que-ellas-seran-75-del-mercado.aspx. Último acesso 16/07/2022.
Ver MCKENZIE Funk. Caiu do Céu: O promissor negócio do aquecimento global. Editora Três Estrelas: São Paulo (2016).
Excelente! Ignorar que a opressão feminina ocorre por conta de seu potencial biológico é desleal. Da mesma forma exigir que as mulheres abracem os conceitos de papéis de gênero é exigir que elas mesmo vistam seus grilhões.
Marina, você acha que toda essa questão está de certa forma também está negando e ignorando antropólogos como o Levi Strauss e o Philippe Descola ? No ponto de que ambos criticam o pensamento cartesiano e a ideia de separação de alma e corpo, natureza e cultura ... Enquanto o movimento trans cria essa ideia de gênero independente de corpo. Tu acha que faz sentido , ou to forçando um pouco a barra ?