para ouvir enquanto lê:
“Você era excesso”. Me retive, por dias.
Somos eternamente responsáveis pelo que falamos (pelo menos, deveríamos). Confesso que não lembro se já mencionei isso, mas uma regra primordial no jornalismo (pelo menos, em tese) é saber que é de sua inteira responsabilidade ser compreendido pelo outro. Não é uma tarefa plausível, de fato e a gente sabe.
É na subjetividade do outro que reside a implausibilidade da missão. A mesma frase, o mesmo texto, o mesmo livro podem ter significados completamente distintos dependendo de quem lê. Sapiens, do Yuval Harari, é um desses livros que manobra muito bem, e aparentemente de forma proposital, sua conclusão dentro do espaço delimitado pelo repertório de vida do sujeito. Há até quem encerre a leitura se sentindo orgulhoso de ser homo sapiens.
Mas há aqueles, como eu, incapazes de enxergar uma luz no fim do túnel. Ou melhor, a luz no fim do túnel para nós é, como diria Slavoj Zizek, um trem em alta velocidade vindo em nossa direção. Em suma, me diga qual síntese tirou de Sapiens e eu te direi quem és. Nesse sentido, Sapiens é jetski em mar aberto; mas o vácuo completo não existe. Há sempre espaço para trabalhar as conclusões.
“Por que às vezes se deixa transbordar?”. Fiquei puta, por minutos.
A culpa feminina faz parte do meu repertório, é claro. Não há livros suficientes para eliminar as consequências de ser socializada como mulher em um mundo capitalista patriarcal. Por isso gênero é, de fato, muito mais do que uma simples expressão.
Ao me demorar alguns minutos a mais na questão, porém, encontrei a resposta na própria pergunta: porque aqui tem abundância; e a abundância transborda porque sabe que desse regar surgem as flores e os frutos. Quando me concedi tempo para acessar trinta e três anos de repositório, galgado por vias tantas, a própria pergunta se tornou obsoleta.
Se, durante séculos, tentaram nos colocar como súditas de uma ausência de razão, supostamente intrínseca a uma ideia cuidadosamente construída sobre o que é ser mulher, o que nos atrelava alegoricamente aos excessos da “loucura”, da “paixão desesperada”, da “histeria freudiana”, hoje mulheres tantas já nos ensinaram que o problema do mundo reside exatamente na lógica oposta, a da escassez; o insano é justamente achar que o “normal” é o solo seco, esgotado, de onde apenas ausência abunda. Repare como o esgotamento, aliás, é símbolo da nossa época.
Saber algo intelectualmente é muito diferente de saber e fazer na prática. Embora já houvesse lido o suficiente a respeito, foi naquele momento de minutos, que pareceram horas, que finalmente captei a experiência da auto abreviação. É como desmatar uma floresta inteira, botar abaixo, espantar os animais, tacar fogo, plantar soja e milho transgênicos com bastante agrotóxico até transformar o solo em infértil, cerceado e sem vida.
“Jamais”. Sigo firme.
Meu espaço de manobra me levou a insistir na floresta, independente de qualquer outra intenção. Essa atrevida responsável por atrapalhar grandes projetos de esgotamento com sua fertilidade abundante, que não conhece a luxúria do excesso, mas se mantém absolutamente combativa do solo seco. Nos apeguemos à práxis. Há de serem construídos novos símbolos e, por mais que a missão soe implausível, a linha do horizonte está lá e permanece intacta; transborde, floresça, frutifique e comece de novo. Parte do nosso deslumbramento com a floresta está exatamente em sua persistência… e abundância.
Ah, e floresta é substantivo feminino e, em grande número, se torna exemplo.
Até a próxima,
Marina Colerato
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Somos floresta ❤️