Há não muito tempo, compartilhei sobre um movimento de Erika Hilton que solicitava a remoção do campo “sexo” em alguns formulários do MEC bem como sobre a prefeitura de SP e OAB firmando parceria para facilitar a mudança de sexo nos documentos originais dos indivíduos. Isso não só é completamente insano do ponto de vista bem, da realidade1, como é um problema para a luta feminista, sobretudo porque usamos estatísticas para entender, entre outras coisas, o quanto avançamos ou não ao enfrentamento das várias formas de expressão da violência masculina, entre elas a violência sexual.
A incisiva para apagar o sexo não é particularmente nova, assim como não está acontecendo só no Brasil. Mas ela está avançado - e o próprio fato de pessoas poderem fazer essas alterações em documentos oficiais já é motivo de sobra para elencarmos uma série de consequências negativas dessa medida para todos os sujeitos, não só para as mulheres.
A Eva Kurilova escreveu um texto curto, mas que levanta alguns pontos sobre o tema, e ele me pareceu uma boa tradução rápida para trazer aqui porque eu sei que muita gente não consegue dimensionar o tamanho do estrago quando aceitamos o sexoplanismo como política pública. Ela não cobre todos os problemas que podem ser apontados, mas traz alguns questionamentos pertinentes2 acerca de estatísticas vitais. Não deixem de ler as notas de rodapé.
“Holanda não vê função para marcador de gênero3 em documentos de identidade”, declarou uma manchete da Human Rights Watch em julho de 2020.
Vejam, meninos e meninas, neste Admirável Mundo Novo, não há meninos e meninas. Ou devemos pelo menos fingir que não.
Não há nenhuma razão possível para notar a diferença entre o sexo masculino e feminino. Na verdade, nunca devemos fazê-lo. Em prol dos direitos humanos.
A Human Rights Watch afirma que não há justificativa legal boa o suficiente para manter os marcadores de gênero e que compense os danos potenciais à pequena minoria de pessoas que se identificam como “transgêneros” ou “não binários”.
“O pensamento jurídico internacional está evoluindo”4, aparentemente.
Evoluindo para um ramo morto da árvore genealógica, talvez.
O primeiro apelo significativo para remover os marcadores de sexo dos documentos de identidade veio de ninguém menos que os Princípios de Yogyakarta, um documento fundante acerca da autoidentificação de gênero em todo o mundo.
Os princípios originais foram lançados em 2007 e atualizados com mais 10 princípios em 2017. É aqui, nos Princípios de Yogyakarta mais 10, que começamos a ver o impulso para a eliminação total do sexo na lei.
No Princípio 31, os Estados são chamados a:
Garantir que os documentos oficiais de identidade incluam apenas informações pessoais relevantes, razoáveis e necessárias conforme exigido por lei para um propósito legítimo e, assim, encerrar o registro do sexo e gênero da pessoa em documentos de identidade, como certidões de nascimento, carteiras de identidade, passaportes e cartas de condução, e como parte da sua personalidade jurídica;
Um dos signatários dos Princípios de Yogyakarta mais 10, Victor Madrigal-Borloz5, também é o Especialista Independente da ONU em orientação sexual e identidade de gênero.
Em 2018, Madrigal-Borloz apresentou um relatório intitulado “Proteção contra a violência e a discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero” à Assembleia Geral das Nações Unidas, no qual argumentou:
Os sistemas legais devem, de forma contínua, revisar cuidadosamente o raciocínio por trás da coleta e exibição de determinados dados e as regras que regem o gerenciamento de dados, que devem incluir considerações separadas para a necessidade de coleta e a necessidade de exibição. A este respeito, o titular do mandato tem sérias dúvidas quanto à real necessidade da exibição generalizada de marcadores de gênero na documentação oficial e não oficial, que parece colmatar vestígios de necessidades há muito ultrapassadas ou aderindo a uma lógica que nunca deveria ter sido aplicada em primeiro lugar. Permanece o princípio simples de que os Estados devem abster-se de coletar e exibir dados sem uma finalidade legítima, proporcional e necessária.
Se você está pensando consigo mesma: ‘apenas alguém que não se importa com os direitos das mulheres defenderia a remoção de marcadores de sexo de documentos de identidade’, você está certa!
Madrigal-Borloz chamou a atenção no final do ano passado por apoiar o desastroso Projeto de Lei de Reforma de Reconhecimento de Gênero na Escócia.
Escrevendo para o The Scotsman, ele fez a alegação ridícula em relação à auto-identidade de que “não há conclusões administrativas ou judiciais que validem a ideia de que o risco de abuso é material”.
Isso porque os homens podem mentir em seus documentos de identidade e o sistema administrativo e judicial os considera “mulheres” quando abusam de mulheres em espaços femininos, Victor.
A capacidade de falsificar documentos de identidade está alimentando os danos causados pela ideologia de [identidade de] gênero, e a remoção de tais informações iria além disso.
Estou surpresa - embora eu ache que não deveria estar neste momento - que nenhuma das organizações e indivíduos que defendem a remoção de marcadores de sexo parecem trazer à tona a questão das estatísticas vitais.
"Estatísticas vitais" referem-se a dados quantitativos sobre características humanas consideradas essenciais para a compreensão e monitoramento da saúde pública. Quando se trata de sexo, as estatísticas vitais são particularmente importantes por vários motivos.
Por exemplo, muitos problemas de saúde afetam homens e mulheres de maneira diferente. O rastreamento de taxas e tendências específicas do sexo é importante para entender a carga da doença e desenvolver estratégias de prevenção e tratamento direcionadas.
As estatísticas vitais relacionadas à saúde reprodutiva, como taxas de fertilidade, taxas de aborto espontâneo e natimorto e taxas de complicações durante a gravidez e o parto, também são específicas do sexo. Os dados podem ser usados para monitorar tendências em saúde reprodutiva e desenvolver intervenções para melhorar os resultados para mães e bebês.
As diferenças sexuais nas estatísticas vitais também podem ser influenciadas por fatores socioeconômicos, como renda e educação. Rastrear essas diferenças pode ajudar a identificar disparidades no acesso à saúde e outros recursos, permitindo que os governos desenvolvam políticas para lidar com essas disparidades.
O sexo é uma variável fundamental nas estatísticas vitais que nos ajuda a entender os padrões de saúde e doença, bem como a desenvolver intervenções direcionadas para melhorar os resultados de saúde para homens e mulheres.
E, no entanto, está a todo vapor com a ideia ridícula de que o sexo não é importante por qualquer motivo.
O Canadá, como sempre, foi rápido na aceitação.
“O caso para remover o gênero das identidades canadenses”, declarou uma manchete do National Post em 2019.
“O campo de gênero na identidade canadense, por padrão, refere-se à identidade de gênero, não às características físicas ou ao sexo biológico”, escreve Genna Buck, e ela não está errada.
A facilidade com que o Canadá permite que as pessoas mudem seus marcadores de gênero essencialmente os torna um reflexo de uma “identidade de gênero” sem sentido, mas a solução é parar de fazer isso, não remover os marcadores completamente.
Mais recentemente, em junho de 2021, a American Medical Association (AMA) também pediu a remoção da designação de sexo das certidões de nascimento públicas.
De acordo com a presidente do conselho, Sandra Adamson Fryhofer:
Designar o sexo nas certidões de nascimento como masculino ou feminino e tornar essa informação disponível na parte pública perpetua a visão de que a designação do sexo é permanente e não reconhece o espectro médico da identidade de gênero6. Esse tipo de sistema de categorização também corre o risco de sufocar a autoexpressão e a autoidentificação de um indivíduo e contribui para a marginalização e a minorização.
Não considero um consolo que a AMA esteja apenas pedindo a remoção do sexo da certidão de nascimento pública. Este é apenas um trampolim para removê-lo completamente. As próprias palavras de Fryhofer mostram que ela não acredita que sexo seja uma designação permanente. E não se esqueça de que os Princípios de Yogyakarta exigem o fim do registro de sexo, enquanto Madrigal-Borloz também suspeita se há realmente alguma necessidade de coletar essas informações.
A coleta adequada de dados específicos de sexo é crucial para garantir que as necessidades de homens e mulheres sejam avaliadas com precisão, a fim de buscar uma política eficaz quando se trata de saúde e socioeconomia. É por isso que o argumento comum, de que ‘estamos apenas removendo dados irrelevantes, como fizemos com marcadores que denotam religião, estado civil e raça’7, cai por terra.
Não se engane, remover o sexo dos documentos de identidade não serve para outro propósito senão jogar com a fantasia perigosa de um pequeno grupo de pessoas movidas apenas pela ideologia. São pessoas que pensam que a identidade pode ser removida clinicamente e instalada cirurgicamente. As distinções sexuais são reais, não uma questão de preferência. Quando paramos de reconhecê-las, as mulheres perdem primeiro, mas todos perderemos no final.
A ciência ainda não é capaz de transformar um macho numa fêmea sexualmente funcional e vice versa. As alterações possíveis, até o presente momento, são cosméticas. Ademais, não é preciso nada além de autodeclaração para tal mudança nos documentos no Brasil.
Eva não trata dos crimes cometidos contra as mulheres, talvez por estar numa realidade social onde o estupro e feminicídio não sejam tão preponderantes quanto no Brasil. Mas, num país onde meninas e mulheres sofrem dois estupros por minuto - e esses dados representam apenas 10% da realidade - e a maior parte deles é cometido por homens, os dados acerca da violência sexual me preocupam bastante. Sobretudo quando a violência masculina cometida por homens transidentificados como mulheres passa a ser entendida midiática e estatisticamente como violência feminina. Veja alguns exemplos nesse fio.
Embora fala-se de “marcador de gênero”, o que está sendo alterado é o sexo. O debate fica particularmente confuso para o público no geral porque o movimento transativista insiste que sexo e gênero são coisas separadas em sua narrativa teórica ampla, mas as práticas do movimento reforçam justamente a ideia oposta, que gênero é uma expressão social atrelada a um corpo sexuado específico - essa confusão inerente ao próprio pensamento desses sujeitos enquanto grupo fica nítida nessa necessidade de deletar o sexo das informações oficiais e alterar cirurgicamente o corpo para que o sexo esteja em consonância com padrões estéticos contemporâneos socialmente construídos para os gêneros feminino e masculino.
Não pude evitar de lembrar de um documento lançado em 8 de março pelo International Commission of Jurists (ICJ), uma ONG formada por cerca de 60 “proeminentes juristas” onde o relatório recomenda a descriminalização de “certos tipos de pornografia”, “barriga de aluguel não exploratória” e “sexo consentido” com menores de idade. Veja aqui.
A LGB Alliance recentemente enviou um documento à ONU questionando o trabalho e atuação de Madrigal-Borloz. Você pode ler o documento completo aqui (em inglês).
Note que: ela começa falando de sexo e termina falando em identidade de gênero como um espectro médico. Ver nota de rodapé 2.
Me chama atenção que a esquerda no Brasil, embora apoie vividamente a remoção do marcador sexo dos documentos, entende o marcador raça como importante para elaboração de políticas públicas destinadas à população negra, o que me traz a questão imediata: e as mulheres negras, que carregam o duplo peso sociohistórico de ser negra e mulher, não existem?