guerra, contra nossa vontade
Susan Brownmiller sobre guerra, estupro e os homens socialistas
Para mim, é nauseante ouvir homens e mulheres defendendo estupradores — sejam eles quais forem. Mais nauseante ainda é perceber como algumas mulheres estão mais preocupadas em “salvar a imagem” do “seu lado” político-ideológico do que endereçar a realidade nua e crua exposta por tantas mulheres vítimas da mais vil violência dos homens do “seu lado”.
Vamos pegar a União Soviética. Os estupros, a manutenção da divisão sexual do trabalho, o fato de mulheres terem sido mandadas de volta para casa depois de “ajudarem” seus companheiros no campo de batalha, os relatos escritos das mulheres russas e as pesquisas a posteriori feita por feministas ficam esquecidas em nome da manutenção de uma farsa ideológica: a de que homens de esquerda não são machistas, sexistas e misóginos, a de que eles não matam, estupram e podem ser tão - ou mais cruéis - quanto qualquer outro homem sem nenhuma ideologia socialista.
Antes de entrarmos em um trecho do capítulo 3, intitulado Guerra, do livro Contra nossa vontade de Susan Brownmiller (pp. 82-91), é pertinente relembrarmos o pensamento de Clara Zetkin a respeito do que a mulher proletária deve fazer para sua luta de emancipação. Zetkin diz:
Logo, a luta pela libertação da mulher proletária não poderia ser uma luta como a da mulher burguesa contra o homem de sua classe; pelo contrário, é uma luta junto com o homem da sua classe contra a classe dos capitalistas. A mulher proletária não precisa lutar contra os homens de sua classe para quebrar a barreira da livre concorrência. […] Pelo contrário, o que é necessário é erguer novas barreiras contra a exploração da mulher proletária. É necessário devolver e assegurar seus direitos como mãe e esposa. O objetivo final de sua luta não é a livre concorrência com o homem, mas a conquista do poder político pelo proletariado (em Mies, 2022, p. 211 - grifo nosso).
Como explica Mies, Zetkin compartilhava da visão de Marx e Engles de que o capitalismo havia criado a igualdade de exploração entre homem e mulher, então não há por que mulheres não burguesas lutarem contra a dominação masculina, devendo concentrar toda a sua força e fúria contra os capitalistas. Vocês podem imaginar o por que Zetkin está entre as escritoras preferidas da esquerda contemporânea — juntamente com Angela Davis, que segue a mesmíssima rota cega à dominação masculina pré-capitalista. Davis e Zetkin me fazem pensar em algumas mulheres acadêmicas: tão espertas acerca das relações de dominação da classe trabalhadora e de grupos racializados, mas completamente ignorante acerca da própria realidade enquanto mulher, bem como acerca da história da dominação masculina sobre a classe sexual feminina, que precede e fundamenta a exploração de raça e classe na virada capitalista no século XVI.
O trecho que vocês lerão abaixo foi cedido pela editora Cassandra, responsável por publicar o Contra a Nossa Vontade, de 1975, pela primeira vez no Brasil. O livro está disponível na Amazon e faz parte de um dos materiais mais importantes para o entendimento criminológico acerca do estupro, além de discutir outras temas pertinentes que tangenciam a questão.
Guerra
Eu gostaria de poder afirmar, com toda a convicção, que, entre os exércitos de libertação e os exércitos de conquista e subjugação na Segunda Guerra Mundial, houve uma diferença notável de atitude e comportamento em relação às mulheres e que o peso das evidências apresentadas em Nuremberg e Tóquio é prova conclusiva dessa diferença. Os padrões de agressão alemã e japonesa claramente incluíam manifestações do desprezo exacerbado pelas mulheres como parte da filosofia da raça superior e também como instrumento pragmático do terrorismo. O estupro fazia sentido como ato fascista de dominação e era até conceituado como tal.
No entanto, é da natureza de qualquer instituição que separa homens de mulheres e concede a eles o poder extra dos armamentos que o poder resultante possa ser usado contra todas as mulheres, considerando que uma vítima de estupro de guerra do sexo feminino não é escolhida por ser uma representante do inimigo, e sim precisamente por ser mulher e, portanto, inimiga. Um exército formado apenas por homens é necessariamente tomado por um senso de superioridade masculina; em última análise, o que a máquina de guerra das nações do Eixo fez foi elevar a ideologia masculina a um grau maior, a um exagero inaceitável.
De fato, o lado certo venceu em 1945, e é incontestável que o mal revelado nos tribunais era o mal supremo; ninguém que tenha examinado a literatura sobre o holocausto pode prosseguir livre da certeza de ter visto as profundezas do inferno. Mas quem julgou Nuremberg e Tóquio foram os que saíram da guerra vitoriosos. O outro lado foi responsabilizado. Nenhum tribunal internacional foi organizado para expor e condenar as atrocidades dos aliados, nenhum depoimento de mulheres “inimigas” sobre crimes de guerra foi colhido, nenhum documento ultrassecreto que incriminasse o nosso lado foi examinado sem piedade. Ao teorizar sobre estupro, é preciso admitir que a balança das evidências era injusta.
Não estou sugerindo que tenha havido igualdade de estupro na Segunda Guerra Mundial. Duvido que tenha sido o caso. Mas os soldados aliados estupraram sim, e com gosto. A agressão sexual pode não ter sido racionalizada como arma compatível com o conceito de “destruição dos povos inferiores”, mas era uma humilhação igualmente real para as vítimas. Podemos substituir o pretexto da conquista absoluta pelo pretexto (ou desculpa) da retaliação e da vingança. Aqui também existe uma lógica. Suspeito que, para os estupradores aliados, o estupro fosse uma experiência alegre, uma extravagância jovial esporádica motivada por um sentimento antimulher disfarçado de resistência gloriosa e vingativa, uma manifestação exuberante do guerreiro heroico que luta pelo que é certo.
Quando, em 1942, Ilya Ehrenburg, o austero romancista soviético que virou correspondente de guerra, guarneceu seus relatos da linha de frente com histórias dos estupros cometidos pelos alemães, as narrativas que escreveu estimularam sua criatividade e sua ideologia.
Esses devassos imundos chegaram na Rússia. Estão poluindo nossas casas. Violando e infectando nossas mulheres. Homens do Exército Vermelho, em nome da honra de nossas meninas, em nome de nossas mulheres, em nome da pureza humana, derrotem esses Fritzes fornicadores!
A tarefa de Ehrenburg era atiçar a chama do patriotismo, e haveria acendalha melhor do que o bom e velho “protejam nossas mulheres”? Isso foi na época em que os russos passavam por dias sombrios, antes da batalha de Stalingrado, e acho que Ehrenburg pode ser perdoado por ter criado esse slogan simplista: “Cada hora ganha significa salvar um homem russo da forca e uma garota russa da desonra”. Esse apelo às armas e à pureza humana ficou um pouco ridículo três anos depois, quando o glorioso Exército Vermelho finalmente se levantou, como um urso que passara tempo demais adormecido, e marchou para Berlim, estuprando as mulheres alemãs que encontrava no caminho com uma ferocidade que condizia com a dos “Fritzes fornicadores”.
Na intensa autobiografia Der geschenkte Gaul, a atriz alemã Hildegard Knef descreve a queda de Berlim pela perspectiva de uma mulher. Knef estava na frente de casa, vendo caminhões cheios de mulheres e crianças passarem, refugiadas de Frankfurt-on-Oder, Strausberg e Spindlersfeld, e as mulheres gritavam: “Saiam daqui, os russos vão estuprar vocês”. Ela vestiu um uniforme do exército alemão, explicando que era para evitar ser violentada. Depois, agachada num bunker improvisado com os camaradas do sexo masculino escutou:
gritos, gritos terríveis, de partir o coração, altos e estridentes. Perguntei baixinho para o abrigo ao lado: Tem alguém aí?
Sim.
Que gritaria é essa?
Os russos estão na casa ao lado importunando as mulheres… aaahmerdamerdamerda.
Quando a atriz foi enfim capturada, teve uma troca curiosa com seu inquisidor russo. “O que você está fazendo no exército?” ele perguntava sem parar, num alemão hesitante. Hildegard respondeu, com frieza: “Eu não queria ser estuprada”. Furioso com a resposta, o oficial soviético só conseguia berrar: “Os soldados russos não estupram! Estupro é coisa dos porcos alemães!”.
Mas os soldados russos estupravam sim. Cornelius Ryan, autor de A última batalha, uma narrativa bem fundamentada sobre a queda de Berlim, foi um dos poucos historiadores que escreveu sobre o estupro de guerra por uma perspectiva adequada. “O temor do estupro pairava sobre a cidade como um sudário”, escreveu Ryan, no início do livro: passados seis anos de guerra, Berlim era uma cidade quase só de mulheres. Os refugiados que tinham fugido do avanço das tropas soviéticas disseram aos berlinenses exatamente o que esperar: os homens da linha de frente do Exército Vermelho eram disciplinados e bem-comportados; eles não estupravam, mas a segunda onda era uma turba desordenada, e eram eles que cometiam as atrocidades. (Isso faz todo o sentido. As tropas da linha de frente, que contavam com alguns veteranos da batalha de Stalingrado, tinham um trabalho importante e heroico de vingança para cumprir por seu país. Os que vinham depois tinham perdido o momento mais emocionante e satisfatório da guerra — fazer parte do primeiro grupo de soldados russos a marchar em solo alemão — e, portanto, estariam mais propensos a materializar sua vingança em pessoas e propriedades.)
Os boatos se tornaram realidade quando, nas palavras de Ryan, “as hordas de tropas russas que vinham atrás dos veteranos disciplinados da linha de frente […] exigiram o que era direito dos conquistadores: as mulheres dos conquistados”. Ryan conduziu sua pesquisa em Berlim, no início dos anos 1960, com o auxílio de uma equipe de entrevistadores. Embora em 1945 não existisse uma administração em funcionamento capaz de documentar a extensão da violência em Berlim, os rastros ainda estavam frescos, e o historiador conseguiu relatos em primeira mão.
Ursula Köster dormia abrigada num porão com os pais e os três filhos quando quatro soldados russos bateram à porta com rifles. Eles revistaram o cômodo, confiscaram alguns alimentos enlatados e relógios, então os quatro a estupraram, um depois do outro, enquanto mantinham as armas apontadas para seus familiares. Ao amanhecer, mais dois soldados os encontraram no porão e também a estupraram.
Anneliese Antz foi arrastada aos berros da cama que compartilhava com a mãe e estuprada por um oficial soviético. Quando ele terminou, acariciou seu cabelo, murmurou “que boa menina alemã” e pediu para ela não contar a ninguém que tinha sido estuprada por um oficial. No dia seguinte, deixaram um pacote de mantimentos para ela. Ilse, irmã mais velha de Anneliese, foi estuprada por um soldado que entrou no abrigo com uma pistola em cada mão. Enquanto arrancava os agasalhos e a calça de esqui que ela usava, o homem parou para perguntar: “Você é um soldado alemão?”. Ilse disse ao entrevistador: “Aquilo não me surpreendeu. Eu estava tão magra por conta da fome que mal parecia uma mulher”. Após o ato, o agressor disse a Ilse: “Foi isso que os alemães fizeram na Rússia”. E foi embora, mas voltou para passar o resto da noite com ela — para protegê-la de outros soldados. Ilse Antz só ficou a salvo por um tempo; depois, foi estuprada por outro soldado.
Hannelore von Cmuda, dezessete anos, foi estuprada por um bando de soldados bêbados. Quando terminaram, atiraram três vezes contra ela, que sobreviveu.
Margarete Promeist, diretora de um abrigo antiaéreo, assistiu por dois dias e noites enquanto “ondas de russos entravam no refúgio saqueando e estuprando. As mulheres que resistiam eram assassinadas; algumas eram baleadas e mortas não importava o que fizessem […]. Encontrei o corpo de seis ou sete mulheres, todas ainda na posição em que foram estupradas, as cabeças arrebentadas”. Frau Promeist foi estuprada mesmo com as súplicas de “Sou velha demais para você”.
Cunegundes, madre superiora de Haus Dahlem, um orfanato e maternidade administrado pelas irmãs missionárias do sagrado coração, foi baleada por um soldado quando tentou impedir o estupro de Lena, a ucraniana cozinheira da instituição. O lugar foi invadido por soldados que entraram na ala da maternidade e estupraram as mulheres grávidas e as que haviam dado à luz.
Algumas mulheres de Berlim cometeram suicídio, fosse por temer o estupro ou por sentir vergonha após o ato. Algumas escaparam do estupro usando pó de carvão, iodo e bandagens para parecerem doentes ou o menos atraente possível. Outras encontraram lugares engenhosos para se esconder e permaneceram em porões e buracos até que o perigo tivesse passado. E algumas, segundo Ryan, “se salvaram do estupro simplesmente lutando com tanta ferocidade que os soldados soviéticos desistiram e foram atrás de outra”. Jolenta Koch foi uma delas. Ela foi ludibriada por um soldado que a convenceu a entrar numa casa vazia, mas um amigo dele esperava lá dentro; Frau Koch “ofereceu tamanha resistência que os dois homens ficaram aliviados quando ela foi embora”.
Dora Janssen se safou do estupro alegando que tinha tuberculose. Inge, sua criada, não teve a mesma sorte e ficou tão ferida que não conseguia nem andar. Frau Janssen correu para a rua e contou o ocorrido para um homem que parecia oficial. A resposta que ouviu foi: “Os alemães fizeram coisa pior na Rússia”.
Klaus Küster, membro da Juventude Hitlerista, viu três russos agarrarem uma mulher na rua e a levarem para um saguão. Klaus foi atrás. Um dos soldados o manteve sob a mira da pistola, o segundo segurou a mulher que gritava, e o terceiro a estuprou. Klaus viu o russo que cometeu o estupro saindo pela porta. Lágrimas escorriam pelo rosto do soldado, que lamentava: “Ya bolshoi svinya” (eu sou um grande canalha).
Em 1951, um comitê de acadêmicos alemães anticomunistas dirigido pelo dr. Theodor Schieder, da Universidade de Colônia, começou a documentar a fuga e a expulsão de cidadãos alemães da Europa Oriental e Central após as vitórias do Exército Vermelho em 1944 e 1945. O volume I do compêndio produzido tratou do destino dos alemães que se refugiaram a leste da linha Oder-Neisse, onde hoje fica a Polônia. Na seleção limitada de testemunhos pessoais disponíveis em inglês, há cerca de trinta depoimentos individuais de mulheres sobre estupros em massa cometidos por soldados russos e poloneses. Uma certa mesmice permeia os testemunhos, mas não por serem forjados, e sim por refletirem a universalidade da experiência da mulher na guerra.
E.L. ficou presa em Posen (agora Poznań) quando os russos entraram na cidade. Ela testemunhou:
Quando estávamos deitados na cama, à noite, ouvíamos passos subindo as escadas — eram sempre russos, enviados pelos poloneses até as habitações dos alemães. Eles davam coronhadas na madeira até arrombar a porta. Sem qualquer consideração por minha mãe e minha tia, que precisavam sair da cama, os russos nos estupravam, sempre empunhando a metralhadora em uma das mãos. Depois, ficavam deitados na cama com as botas sujas até chegar o próximo lote. Como estava escuro, faziam tudo usando lanternas, e nós sequer víamos a cara dos animais. Durante o dia, tínhamos que trabalhar duro; à noite, os russos não nos deixavam em paz […]. Era difícil chamar aquilo de estupro: as mulheres eram instrumentos passivos, não podiam se proteger nem se recusar, então apenas aceitavam o sofrimento.
“Onde poderiam prestar queixa?” ecoou um professor de Breslau (agora Wroclaw), “Em todos os lugares eram afugentadas como vira-latas”.
Foi isso que aconteceu com as mulheres alemãs no final da guerra. Em Nuremberg, os promotores soviéticos tentaram mostrar que os estupros cometidos contra as mulheres russas faziam parte de uma campanha nazista sistemática de terror e genocídio. No Tribunal de Tóquio, os Aliados fizeram uma argumentação semelhante contra os japoneses. Em seus apelos, os judeus do gueto de Varsóvia recorreram ao estupro em massa cometido contra mulheres judias para demonstrar que eles estavam sendo aniquilados sistematicamente. Arnold Toynbee, com os propagandistas da Primeira Guerra Mundial, tentou usar o estupro como prova da campanha de terrorismo e da selvageria dos “hunos”, e também vale lembrar que os lairds das Terras Altas da Escócia usaram as evidências dos estupros cometidos pelos soldados ingleses como prova do esforço inimigo para que eles fossem destruídos enquanto nação. Portanto, era de esperar que, quando os acadêmicos anticomunistas alemães compilaram seus documentos, também tentaram encontrar uma explicação nacionalista para suas descobertas. Esses estudiosos escreveram que:
O estupro de mulheres e crianças alemãs por oficiais e homens soviéticos foi sistemático, no mais verdadeiro sentido da palavra. Além do sofrimento físico e espiritual infligido às inúmeras mulheres estupradas, a brutalidade e a indignidade de seus métodos amplificaram o medo e o terror da população alemã. Ficou claro que essas violações eram resultado de uma conduta e de uma mentalidade inconcebíveis e repulsivas para a mente europeia. Parte disso pode ser atribuída às tradições e ideias das regiões asiáticas da Rússia, que consideram as mulheres tão parte do espólio quanto as joias, os objetos de valor e os bens nas residências e lojas. A natureza e a quantidade de estupros seriam inconcebíveis se não houvesse uma motivação tão fundamental na mentalidade das tropas soviéticas.
Os professores alemães foram além. Alegaram que Ilya Ehrenburg, com seus relatos da linha de frente e panfletos patrióticos, incitou as tropas russas ao estupro.
O papel de Ehrenburg como bode expiatório para os estupros cometidos pelos russos aparece em lugares tão estranhos que merece ser estudado. As memórias do almirante Doenitz, publicadas em 1958, citam um suposto panfleto de Ehrenburg:
Matem! Matem! Na raça alemã não há nada além do mal! […] Sigam os preceitos do camarada Stalin. Acabem com a besta fascista em seu covil, de uma vez por todas! Recorram ao uso da força e destruam o orgulho racial dessas mulheres germânicas. Tomem-nas como o espólio que é seu por direito […], soldados corajosos do Exército Vermelho!
Karl Bednarik, sociólogo vienense contemporâneo, não questiona a autenticidade do panfleto de Ehrenburg e escreve: “Aqui, o oferecimento das mulheres do inimigo derrotado como válvula de escape para as tropas vorazes ostenta o mais transparente véu de ideologia”.
Para ser justa com Ehrenburg, preciso admitir que não consegui encontrar essa exortação específica para destruir “o orgulho racial dessas mulheres germânicas” e tomá-las “como o espólio que é seu por direito” entre as centenas de comunicações dele que examinei. Cornelius Ryan também não encontrou; ele citou a versão de Doenitz em seu livro, mencionando que muitos alemães que entrevistou disseram ter visto o panfleto. Ryan levou o assunto até Moscou, onde, segundo ele, editores de jornais e historiadores soviéticos “ficaram na defensiva” sobre a questão dos estupros. A maioria dos historiadores de Moscou com quem falou atribuiu as piores atrocidades a ex-prisioneiros de guerra vingativos que foram sendo libertados durante o avanço das tropas russas em direção ao Oder. Um editor de jornal falou: “Claro que não fomos perfeitos cavalheiros; tínhamos visto coisa demais”.
Ryan descobriu que, certa vez, Ehrenburg foi repreendido publicamente pelo jornal militar Krasnaya Zvezda por seus excessos propagandísticos. Acho que, para Ryan, isso foi suficiente, e ele acabou acreditando que o panfleto não era falso. Eu já não tenho tanta certeza, considerando o que sei sobre a história dos panfletos falsificados. Como Ehrenburg era judeu, essa suposta exortação perversa cai como uma luva para os nazistas derrotados e tem todo jeito de Os protocolos de Sião.
A sugestão de Bednarik (que não fornece fonte quando cita o panfleto) de que Ehrenburg estaria optando pelo sacrifício do corpo das mulheres para instilar um sentimento de vingança no Exército Vermelho e provocar um comportamento destrutivo ainda mais cruel e aterrorizante é uma extrapolação interessante. Assim como os acadêmicos alemães, ele também precisava de alguém em quem colocar a culpa. Milovan Djilas, um comunista iugoslavo renegado que depois se tornou um anticomunista ferrenho, também discute os estupros cometidos pelo Exército Vermelho em seu livro Conversas com Stalin, que é excessivamente emocional e nem um pouco confiável. Djilas relata que, segundo as reclamações apresentadas pela população local, o exército soviético cometeu 121 estupros, além de muitos estupros seguidos de assassinato — “números que não são insignificantes, considerando que o Exército Vermelho só cruzou a extremidade nordeste da Iugoslávia”. Djilas afirma ter levado esse problema até o próprio Stalin.
Ele afirma que o ditador russo respondeu assim: “Djilas, Djilas! Como Djilas, um escritor, não entende o sofrimento e o coração humanos? Não consegue compreender quando um soldado se entretém com uma mulher ou afana alguma ninharia depois de ter marchado milhares de quilômetros vendo sangue, fogo e morte?”.
Nem todo soldado russo era estuprador, e há um ou outro caso de gentileza para com as mulheres perdido entre os relatos alemães das atrocidades do Exército Vermelho. Mas, a meu ver, não adianta tentar colocar a culpa pelo comportamento das tropas soviéticas num panfleto de Ehrenburg, na atitude de Stalin de “garotos são assim mesmo” ou, o que é mais ridículo, em certas características nacionais. Seja em tempos de guerra ou de paz, os homens não precisam de ordens, de permissão ou de um legado nacional específico para cometer um estupro. Os estupros soviéticos eram de uma ironia ainda maior, considerando que os russos exaltavam a ideia do novo homem soviético — que na guerra se comportou como o velho homem que já conhecíamos.
O defeito ideológico não foi que os comissários políticos escolheram o sacrifício do corpo das mulheres para que seus homens amargurados causassem ainda mais destruição, e sim que, a despeito da ideologia socialista a que os homens do Exército Vermelho foram expostos durante a doutrinação, é evidente que o estudo sobre a opressão sexual das mulheres não fazia parte do curso. A dura verdade política é que, em 1945, na Alemanha e na Europa Oriental, o Exército Vermelho se comportou como qualquer outro exército conquistador, seja quanto aos corpos femininos ou aos relógios de pulso.
tão triste, tão real, tão selvagem.