Recebo muitos pedidos de links, livros, textos, perfis e dicas de onde acompanhar a Revolução de Rojava, conhecer melhor o Movimento das Mulheres Curdas e receber notícias do Curdistão. Pensando nisso, juntei nesse painel de refs alguns canais, sites, livros e escritos que podem ser úteis à pesquisa autônoma para quem quer saber mais.
No entanto, gostaria de trazer uma pontuação sobre o porquê fala-se tão pouco sobre Rojava na esquerda brasileira, bem como algumas possíveis limitações das minhas referências antes de adentrar propriamente nelas.
Desde que conheci e comecei a me aprofundar no que está acontecendo no Noroeste da Síria, ficou nítido para mim que a ignorância deliberada da esquerda no geral acerca da Revolução de Rojava está profundamente relacionada à misoginia histórica (que, sempre necessário lembrar, não tem lado político tampouco cor e classe social) somada à atual fase da crise epocal do capitalismo1.
Primeiro, em Rojava, vemos uma revolução onde a superação do patriarcado, que opera por meio da divisão sexual do trabalho, é central à luta, e, portanto, o reconhecimento do processo milenar de escravização objetiva e subjetiva das mulheres para o funcionamento do patriarcado capitalista (e colonial) está presente, desestabilizando a visão hegemônica da esquerda acerca do sujeito histórico masculino e luta de classes centrada na emancipação do homem trabalhador, pois relembra que a forma originária e mais antiga de poder é a dominação exercida pelos homens sobre as mulheres e que esta dá forma às dominações de classe e raça.
Segundo e consequentemente, é possível notar que a elaboração acerca da libertação das mulheres, ao menos nos escritos fundamentais do movimento, é oposta ao que está sendo disseminado no Ocidente em termos de exploração sexual, objetificação das mulheres e o que é considerado emancipação e liberdade femininas, sobretudo pela narrativa feminista ocidental dominante. Ademais, a própria cosmovisão de Abdullah Öcalan e do Movimento de Mulheres Curdas acerca das sociedades matrísticas e da centralidade da economia das mulheres para o desenvolvimento da chamada civilização central é visto como um tipo de heresia “essencialista” pelos Mestres e suas discípulas ocidentais, num ato (nada inédito) de elitismo flagrante.
Reconhecer que mulheres estão sob um processo de acumulação primitiva permanente e, portanto, são tratadas como menos humanos, ou seja, nem sujeitos políticos por inteiro nem trabalhadoras por completo, exige reconhecer o papel dos homens - todos eles - na manutenção desse sistema de exploração e violência direta e indireta ou, como diria Öcalan, na manutenção da guerra de baixa intensidade contra as mulheres2, de forma que o “macho dominante […] está tão interessado em construir seu domínio social sobre a mulher que transforma qualquer contato com ela em uma demonstração de domínio.”3 Não à toa, o líder curdo insiste para as mulheres não esperarem que uma maior democratização e igualdade gerais levem à liberdade das mulheres, sendo necessário uma organização distinta e separada para que possam determinar seu próprio projeto democrático e seus meios de realizá-lo.
Do lado de quem apoia abertamente a revolução de Rojava, não diria que as coisas são muito diferentes. Uma parte (considerável) da militância com a qual tive contato e que adere à propagação da revolução de Rojava o faz sobretudo pelo fetiche com a luta armada, por um lado, e/ou pela (até compreensível) ânsia de buscar validação de teorias anarquistas, por outro. As referências de libertação da mulher, de visão holística e integrada acerca da realidade material, histórica e social das mulheres, e de suas condições de vida econômicas-biológicas-biofísicas, bem como a própria base acerca do pensamento sobre mulher como primeira e última colônia, são pormenorizadas, desarticuladas e apartadas do imperativo da despatriarcalização dos próprios movimentos de esquerda, quando não simplesmente ignoradas até mesmo por militantes ativamente envolvidos na questão. Não à toa, os mesmos grupos que se dizem “apoiadores” da revolução das mulheres acontecendo em Rojava costumam ser aqueles perseguindo, silenciando e ostracizando mulheres que, sob bases teóricas e práticas similares, não raro análogas, buscam a libertação das mulheres e articulam seu próprio projeto emancipatório, onde homens não têm espaço de decisão nem tutela, para além do Curdistão.
Digo, por fim, que dada a própria dificuldade em aceitar a perspectiva emancipatória do Movimento de Mulheres Curdas, já é possível notar um certo colonialismo epistêmico em fluxo, e vocês podem sentir um pouco do gostinho dele aqui, o que também me faz ser reticente e cautelosa com qualquer indicação que não seja de escritos fundamentais e de canais de mulheres locais diretamente inseridas no movimento de liberação.
Pontuações feitas, vamos às refs.
O lado b une textos e reportagens autorais, bem como traduções e textos de autoras convidadas inéditos ou pouco conhecidos, continuando o meu esforço de quase uma década de compartilhar sobre teorias e práticas ecológicas e feministas. Se você gosta do que vê por aqui, considere apoiar o trabalho de uma jornalista e pesquisadora non grata. Saiba como apoiar lado b clicando no botão abaixo.
Filmes e vídeos
Kobanê (2022). Rojava Film Comune, com legendas em português.
Comentei sobre Kobanê em abril de 2023. O filme é baseado na batalha pela retomada da cidade homônima das mãos do Estado Islâmico que teve início em 2014 e acabou com a vitória das guerrilhas curdas em 2015. O confronto deixou 300 mil deslocados e mais de mil mortos. Para além de um filme de guerra, Kobane também é sobre a revolução de Rojava e a importância de Abdullah Öcalan para o povo curdo. É possível ler a entrevista com uma das pessoas envolvidas na produção do longa metragem aqui no lado b.
Jiyan: Story Of A Female Guerilla Fighter (2020). Real Stories, com legendas em inglês.
Um dos primeiros documentários que vi sobre Rojava, esse conta a história de Jiyan Tolhildan, uma guerrilheira curda que passou cerca de vinte anos na guerrilha. Um dos momentos que mais me marcaram foi quando Jiyan diz que não há possibilidade de amor. Entendo que ela estava falando do amor romântico, pois muito do que vi em Jiyan foi amor pela luta para libertação.
The Communes of Rojava: A Model In Societal Self Direction (2018). Neighbor Democracy, com legendas em inglês.
Um documentário para entender a organização das comunas e a democracia de base estabelecida nas regiões liberadas. As comunas são organizadas por e abertas para toda a sociedade, e isso inclui pessoas de diversas etnias para além dos curdos, como assírios, árabes e yezidis.
Welcome to Jinwar, a women-only village in Syria that wants to smash the patriarchy (2019). The Independent, com legendas em inglês.
Para conhecer Jinwar, a vila das mulheres livres, e entender um pouco sobre como funciona a organização da vila, a produção de subsistência, quem são essas mulheres e por que elas estão lá.
Jinwar - Free Women's Village Rojava (2017). Jinwar, com legendas em inglês.
Textos
Selecionei quatro escritos imprescindíveis para compreensão do pensamento de Abdullah Öcalan e da própria práxis do movimento de mulheres, de forma que é possível ir à raiz do projeto revolucionário e acompanhar seu desenvolvimento. O livro do Instituto Andrea Wolf é particularmente interessante por ser um registro tanto da história das mulheres como da luta das mulheres para libertação, com relatos e contribuições de uma série de mulheres diretamente envolvidas nas organizações sociais e no processo revolucionário, algumas desde os anos 1970.
COMITÉ DE JINEOLOJÎ EUROPA. Jineolojî, Comité de Mujeres en Solidaridad con Kurdistán, 2017.
INSTITUTO ANDREA WOLF. Mujer, vida, libertad: Desde el corazón del movimiento de las mujeres libres de Kurdistán. Barcelona: Descontrol Editorial, 2020.
ÖCALAN, Abdullah. Confederalismo Democrático.
ÖCALAN, Abdullah. Libertando a Vida: a Revolução das Mulheres.
Canais e mídias
ANF News • https://anfenglishmobile.com
Jinha • https://test.jinhaagency.com/en
North Press • https://npasyria.com/en/
Rojava Information Center • https://rojavainformationcenter.org
Sites e redes oficiais
Autonomous Administration of North and East Syria • https://aanesgov.org
Jineolojî Europe • https://jineoloji.eu
Syrian Democratic Forces • https://twitter.com/sdf_syria
Syrian Democratic Forces Press • https://sdf-press.com/en/
Women Defend Rojava • https://womendefendrojava.net
COLERATO, Marina P. Crise climática e Antropoceno: perspectivas ecofeministas para liberar a vida. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2023.
ÖCALAN, Abdullah. The sociology of freedom: Manifesto of the Democratic Civilization, volume III. Oakland: PM Press, 2020. p. 107.
ÖCALAN, Abdullah. The political thought of Abdullah Öcalan: Kurdistan Women's Revolution and Democratic Confederalism. London: Pluto Press, 2017, p. 58.