O texto abaixo é um trecho retirado do capítulo quatro da minha dissertação de mestrado, Crise Climática e Antropoceno: perspectivas ecofeministas para liberar a vida, que pode ser lida na íntegra aqui.
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O status das mulheres como inferiores aos homens já estava estabelecido antes da redação do Antigo Testamento, da Bíblia hebraica, e antes do estabelecimento do monoteísmo. No entanto, as mulheres não só podiam falar com os deuses, como havia deusas, sacerdotisas, curandeiras e adivinhas. Essa possibilidade de mediar o mundo humano com o sobrenatural, apesar das funções diferentes que mulheres e homens acabaram por desenvolver nas primeiras sociedades no Antigo Oriente Próximo, não permitiu a desumanização completa das mulheres fazendo com que estas continuassem sendo vistas como seres humanos, assim como os homens.
Existem várias interpretações possíveis acerca das causas para as mudanças nos padrões de crenças religiosas e o estabelecimento do monoteísmo. Para a historiadora Gerda Lerner (2021) as explicações se encontram sobretudo na necessidade de fortalecer o poder de reis e impérios, somado ao desenvolvimento do pensamento abstrato após a invenção da escrita. Não entraremos nesses detalhes. O que me interessa aqui é relembrar a Grande Deusa.
A difusão da veneração da Deusa-Mãe até a Idade do Bronze é comprovada por diversos arqueólogos hoje, sobretudo por meio das evidências do quarto milênio a.C. em diante, sendo possível comprovar a existência de veneração à Grande Deusa na Suméria, como Ninhursag ou Inanna; na Babilônia, como Kubab e Ishtar; na Fenícia, como Astarte; em Canaã, como Anat; e na Grécia, como Hécate-Ártemis. À Deusa-Mãe, em suas diversas manifestações, pertencia o poder de criar a vida e tirá-la.
Na figura da Deusa, a dualidade presente não está em oposição. A Deusa era tão celebrada por sua virgindade e qualidades maternais quanto por sua sexualidade livre, protetora das prostitutas e padroeira das tabernas. Podemos considerar que essa dualidade se relacionava com a dualidade observável na natureza (dia e noite, luz e escuridão, nascimento e morte). Dessa forma, a força feminina era reconhecida como aterradora, poderosa e transcendente.
O sistema de crenças que se manifestava na adoração da Grande Deusa era monístico e animista. Nessas concepções seres não humanos possuem uma essência espiritual e razão de ser assim como os humanos ao passo que não existe uma concepção dualista de mente versus corpo ou humano versus natureza. Na Grande Deusa estava incorporada “a unidade entre a terra e as estrelas, humanos e natureza, nascimento e morte” (LERNER, 2021, p. 191), uma visão organicista que prevaleceu até “a morte da natureza”, com a Revolução Científica (ou as revoluções científicas do século XVI) e o estabelecimento do mecanicismo como teoria hegemônica e paradigma científico.
É possível encontrar a supremacia da Deusa criadora no mito de origem egípcio, onde a deusa Nun dá à luz ao deus do sol Atum, que cria o restante do universo; na suméria, onde a deusa Nammu cria por partenogênese o deus do céu An e a deusa da Terra Ki; na mitologia grega, onde a deusa da terra Gaia cria o céu Urano e toda a humanidade; e na versão assíria onde a sábia Mami, “a mãe-ventre”, cria e molda a humanidade com argila com a ajuda do deus masculino Ea. Para Lerner, essas histórias de criação expressam conceitos oriundos de modos anteriores de adoração à fertilidade feminina, representada em seios e vulvas. A Grande Deusa reúne sob seu poder a deusa do mar, da água, da virgindade. Em todas as suas manifestações, é a Deusa que guarda os segredos e os mistérios da vida e da criação.
Homens e mulheres que ofereciam preces às deusas provavelmente criam em seu poder metafísico, bem como no poder metafísico de mulheres terrenas em falar com a Deusa, como as sacerdotisas. Na Mesopotâmia, Enheduana, que viveu aproximadamente entre 2285 a.C. e 2250 a.C., no reinado de Sargão de Acade, foi filha deste e Suma Sacerdotisa do templo de Ur, dedicado ao Nana, conhecido como Sîn ou Suen, um deus lunar também importante no panteão.
Enheduana teve um papel político importante ao unificar o sistema de crenças na Antiga Mesopotâmia, sobretudo por meio dos chamados Hinos Templários, e cimentar o sincretismo religioso entre os deuses semíticos, como Ishtar, Sîn e Shamash e suas existências sumérias como Inana, Nanu e Utu. Por sua obra “A Exaltação de Inana”, que data de cerca de 4.000 anos atrás, Enheduana se tornou a primeira pessoa que escreveu o que chamamos hoje de literatura, deixando sua marca para a posteridade, sendo possível pela primeira vez na história estabelecer a ligação entre uma obra de poesia a um indivíduo com um nome.
No entanto, como é possível observar, os deuses masculinos não raro estão presentes e a noção de cooperação entre o feminino e o masculino no processo de criação passará a se estabelecer com firmeza na mitologia suméria e acádia. Isso pode ser explicado pelo fato de a função do homem no processo reprodutivo ter se tornando mais aparente após a prática da domesticação de animais ser difundida.
Em um momento posterior, poderemos observar que ainda é a Grande Deusa quem cria a vida, mas sempre associada a um parceiro masculino mais novo, filho ou irmão, que acasala com ela, o que acabou por se estabelecer como o Casamento Sagrado (hieros gamos). Os ritos anuais celebrados no quarto e terceiro milênio a.C. expressavam essa crença e o ciclo anual das estações só podia começar após o acasalamento da Deusa com o jovem deus, pois a sexualidade da Deusa é sagrada e capaz de conceder bênçãos de fertilidade à terra e às pessoas.
O Casamento Sagrado podia ser observado na Mesopotâmia, Síria, Canaã e no Egeu. Aqui, já é possível notar uma mudança significativa entre a Deusa-Mãe toda poderosa, com sua fertilidade abrangente e transcendente, para “uma fertilidade mais domesticada da semente cultivada.” (Lerner, 2021, p. 193).
O estágio de transição, da Grande Deusa e dos múltiplos deuses, para o que se tornaria um único Deus onisciente e onipresente aconteceu em algum momento a partir do terceiro milênio a.C. e perdura por cerca de mil anos, até culminar no livro de Gênesis, primeiro livro da Bíblia. A transição foi marcada pela substituição da liderança do panteão, da Deusa-Mãe para um deus masculino, geralmente do ar, do trovão ou do vento.
O destronamento da Deusa-Mãe ocorreu em muitas culturas e em momentos diferentes, mas ela continuou a ter força na religião popular por meio de novas manifestações. Lerner considera que a mudança da Deusa-Mãe para um deus masculino e único tenha sido mais prescritiva do que descritiva se considerarmos as intenções políticas por trás dos textos e documentos preservados, frutos do trabalho de escribas sacerdotais e aprovados pela elite da sociedade. Isso pode explicar a persistência de cultos e adorações a deusas entre diversas sociedades, como o culto a Aserá, em Canaã, que coexistiu ao longo de centenas de anos com o culto a Jeová e é condenado com frequência no Antigo Testamento.
O estabelecimento de um sacerdócio exclusivamente masculino aconteceu sob uma intensa batalha ideológica que acabou por tirar as mulheres da ordem divina por completo com o desenvolvimento do monoteísmo, a consolidação do Deus Todo-Poderoso e a definição de mulheres como criaturas essencialmente diferentes dos homens, cuja existência e sexualidade eram reconhecidas dentro dos limites da dominação patriarcal. O livro de Gênesis marca, assim, o momento histórico da morte da Deusa-Mãe e sua substituição pelo Deus-Pai.
Essa mudança precede e posteriormente se une ao estabelecimento de uma Filosofia e Ciência onde mulheres foram apresentadas como inferiores aos homens e destituídas do princípio da alma e da razão, o que, por sua vez, serviu de base ideológica à caça às bruxas, que pode ser considerada “a maior matança de seres humanos não motivada pela guerra”. (MIES, 2022, p. 172).
Fazendo algumas buscas despretensiosas de imagens da Deusa, encontrei essa curiosa linha do tempo ilustrada com as diversas variações da Grande Deusa em um site chamado The Goddess Timeline. Não é possível ler os textos, mas é possível observar como o imaginário acerca da Deusa tomou forma ao longo dos milhares de anos desde o Paleolítico, bem como sua persistência apesar do passar do tempo. Vale notar que o conhecimento acerca da existência de uma Grande Deusa é bastante recente e a resistência acadêmica em aceitá-la exigiu (e exige) das pesquisadoras o mesmo que se exige de qualquer mulher enfrentando os paradigmas patriarcais da ciência: persistência e coragem.