sociologia ecofeminista como uma nova análise de classes
bônus track #5 [leituras ecofeministas]
Sociologia ecofeminista como uma nova análise de classes
Por Ariel Salleh
Texto publicado originalmente na Revista Diálogo Global, vol. 9 núm 1, abril de 2019. A publicação original pode ser acessada aqui.
tempo de leitura: 11min
As análises feministas ecológicas crescem a partir da práxis da vida cotidiana, de modo que, muitas vezes, questionam as premissas assumidas pelos movimentos sociais enquadradas de cima para baixo pelas ideologias políticas estabelecidas. Por exemplo, durante os anos 80 e 90, as ecofeministas contestaram a falta de consciência de gênero e de sexualidade na filosofia da “ecologia profunda”. Não que os objetivos ambientais do programa fossem rejeitados pelas ecofeministas; ao contrário, como argumentaram, a crise planetária teve suas origens no sistema de globalização acelerada das instituições e valores patriarcais capitalistas. Por essa razão, as soluções da crise devem mudar “a cultura do direito masculinista” que apoia esse sistema. Essa controvérsia, conhecida como “ecofeminismo/debate sobre ecologia profunda”, foi originalmente publicada há mais de uma década na revista americana Environmental Ethics. Em um exercício de conscientização semelhante, as teóricas feministas ecológicas engajaram-se criticamente na erudição marxista. Na última década, artigos do Capitalism Nature Socialism, do Journal of World-Systems Research, e de outros veículos, ampliaram a compreensão pública do ecofeminismo como uma sociologia crítica. Minha posição é que a conjuntura global contemporânea exige uma nova análise sociológica de classe. Então, o que se segue é um breve esboço da trajetória histórica e das reivindicações do que eu rotulo de “materialismo corporificado”.
Um materialismo corporificado
Na experiência prática desse tipo de trabalho, as mães aprendem a sustentar ciclos biológicos nos corpos de que cuidam. Da mesma forma, os camponeses e os coletores sintonizam e regeneram ciclos na terra. Esses trabalhadores não monetarizados são, em grande parte, invisíveis na economia global, não adequadamente reconhecidos na sociologia, nem teorizados no marxismo. Mas pode-se argumentar que, juntos, esses três grupos de trabalhadores – mães, camponeses e coletores – formam uma classe cuja hora chegou, em razão de suas habilidades materiais de possibilitar a vida na Terra.
A palavra feminismo ecológico é amplamente usada para descrever uma política que trata a ecologia e o feminismo como uma luta. Surgiu quando as condições de vida nos bairros urbanos e nas comunidades rurais estavam em risco. Mulheres ou homens podem estar envolvidos em trabalhos de afirmação da vida, mas como são principalmente as mulheres, em todo o mundo, que são socialmente alocadas como cuidadoras e produtoras de alimentos, geralmente são as mulheres de uma comunidade que, primeiro, tomam a ação ambiental. Intervenções desse tipo são universais, independentemente da região, classe ou etnia; isto é, elas são exclusivamente interseccionais. Em todos os continentes a partir da década de 1970, as mulheres em resposta aos danos colaterais dos modelos de consumo e desenvolvimento capitalistas do pós-guerra começaram a fazer o que chamavam de “ecofeminismo”. Seja se opondo a poluentes tóxicos, desmatamento, energia nuclear ou agroindústria, sua política sempre conectada ao “local” e ao “global”. Ecofeministas alemãs como Maria Mies até construíram seu trabalho explicitamente sobre a contribuição socialista de Rosa Luxemburgo.
A década de 1980 também viu a rápida ascensão de “novos movimentos sociais” – anti-armas nucleares, Black Power, Women’s Lib, direito indígena à terra – e os marxistas estavam ertos em ser céticos. A ecologia radical seria cooptada pelos partidos verdes e profissionais tecnocratas. O feminismo foi desviado pelo individualismo liberal e se transformou em uma negociação com o estado de um único problema por direitos iguais. A próxima fase do ecofeminismo se seguiu à Cúpula da Terra das Nações Unidas, em 1992, que intensificou as políticas neocoloniais do Norte Global em nome da proteção da natureza. Dali então, um plano mestre mundial de acordos regionais abriu o caminho para a mineração corporativa de solos indígenas e o patenteamento corporativo de plantas medicinais indígenas. As ecofeministas como Vandana Shiva e outras estiveram presentes na Cúpula da Terra do Rio e fizeram o que puderam para se opor às medidas. Rapidamente, como registrado pela socióloga peruana Ana Isla, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática forçaria novas concessões dos menos empoderados. O século XX fechou com a Batalha por Seattle, onde uma insurgência de base internacional enfrentou a Organização Mundial do Comércio. Esse amplo movimento de movimentos por uma alternativa à globalização realizou seu primeiro Fórum Social Mundial em 2001.
Globalização e descolonização
A expansão do livre comércio neoliberal desmoralizou o proletariado nos estados metropolitanos, enviando seus empregos off shore para zonas de processamento de exportação de baixos salários no Sul Global. Mas muitas pessoas na periferia geopolítica tinham uma agenda positiva - a agenda da descolonização. No Brasil, um vibrante Movimento Sem Terra estava falando sobre ecovilas e soberania alimentar. No Equador, as mulheres da Ação Ecológica [Acción Ecológica] inventaram o conceito de “dívida ecológica” para descrever os 500 anos de roubo colonial de recursos naturais; o roubo moderno constituído pelo interesse do Banco Mundial em empréstimos para desenvolvimento; e a contínua degradação dos meios de subsistência resultantes do extrativismo econômico. Justiça com a sustentabilidade também foi destaque na Cúpula do Clima de Cochabamba, em 2010, que apresentou formas andinas de aprovisionamento como uma alternativa ao desgaste da vida sob o luxo manufaturado. A equação de industrialização com progresso estava sob interrogatório.
Após o colapso financeiro de 2008, jovens globalmente conscientes começaram o movimento Occupy, montando um acampamento perto da bolsa de valores de Wall Street para protestar contra a classe capitalista; na Alemanha, eles bloquearam os bancos de Frankfurt. Outra política baseada em “valores reprodutivos” afirmadores da vida surgiu nos países do Mediterrâneo, resistindo aos programas de austeridade da União Europeia. Os indignados da Espanha iniciaram uma variedade de economias de bairro autossuficientes. Na Rio+20, em 2012, grupos empresariais, políticos e o Programa Ambiental da ONU intensificaram sua proposta de Novo Acordo Verde [Green New Deal] - um exercício de relações públicas para a bioeconomia de nanotecnologia; e, novamente, as ecofeministas os desafiaram. Depois disso, acadêmicos se reuniram em Leipzig e Budapeste para discutir o decrescimento, embora a visão pós-desenvolvimento de pensadoras ecofeministas de subsistência como Veronika Bennholdt-Thomsen ainda não fosse reconhecida. Hoje, a Rosa-Luxemburg-Stiftung está examinando a convergência do ecofeminismo e outras políticas orientadas para a comunidade como o buen vivir da América do Sul, o ubuntu da África do Sul e o swaraj da Índia.
As ecofeministas têm uma extensa literatura, frequentemente ensinada nas universidades, que analisa como, sob a cultura capitalista patriarcal, o cercamento e a mercantilização da natureza ecoam no cercamento e na mercantilização dos corpos de trabalho das mulheres. Alusões tradicionais à Mãe Natureza são muito mais do que uma metáfora. Como Greta Gaard aponta, uma ética compassiva do veganismo circula agora entre as redes ecofeministas e são realizadas reuniões internacionais regulares sobre Minding Animals [Cuidado dos Animais]. Mulheres em toda a África cuja subsistência é ameaçada pela mineração perto de suas aldeias criaram a WoMin, uma rede continental anti-extrativista com seu próprio manifesto ecofeminista sobre a mudança climática. As Mães Apalaches nos EUA organizam ação direta contra a remoção do topo de montanhas pela indústria do carvão. A Escola Navdanya, da Índia, fortalece a ecossuficiência de “bancos” de sementes tradicionais para salvá-los do patenteamento farmacêutico. Em Sichuan, na China, as camponesas restauram a fertilidade do solo revivendo técnicas orgânicas seculares. E, em Londres, as donas de casa dedicam seu tempo para consertar a bacia hidrográfica do rio Tâmisa após séculos de abuso.
Antropocentrismo: ecocentrismo
Quando ativistas ou, melhor dizendo, sociólogos da ISA RC48, não veem como a lógica da reprodução que interconecta ecologia, trabalhadores, mulheres e movimentos indígenas, ocasiona uma questão única destrutiva de “política de identidade”, na qual os direitos de um grupo são colocados contra outro. Essa imaginação sociológica restrita é uma expressão do dualismo ocidental antropocêntrico da “humanidade” versus “natureza”, um “senso comum” tradicional que é reencenado com a socialização de toda nova geração.
Infelizmente, as engrenagens da globalização ainda são engraxadas pela hierarquia de Aristóteles da “Grande Cadeia do Ser”, uma antiga lógica discursiva que coloca deuses, reis e homens no ápice da vida social, tendo poder sobre os subordinados como mulheres, indígenas e natureza. O antigo mantra aristotélico estruturou a direção da história de tal forma que, ao longo dos séculos, as mulheres e os escravos conquistados se tornariam meros objetos. As instituições eurocêntricas, da religião e lei à economia e ciência, foram projetadas para servir ao “direito masculinista” – a posição padrão internacional em curso para liberais e socialistas. Como observa a historiadora ecofeminista da ciência Carolyn Merchant, a razão iluminista conceituou os corpos e a natureza como máquinas com partes a serem controladas por fórmulas matemáticas. Essa cultura alienada da vida é indispensável ao funcionamento do capitalismo e é mantida na sociologia por alguns modernistas ecológicos da ISA RC24 que acreditam que a inovação tecnológica pode salvar o meio ambiente. No entanto, o futuro automatizado não será prontamente “desmaterializado” em sustentabilidade ou justiça. Da mesma forma, gestos como a economia circular ou a transvaloração do trabalho de cuidado por economistas feministas são reabsorvidos pela lógica do capital.
Em uma época de crise ecológica, as pessoas precisam ser capazes de pensar dentro de uma estrutura ecocêntrica. Quando isso apresenta aos professores de sociologia um desafio, os estudantes radicais frequentemente se deslocam para a ecologia política ou mesmo para a geografia humana. Mas os profissionais modernistas podem aprender muito com o ecocentrismo de epistemologias e análises indígenas baseadas em experiências femininas de trabalho de cuidado orgânico.
O discurso da “humanidade” versus “natureza” impediu a esquerda, e particularmente, as feministas pós-modernas, de levar a sério essa força de trabalho reprodutiva marginalizada como atores políticos. A acusação usual da esquerda é que as ecofeministas atribuem insights políticos das mulheres a uma “essência feminina” inata, o que é obviamente um absurdo. A fonte das percepções ecofeministas não é a incorporação biológica, nem as estruturas econômicas, nem os costumes culturais, embora todas essas coisas influenciem a ação humana. Em vez disso, uma epistemologia ecofeminista baseia-se no trabalho: na criação e recriação de entendimentos e habilidades através da interação com o mundo material vivo. As pessoas que trabalham de forma autônoma, fora das rotinas industriais entorpecentes - cuidadores, agricultores, coletores - estão em contato com todas as suas capacidades sensoriais e são capazes de construir modelos mais precisos e ressonantes de como uma coisa se relaciona com outra.
Trabalho regenerativo
A estrutura de tempo dessa classe [grifo da autora] de trabalhadores ecocêntricos é intergeracional e, portanto, intrinsecamente cautelar. A escala é íntima, maximizando a capacidade de resposta dos trabalhadores às transferências de energia e matéria na natureza ou nos corpos humanos como natureza. O julgamento é baseado em uma especialização construída por tentativa e erro, usando uma avaliação do ecossistema ou da saúde do corpo do berço ao túmulo. As diversas necessidades de espécies ou grupos etários são equilibradas e reconciliadas. Onde as economias doméstica e de subsistência praticam a solução de problemas de forma sinérgica, a tomada de decisões multicritério é uma questão de bom senso. Quando não há divisão entre habilidades mentais e manuais, a responsabilidade é transparente; o produto do trabalho não é alienado do trabalhador como no capitalismo, mas desfrutado no compartilhamento com os outros. Aqui, a lógica linear da produção dá lugar a uma lógica circular de reprodução. De fato, o provisionamento social é, ao mesmo tempo, ciência vernacular e ação política direta.
O feminismo ecológico defende políticas sinérgicas, promovendo meios de subsistência, empregos qualificados, solidariedade, autonomia cultural, conscientização sobre gênero sexual, aprendizado, capacitação e renovação espiritual. Um exemplo atual pode ser encontrado no Equador entre as mães e avós das colinas devastadas pelo desenvolvimento de Nabon. Com visão e criatividade, essas mulheres autogovernadas conseguiram o controle da erosão, a captação de água, a fertilidade do solo e a soberania alimentar através do plantio para restaurar antigas bacias hidrográficas e córregos. Nisso, elas também fizeram sua parte para a crise climática global. Assim também, o sindicato camponês internacional Via Campesina insiste que “nosso abastecimento de pequena escala esfria a Terra”.
O trabalho reprodutivo cria “formas de conhecimento” relacionais que se contrapõem à violência mecanicista da razão instrumental ocidental. A menos que a política radical seja guiada pelo trabalho de cuidado, ela voltará rapidamente ao tipo de Iluminismo que trata a Terra e seus povos como um recurso sem fim para a economia em crescimento. Enquanto a razão linear da indústria moderna atravessa o metabolismo da natureza, deixando a desordem e a entropia para trás, as metaindústrias que nutrem os processos vivos desenvolvem epistemologias tácitas que expressam uma forma alternativa de criatividade humana. Esse trabalho, livremente apropriado pelo capital, tanto de suas periferias domésticas quanto geográficas, é de fato o pré-requisito do modo de produção do capitalismo. Ou seja, essa classe única de trabalhadores existe “dentro do capitalismo” quando sua atividade subsidia a mais-valia; no entanto, o provisionamento reprodutivo também existe “fora do capitalismo”, suficiente para si mesmo. Meu termo “meta” implica um quadro fundamental, que mantém atividades subsidiárias no lugar.
Economias ecossuficientes não externalizam custos explorando os corpos de outros, nem externalizam o desperdício como “poluição”. Essa habilidade de trabalho regenerativo é indispensável para um futuro global sustentável e o fato marcante é que já é praticado pela maioria mundial dos trabalhadores. Esse reconhecimento concede grande poder estratégico à classe metaindustrial como ator histórico na arena política internacional. A preocupação socialista clássica com as “relações de produção” exploradoras é extremamente importante, uma vez que tem sido a preocupação marginalizada pelas “relações de reprodução” opressivas. Dito isso, há passagens nos escritos de Marx que poderiam ter descrito “a classe de trabalho metaindustrial”, que tivesse tido o seu enfoque humanista menos limitado pelo patriarcado e pelo eurocentrismo.
Ariel Salleh é australiana, ativista, autora de Ecofeminism as Politics: Nature, Marx, and the Postmodern (2007 [1997]) e organizadora de Eco-Sufficiency and Global Justice: Women Write Political Ecology (2009). Fundadora da revista Capitalism Nature Socialism, é também professora associada de economia política na Universidade de Sydney, Austrália, catedrática emérita na Universidade Friedrich Schiller, em Jena, Alemanha, e professora visitante na Universidade Nelson Mandela, na África do Sul. No Brasil, você encontra seus textos nos livros Capitalismo em quarentena e Pluriverso, ambos da Editora Elefante. Leia o texto original em inglês aqui.