Descobri sobre Bhopal e a empresa química norte-americana Union Carbide lendo Maria Mies, embora não lembre exatamente em qual texto. O caso de Bophal ilustra bem a forma como corporações multinacionais nunca perdem: apesar de ser considerado o pior acidente industrial da história, os CEOs da Union Carbide nunca foram a julgamento e a empresa continuou fazendo negócios como de costume até ser comprada pela Dow Chemicals, entre 1999 e 2001. Essa, por sua vez, lavou as mãos sobre qualquer responsabilidade em Bhopal.
Era pouco mais de meia-noite de 2 de dezembro de 1984, e o projeto neoliberal já havia avançado, e muito, nas periferias do Sul global desde a assinatura do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), em 1947. Foi o primeiro passo para facilitar o fluxo de dinheiro e mercadorias entre nações e abrir caminho para os acordos de livre comércio posteriores até o estabelecimento da Organização Mundial do Comércio (OMC). A planta de Bophal, instalada a cerca de 10 passos de uma enorme favela em Madhya Pradesh no início dos anos 1970, produzia agroquímicos utilizando um tipo de gás letal chamado isocianato de metila (MIC). Operando sob o menor custo possível, a manutenção dos sistemas de segurança não era feita há anos, enquanto funcionários não tinham acesso nem a treinamento nem a equipamentos de proteção mínimos. A Union Carbide era uma bomba-relógio, como já reportava o jornal local, e foi questão de tempo para que explodisse, soltando vinte e sete toneladas de gás MIC no ar.
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Foi uma madrugada apocalíptica: cerca de 3 mil pessoas morreram instantaneamente, estima-se que cerca de 20 a 25 mil pessoas morreram ao longo da tragédia e cerca de 500 mil foram negativamente impactadas. Não estamos contando aqui o impacto na fauna e nos animais domésticos. Como sempre, a explosão afetou as mulheres de forma particular, mesmo aquelas que ainda tinham apenas alguns dias de vida. Hoje, elas enfrentam elevadas taxas de infertilidade, parem natimortos, sofrem abortos espontâneos, têm menopausa precoce e problemas nos ciclos menstruais. Para as mulheres indianas, isso significa a impossibilidade de casar por não conseguirem cumprir com “seus deveres como esposas”.
O centro infantil Chingari, criado para nascidos com deficiência em consequência da catástrofe, atende atualmente mais de 1.000 crianças, sendo a maioria afetada por paralisia cerebral, distrofia muscular, autismo, deficiência intelectual e graves dificuldades de aprendizagem. “Este é o terrível legado de Bhopal: todas estas crianças nasceram de pais, ou mesmo avós, que estiveram em contato com o gás naquela noite”, disse Rashida Bee, fundadora do centro, ao The Guardian, em 2019. “A situação está piorando, não melhorando. Estamos vendo cada vez mais crianças de segunda e terceira geração nascendo com essas deficiências e vindo para cá. A tragédia de Bhopal não parou”.
A crise de Covid-19 foi especialmente impactante para a população de Bhopal convivendo com os problemas pulmonares permanentes dada a exposição ao MIC: 75% das mortes em decorrência da pandemia do coronavírus foram de vítimas do vazamento de gás.
Money talks, bullshit walks
Depois da tragédia, os norte-americanos subiram em um jato particular e voaram de volta para os EUA. A planta de Bophal foi deixada para trás para enferrujar sem que a Union Carbide conduzisse sequer uma limpeza para remoção do lixo tóxico. Toneladas de produtos químicos altamente contaminantes e nocivos para saúde foram deixados no local e os esforços feitos pelas autoridades foram os de convencer a população de que não havia problemas ou riscos. Os indianos co-responsáveis pela tragédia também não enfrentaram consequências legais.
Desde o início das operações, a Union Carbide rotineiramente despejou resíduos químicos altamente tóxicos em locais dentro e fora da fábrica. Milhares de toneladas de pesticidas, solventes, catalisadores químicos e subprodutos foram espalhados por seis hectares dentro da planta. Após o abandono da fábrica, as lagoas de evaporação, com cerca de 14 hectares localizadas do lado exterior, foram preenchidas com milhares de litros de resíduos líquidos tóxicos. A planta fabril em decomposição continha mais de 60 toneladas de MIC. O contato com as chuvas sazonais fez com que as lagoas de evaporação de resíduos químicos transbordassem. As toxinas penetraram no solo e nos poços subterrâneos, e a água contaminada entrou no sistema de distribuição, chegando a 42 bairros.
Em testes secretos realizados pela Union Carbide em 1989, cujos resultados foram posteriormente vistos pelo Bhopal Medical Appeal, a empresa concluiu que o local estava letalmente contaminado, mas escolheu manter segredo e negar qualquer acusação. Foi em 1999 que os testes de águas subterrâneas e de consumo dentro e fora da fábrica, que revelaram níveis de mercúrio até 6 milhões de vezes maiores do que os níveis aceitos pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA, foram expostos ao público. Testes publicados em um relatório de 2002 revelaram venenos como 1,3,5-triclorobenzeno, diclorometano, clorofórmio, chumbo e mercúrio no leite materno, e que as crianças de mulheres afetadas por gás sofriam de uma série de doenças debilitantes.
Em resumo, a água de Bhopal se tornou uma combinação tóxica que causa câncer, danos cerebrais, abortos espontâneos, problemas reprodutivos, dores crônicas, problemas respiratórios, de coração e defeitos congênitos.
Em 1989, o Union Carbide, em um acordo parcial extrajudicial com o governo indiano, concordou em pagar 470 milhões de dólares em indenização às vítimas do desastre. As indenizações variavam de 250 a 500 dólares por pessoa, ou o que foi considerado suficiente para pagar despesas médicas por cinco anos. No entanto, as organizações da sociedade civil buscando justiça alegam que algumas pessoas não receberam nada. A Dow, por sua vez, fez de tudo para se livrar do passivo da Union Carbide na Índia, e se negou a assumir a responsabilidade pelo segundo desastre, a contaminação da água da cidade por lixo tóxico. Nota-se, porém, que a Dow fez um acordo de 2,2 bilhões de dólares na justiça norte-americana para compensar trabalhadores nos EUA afetados pela utilização de amianto em produtos da Union Carbide. Mas fica pior, como sempre. A Dow se recusa a compartilhar com a comunidade médica indiana as informações que detém sobre os efeitos do MIC, tratando-os como segredo comercial.
Imperialismo e racismo do Norte ao Sul
Warren Anderson era o presidente e CEO da Union Carbide à época da tragédia. Em 1991, a justiça indiana fez acusações contra Warren, mas ele nunca voltou a Índia e nunca foi julgado. Os pedidos de extradição do governo indiano ficaram sentados na gaveta por anos. Mesmo se tivesse sido julgado e condenado, Warren, que faleceu em 2014 na Florida, não pegaria mais do que 10 anos de prisão.
E-mails divulgados como parte do WikiLeaks mostram que, em 2010, quando o governo indiano pressionou para reabrir o acordo de compensação para as vítimas de Bhopal, Robert Hormats, subsecretário de Estado do presidente Obama, se reuniu com o então ministro do gabinete indiano Montek Ahluwalia para comunicar que seria “muito ruim reabrir um acordo”. Hormats agora é vice-presidente da Kissinger Associates, a empresa de consultoria geopolítica criada pelo ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, que assumiu a Union Carbide como cliente após a tragédia e fez lobby em seu nome por anos depois.
Os documentos do departamento de Estado também revelam que, em sua visita à Índia em 2010, o presidente Barack Obama não se encontrou com ONGs que lidam com Bhopal para evitar a questão, sendo um dos principais objetivos da sua visita enfatizar seu “apoio aos negócios da Dow na Índia”.
Entre 2014 e 2019, em seis ocasiões distintas, o Departamento de Justiça dos EUA não passou adiante a intimação para a Dow Chemical comparecer ao Tribunal de Bhopal sob acusações criminais de abrigar um fugitivo, sua subsidiária Union Carbide. Apesar de ser uma violação direta do tratado de assistência jurídica mútua entre os EUA e a Índia, a Dow Chemical nunca apareceu nos tribunais indianos para responder às acusações criminais. O governo indiano também foi acusado de se curvar aos interesses corporativos desde o começo.
A realidade é pura insanidade
A Netflix fez um bom trabalho em relembrar Bhopal, e alguns dos indianos que sacrificaram sua vida para salvar milhares de outras, em sua nova minissérie The Railway Man. A angústia, o desespero e a incredulidade frente ao absurdo de tudo relacionado à tragédia de Bhopal foram transmitidas sem sutilezas. Por várias vezes durante a série, a vontade é de fazer o que as vítimas da Union Carbide nunca puderam fazer, esquecer Bhopal e seguir em frente.
Há muitos momentos onde as várias facetas dessa realidade insana se revelam, a começar por como funciona o processo de aprovação da indústria fármaco-química. Alex Braun foi o toxicologista reticente em aprovar o uso do MIC em Bhopal, mas seu chefe foi claro em dizer que “as empresas pagam, portanto controlam os resultados”. O chefe sabia que a fábrica seria instalada no meio da cidade e que os riscos eram altíssimos. Mas o absurdo não parou por ai. Aconteceu de Braun estar em Deli no dia do vazamento. Quando ficou sabendo, ele conseguiu milhares de doses de um medicamento que atenuava a intoxicação e funcionava como um tipo de antídoto ao MIC, mas as doses foram barradas e Braun foi extraditado do país em questão de horas.
O ator que interpreta Warren também foi bom em transmitir o racismo e o classismo que emanam da forma como corporações multinacionais e seus funcionários tratam com as populações do Sul global onde instalam suas fábricas visando o mínimo de responsabilidade e o máximo de lucros. Mas a postura das elites locais também não ficou de fora: as autoridades indianas simplesmente se negaram a enviar ajuda, água e medicamentos à cidade e ainda tentaram punir quem desobedeceu às ordens.
Desde antes de tragédia, a verdade é que a população de Bhopal foi deixada para trás tanto pelas corporações como pelo governo indiano, assim como a fábrica enferruja e o lixo tóxico. Apesar das marchas anuais demandando justiça e relembrando as vítimas, a desesperança, a tristeza e o cansaço de uma vida marcada por consequentes derrotas, dor e morte são incontornáveis frente à realidade: “Não tenho mais esperança de justiça. Caminhamos duas vezes até Deli em protesto, e por quê”, diz Leela Bai Ahivwar, 70 anos e sobrevivente do vazamento de gás naquela noite. “Quase todo mundo se foi agora. Talvez finalmente seja a minha vez”. Para Sanjay Yadav, todos os dias são de punição, “enquanto as empresas e o governo escapam impunes sem fazer nada há 35 anos”.