Já é tempo de abrir os trabalhos de 2024 por aqui. Começo, claro, desejando que as lutas deste ano que entra sejam pequenas comparadas às vitórias. Como diria Sabotage, vai na fé, não na sorte.
Dou partida compartilhando uma novidade que, imagino, muitas vão gostar: a partir de fevereiro, teremos o Na Fogueira, uma seção especial aqui do lado b em áudio e exclusiva para apoiadores, onde vou receber convidadas e convidados para compartilhar sobre perseguição, cancelamento e a vida após o peak trans (na academia e fora dela). Meu objetivo é navegarmos juntas pela complexidade da caça às bruxas da era ciborgue.
Estou dando o spoiler porque, a partir de fevereiro, o valor de apoio mensal e anual para acessar o conteúdo fechado do lado b, inclusive o Na Fogueira, vai aumentar um pouco. Para quem já apoiou o financiamento coletivo da formação política em formato podcast Feminismo é luta de classes! na faixa de recompensa Agricultora\o/ para cima, o acesso está garantido pelo período da recompensa escolhida e liberado a partir de fevereiro. Quem já fez o apoio anual, não precisa se preocupar, pois o valor só será atualizado na próxima renovação.
restam menos de 20 dias para o fim do financiamento coletivo para tirar do papel a formação política em formato podcast Feminismo é luta de classes! Se ainda não apoiou, apoie e aproveite para garantir o acesso ao conteúdo exclusivo do lado b. se 500 pessoas apoiarem com R$ 50, é possível bater a primeira meta com alguma folga. e 500 pessoas é apenas metade da quantidade média de pessoas que acessam cada post por aqui!
Outra novidade é que abri um formulário permanente para vocês deixarem sugestões de temas e pautas, inclusive possíveis traduções, conteúdos de outras autoras e pessoas para sentarem Na Fogueira comigo, assim como sugerir colaborações e até mesmo me sinalizar caso você seja escritora ou jornalista ou pesquisadora e acredite que o lado b é o lugar ideal para abrigar seu texto. O link será sempre esse aqui: https://bit.ly/sugestaoladob.
Nesse formulário vocês também poderão sugerir livros (de ficção ou não-ficção) para leitura de trecho e resenha no “leituras da má”. Acabei deixando essa seção parada e entendo que é hora de retomá-la. Se tem algum livro que já me viu compartilhar sobre e gostaria de uma resenha e leitura de trecho, deixa lá no formulário para eu saber.
Compartilhadas as novidades, deixo com vocês algumas leituras feitas nos últimos dias enquanto trabalho nas próximas tracks inéditas.
Antony vai à guerra, no Crítica da Economia
Enquanto escrevo essa newsletter, a pressão sob as tensões já existentes no Oriente Médio aumentam após o atentado no Irã que deixou 100 mortos. José Martins, em seu texto para a Crítica da Economia, explica bem o que estamos vendo acontecer diante dos nossos olhos, mas poucos parecem notar:
“No regime capitalista, o desenvolvimento científico e tecnológico se origina, em geral, para atender a demanda de armamentos crescentemente mais sofisticados e as correlatas necessidades de defesa, segurança e controle informacional do Estado. Em seguida, esses novos conhecimentos científicos e tecnológicos se adaptam e se generalizam para a totalidade da produção civil […]
No regime capitalista, toda a produção civil é marcada em seu conteúdo pelo DNA da guerra. Muda-se apenas a forma e a destinação dos valores de uso para necessidades civis e individuais. Assim, se a produção dos meios de destruição estabelece o sentido e a capacidade cientifica dos diferentes Estados e burguesias nacionais, as modernas Indústrias de Alta Tecnologia se integram acessoriamente a esse processo armamentista e suas novas necessidades. A hierarquia e o poder na ordem imperialista global é definido pela qualidade deste desenvolvimento econômico em cada Estado nacional. […]
O prolongamento do atual estado estacionário aumentará gradativamente a pressão sobre as indústrias produtoras de bens civis. As suas taxas de crescimento tenderão a declinar, na mesma medida em que as taxas das indústrias da grande esfera dos meios de destruição tenderão a se elevar a níveis cada vez maiores.
O inferno é o limite. As despesas com a guerra é um santo remédio para a crise econômica capitalista. Mas o limite desta sinistra contabilidade é que esse santo remédio só pode funcionar enquanto sua dosagem puder aumentar exponencialmente”.
Ainda nos anos 1980, em sua análise sobre o patriarcado e acumulação em escala mundial, Maria Mies nota que a produção não produtiva dos homens é baseada no saque, no roubo e na pilhagem, de forma que os homens se entendem como produtivos por meio da tecnologia, sobretudo bélica1. É um modo “de produção” essencialmente destrutivo, dependente da produção produtiva das mulheres, da natureza e das colônias. Expandir o alcance e as formas de saque, roubo e pilhagem é a única forma do modo de produção dos homens, ou seja, o patriarcado em sua fase capitalista, superar o estado estacionário e buscar alternativas frente à crise epocal do capitalismo. Em outras palavras, é necessário a disseminação irrestrita das guerras para a continuidade do fluxo de acumulação.
Jason Moore, em seu artigo Imperialism, With & Without Cheap Nature: Climate Crises, World Wars & the Ecology of Liberation, adicionará à análise o estágio particular em que vivemos: uma crise ecológica disseminada que atinge diretamente as “naturezas baratas” necessárias ao fluxo de acumulação: comida, energia, matérias-primas e trabalho. Esse fechamento epocal de fronteira significa que é a hora da elite global não necessariamente superar o modo de (re)produção não produtivo dos homens, mas buscar reinventá-lo, estressando os limites do patriarcado colonial.
A boa notícia é que, historicamente falando, é justamente na esteira dessa estagnação e crise epocal das naturezas baratas, onde as fissuras do modo de (re)produção hegemônico se ampliam, que a possibilidade de um processo radical e organizado de liberação pode ser bem sucedido. Argumentei que podemos ver esse processo na região de Rojava, na Síria2. A cilada paradoxal é que o próprio fechamento de fronteira eleva a tensão interclasses e intraclasse, ou seja, vemos uma generalização da violência não só por meio da guerra, mas entre os atores históricos que podem levar adiante essa transformação radical: femitariado (mulheres), biotariado (natureza e as colônias antigas e modernas) e proletariado. A polarização impossibilitou o dialogo e a agressão foi completamente banalizada, sobretudo com auxilio da mídia e das redes sociais. A rota de saída é recuperar a luta de classes. Para as mulheres, isso significa entender o feminismo como uma luta de classes. Temos um longo caminho pela frente.
Gender Wars History Series: Transvestite and Transexual Liberation, na newsletter da Eva Kurilova
Falando em guerra, a guerra dos homens contra as mulheres, e de alguns homens contra a realidade corporificada e encarnada dos humanos, não é de hoje embora tenha se intensificado por motivos de crise epocal e necessidade de reinventar e estressar o atual modo de (re)produção. Eu não vejo como coincidência aleatória o fato da década de 1970 marcar os primeiros passos do que hoje muita gente chama de “guerras culturais”. Os anos 70 viram a imposição das políticas neoliberais de forma contundente, uma tentativa de “fix” aos embaraços do fechamento das fronteiras de naturezas baratas. Concomitantemente, a disseminação do paradigma pós, marcado ideologicamente pela desmaterialização e o antropocentrismo radical, onde o homem é Deus, responsável por criar e controlar o mundo à sua volta por meio da palavra e da linguagem (com auxílio da sua Tecnologia e Ciência). E eu uso homem justamente porque essa é uma possibilidade dada unicamente aos homens, como já deveria estar óbvio para qualquer um minimamente prestando atenção.
Em sua série Gender Wars History,
resgata uma pequena fração dessa trajetória por meio das demandas históricas dos travestis e transsexuais, ajudando a desfazer o encantamento ingênuo com um grupo que se mostra cada dia mais fundamentalmente misógino, instrumentalizado e, em alguma medida até mesmo criado, pelo mercado e, a despeito das aparências “não conformes”, altamente conservador.Israel’s genocide betrays the holocaust, na newsletter do Chris Hedges
Chris Hedges é um jornalista especializado em conflitos, terrorismo e Oriente Médio, ganhador do Pulitzer. Esse texto sobre o atual genocídio de Israel contra o povo palestino viralizou no Substack, acredito eu, porque Hedges demonstra muito bem a instrumentalização do holocausto para justificar o injustificável com a habilidade narrativa de um excelente jornalista. Mas, se voltarmos a José Martins, Jason Moore e Maria Mies, é possível enxergar que a narrativa cultural serve para mobilizar as massas e os exércitos porque a guerra objetiva serve às elites, majoritariamente masculinas, do planeta.
Se quer ler mais, outras dicas de textos recentes:
→ The Oxford kids are alright: Students aren't the source of the culture wars – they're the solution (As crianças de Oxford estão bem: os estudantes não são a fonte das guerras culturais – eles são a solução), por Kathleen Stock, no Unheard.
→ The WHO’s Stealth Campaign to Avoid Public Scrutiny on New Gender Guidelines (A campanha furtiva da OMS para evitar o escrutínio público sobre as novas directrizes de gênero) no Reality’s Last Stand.
→ ‘Estão tentando nos convencer de que não precisam mais do trabalho humano. É uma arapuca’, diz escritora italiana crítica da IA, entrevista com Silvia Federici, no Criação Humana.
Até a próxima,
Marina Colerato
MIES, Maria. Patriarcado e acumulação em escala mundial: mulheres na divisão internacional do trabalho. São Paulo: Ema Livros: Editora Timo, 2022.
COLERATO, Marina P. Crise climática e Antropoceno: perspectivas ecofeministas para liberar a vida. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2023.