A track de hoje é um excerto da excelente introdução de Pornland: Como a pornografia sequestrou nossa sexualidade, escrito por Gail Dines, e recém publicado em português pela editora Caqui com apoio do Instituto Liberta.
A partir da introdução, fica evidente que não estamos falando de uma leitura fácil, sobretudo para quem não vê nem nunca viu a pornografia analisada por Dines. É preciso ter estômago porque, infelizmente, a pornografia mainstream é um negócio lucrativo onde a degradação da mulher é central para ter sucesso de audiência, majoritariamente masculina. No entanto, o livro é leitura indispensável para compreender a pornografização da sociedade, a relação disso com a hipersexualização de mulheres e meninas e escapar da retórica carente de materialidade sendo pregada por mulheres e homens defensores da pornografia.
Produzindo ódio: o sexo pornográfico e a destruição da intimidade
Em minha experiência de palestrante sobre pornografia por mais de duas décadas, descobri que a maioria das mulheres e alguns homens têm uma ideia de pornografia que está vinte anos desatualizada; o que geralmente vem à mente dessas pessoas é um pôster da Playboy. É fundamental estar ciente das imagens que agora são consideradas comuns na pornografia mainstream da internet. Normalmente, para mostrar ao meu público o quão hardcore a indústria se tornou, utilizo apresentações em PowerPoint com capturas de telas de sites bastante visitados. Nesta publicação, uso palavras em vez de imagens, mas devo reforçar que, por mais extremas que sejam as cenas que descrevo, minhas descrições não são nada comparadas ao que efetivamente se pode ver na pornografia.
Uma vez que a pornografia produzida comercialmente na internet é a pornografia mainstream de hoje, que é de fácil acesso e disponível a baixo custo, decidi me concentrar nela neste livro. Como a internet se tornou o sistema de distribuição dominante, ela é, atualmente, o principal canal por meio do qual a maioria dos homens, especialmente dos jovens, acessa a pornografia. Para garantir que minha reflexão levasse em conta toda a pornografia disponível na internet e não tivesse como foco apenas o tipo mais hardcore, comecei minha pesquisa digitando “pornografia” no Google e cliquei em alguns dos sites que apareceram na primeira página. Após alguns cliques, fui direcionada para centenas de sites que ofereciam toda uma gama de atos sexuais, muitos deles exibindo uma mulher com vários homens. Alguns dos atos mais populares anunciados e retratados durante a minha pesquisa rápida foram:
penetração vaginal, anal e oral de uma mulher por três ou mais homens ao mesmo tempo;
sexo anal duplo, em que uma mulher tem o ânus penetrado por dois homens ao mesmo tempo;
sexo vaginal duplo, em que uma mulher tem a vagina penetrada por dois homens ao mesmo tempo;
o gagging, em que um homem enfia seu pênis tão fundo na garganta de uma mulher que ela engasga (ou, nos casos mais extremos, vomita);
o ass-to-mouth, em que o pênis é retirado do ânus de uma mulher e colocado imediatamente em sua boca, sem lavar; e
o bukkake (ou bucaque), em que um número variável de homens ejacula, geralmente ao mesmotempo, no corpo, rosto, cabelo, olhos, orelhas ou boca de uma mulher. Em alguns desses filmes, os homens ejaculam em um copo, e o chamado “money shot” ocorre quando a mulher bebe a mistura de sêmen.5
Para entender o que um usuário curioso encontraria se quisesse ver pornografia sem ser assinante deum site, selecionei algumas imagens de forma aleatória e fiquei apenas em sites que ofereciam visitação gratuita ou vídeo de amostra. Comecei clicando no OnlyBestSex.com, que anunciava ter um mecanismo gratuito de pesquisa de pornografia para “Vídeos de sexo e sites picantes com conteúdo pornográfico”. Nesse site, havia um anúncio para “Gag Me Then Fuck Me” [Me engasgue com seu pau e depois me foda], mostrando imagens e mais imagens de mulheres sendo penetradas oral, anal e vaginalmente, por um a três homens. O texto introdutório do site diz: “Você sabe o que dizemos a coisas como romance e preliminares? Foda-se! Este não é mais um site de paus meia-bomba tentando impressionar putas atrevidas. Pegamos jovens deslumbrantes e fazemos o que todo homem gostaria de fazer. Fazemos elas engasgarem com o pau na boca até a maquiagem escorrer, e depois metemos em todos os outros buracos até assar – penetração vaginal, anal e dupla, qualquer coisa brutal que envolva um pau e um orifício. E, então, damos nelas aquele banho viscoso!”.
Os espectadores podem clicar em quantos vídeos gratuitos quiserem, pois funcionam como teasers de filmes mais longos. O teaser do vídeo Laura diz ao visitante: “A última coisa que precisamos é de uma garota vomitando – mas desta vez foi por pouco. Parar não faz parte do nosso estilo; por isso, ela foi agarrada pela cabeça e ganhou um facefuck até não aguentar mais. Ela se esforçou para engolir, mas tinha muita porra. A cadela não teve escolha a não ser engolir tudo. E, óbvio, pareciaque tinha passado um comboio em seu túnel do amor!”
Depois de mais alguns cliques, cheguei ao GagFactor.com, de propriedade da JM Productions, um site muito falado nas revistas de negócios do setor pornográfico. Quando cliquei nele, recebi um convite: “Junte-se a nós agora para acessar a degradação completa”. O site mostra centenas de imagens de mulheres jovens com pênis enfiados profundamente em suas gargantas. Algumas estão engasgando, outras chorando, e praticamente todas têm seus rostos cobertos de sêmen, especialmente os olhos. A pessoa usuária do site é bombardeada com imagens de rímel escorrendo, puxões de cabelo, esganamentos, narinas sendo apertadas para que as mulheresnão possam respirar enquanto o pênis é enfiado na boca delas, e bocas distendidas por mãos que esticam os lábios até o limite ou por pênis que são inseridos lateralmente. Abaixo de cada grupo de imagens, há “citações” de performers pornô. Eis alguns exemplos:
“Ver uma pessoa comum se transformar em um depósito de porra é uma coisa incrível de assistir.”
“Putas estúpidas, muito estúpidas. Temos que amá-las!”
“Adoro meter nessas putas idiotas!”
“É verdade, ser fodida na garganta faz emagrecer, porque todo aquele ranho que sai da cara queima caloria.”
“Não sei o que tem de errado com essas garotas, mas sou grato pela existência delas.”
Como forma de promover seus filmes, o Gag Factor oferece clipes gratuitos com duração de vinte a trinta segundos. Um dos trailers em que cliquei listou os seguintes detalhes biográficos da mulher:
Nome: Scarlett Idade: 24 anos
Status: Desaparecida há muito tempo
“Scarlett” é loira e está vestida com roupas íntimas do tipo Victoria’s Secret, bem reveladoras. Há um instrumento parecido com um torno apertando seu pescoço e cabeça. O clipe começa com Scarlett sentada emum vaso sanitário com um pênis enfiado em sua garganta, enquanto o homem dono do pênis manipula a cabeça dela para frente e para trás usando as alças do torno. Ele a arrasta do vaso sanitário e a coloca de joelhos enquanto continua a enfiar seu pênis violentamente na boca dela. Você observa Scarlett de cima e a vê começando a engasgar, os olhos esbugalhados. Ela tenta se afastar para respirar, mas o homem puxa as alças do torno em direção a seu pênis com mais força para que ela não se mova. Enquanto tudo isso está acontecendo, ele grita com ela: “Sai da porra do vaso sanitário e fica de joelhos. Agora, caralho! Eu sou um filho da puta psicótico [...] vou te foder até sua mãe sair da cova.” A intensidade das imagens e palavras fez com que esses vinte segundos de vídeo parecessem vinte minutos para mim.
Depois de mais alguns cliques, cheguei ao site Anal Suffering [Sofrimento Anal], que promete: “Toda semana, vamos trazer para você uma nova putinha sofrida. Fraca, destruída, agonizando de dor no cu e completamente arrombada. Você vai ter o imenso prazer de assisti-las.” As fotos e clipes gratuitos mostram mulheres fazendo caretas de dor enquanto o ânus é penetrado por um homem e, muitas vezes, a vagina por outro homem ao mesmo tempo. Sites semelhantes mostram imagens em close de ânus femininos vermelhos e inchados, permitindo que o espectador se demore nessas cenas de dor e destruição. Em um site que anuncia o filme Anally Ripped Whores [Piranhas de cu arrombado], o texto diz: “Nós, da Pure Filth, sabemos exatamente o que você quer e oferecemos isso pra você. Garotas sendo fodidas no cu até que o esfíncter fique assado, inchados e totalmente arregaçado. É bom essas piranhas irem atrás de fraldas geriátricas quando seu trabalho estiver concluído.”
Depois disso, fui em busca do gênero de pornô adolescente, que lista títulos de filmes como Teen Hitchhikers [Mochileiras adolescentes], Teens for Cash [Adolescentes por dinheiro], Teen Dirty Slut [Adolescente vagabunda safada], Soaped Pink Teen Pussy [Boceta adolescente rosa ensaboada] e Petite Teen Hard Fuck [Fodendo a novinha brutalmente], assim como de todo o subgênero de pornografia babysitter, que inclui Babysitters Banged [Metendo nas babysitters], Cute Babysitter Riding Cock [Babysitter bonitinha montada no pau], Fuck the Babysitter [Fodendo a babysitter] e Gag the Babysitter [Engasgando a babysitter com o pau]. Como é de se prever, existem centenas de imagens de mulheres de aparência jovem com seios pequenos e vulvas raspadas usando objetos que simbolizam a adolescência, como uniformes escolares, tranças e meias três quartos, enquanto seguram bichos de pelúcia ou chupam picolés. O texto no site Fuck the Babysitter [Fodendo a babysitter] diz: “A babysitter danada sabe o que faz de melhor: chupar pau e beber porra”. Muitos dos filmes grátis mostram uma “adolescente” sendo iniciada por um homem bem mais velho em sua suposta primeira experiência sexual.
Tudo isso é apenas uma parcela de tudo o que está disponível on-line para qualquer pessoa que tem o mínimo de conhecimento sobre computador. Como já foi observado, os meninos veem seu primeiro pornô em média aos 11 anos de idade, e, até esse momento, a maioria já tem conhecimentos de informática sofisticados o bastante para que possam acessar qualquer um dos sites descritos acima. Para os não iniciados, as cenas que acabei de descrever podem parecer muito extremas, mas, infelizmente, essas imagens representam bem o que está na internet e nos filmes produzidos em massa.
Em um dos poucos estudos que foram realizados sobre o conteúdo da pornografia contemporânea, verificou-se, a partir dos 50 dos filmes pornográficos mais alugados, que, na maioria das cenas, as performers sofrem tanto violência física como verbal. A violência física, que incluiu palmadas, bofetadas e gagging ocorreu em mais de 88% das cenas, enquanto a violência verbal, com o uso de xingamentos como vadia ou puta, foi registrada em 48% das cenas. A pesquisa concluiu que “se combinarmos violência física e verbal, nossos resultados indicam que quase 90% das cenas continham pelo menos um ato de violência, com uma média de quase 12 atos violentos por cena”.
Até algumas pessoas da indústria pornográfica estão começando a criticar as imagens violentas e degradantes que hoje fazem parte da pornografia mainstream da internet. Por exemplo, a produtora de pornografia Holly Randall, veterana no ramo e uma das poucas mulheres produtoras que conseguiu alcançar algum sucesso, escreveu: “Pelo fato de as produções mais sofisticadas terem sido deixadasde lado para abrir caminho para o conteúdo amador e mais hardcore, criamos um mercado para o que denomino Olimpíadas da Pornografia. [...] Agora a questão é quem consegue ir mais longe e o que é possível fazer: com quantos homens você pode ter relações sexuais em um filme, quantos paus podem caber em seus orifícios, de quantas maneiras diferentes você pode engolir porra? Na tentativa de superar o último cara, situações que eu nem conseguiria imaginar se tornaram de certa forma normais.”
A maioria dos atos de que Randall fala são encontrados em um subgênero da pornografia chamado pela indústria de gonzo. Geralmente referido também como wall-to-wall [de ponta a ponta] por conter cena de sexo após cena de sexo sem qualquer intenção de apresentar um enredo ou história, esse tipo de pornografia é, de acordo com um artigo de 2005 da revista Adult Video News (AVN), “o gênero de pornografia esmagadoramente dominante, pois é menos caro de produzir do que filmes baseados em um enredo”. Filmes com enredo também vendem bem, mas o que torna o gonzo tão lucrativo, de acordo com o mesmo artigo daAVN, é “a diversão do tipo de consumidor que se masturba sozinho e que simplesmente quer ir direto ao ponto, se excitar com as coisas que dão prazer e gozar logo”.
O artigo da AVN vai direto ao ponto, pois se excitar é, afinal de contas, sobre o que trata a pornografia. Mas o que o artigo ignora, e por uma boa razão, é a gama de mensagens que os homens absorvem enquanto se masturbam. A pornografia, como todas as outras imagens, conta histórias sobre o mundo, mas essas histórias são de natureza mais íntima, pois tratam de sexualidade e relacionamentos sexuais. Quando os homens buscam a pornografia para experimentar a excitação sexual e o orgasmo, eles saem com muito mais do que apenas uma ejaculação, porque as histórias se infiltram no cerne de sua identidade sexual. Sugerir o contrário seria ver o sexo apenas como um impulso biológico, removido do contexto social dentro do qual ele é desenvolvido, compreendido e encenado no mundo real. Nenhum impulso biológico existe em uma forma pura, desprovida de significado ou expressão cultural, e, na sociedade estadunidense, a pornografia é provavelmente a mais visível, a mais acessível e a mais articulada contadora de histórias sexuais.
As histórias que a pornografia conta
Apesar das milhões de imagens, dos milhões de temas e pseudo enredos, as histórias que a pornografia gonzo conta sobre as mulheres, os homens e o sexo são incrivelmente consistentes. Isso ocorre porque as imagens pornográficas são produzidas por uma indústria e, portanto, são representações roteirizadas, possuem uma fórmula padrão e são vinculadas a um certo gênero. Por mais que os pornógrafos queiram que pensemos que estão apenas capturando cenas de pessoas fazendo sexo, na realidade, tais imagens são cuidadosamente elaboradas e coreografadas. Os consumidores de pornografia têm certas expectativas sobre o desenrolar da história, e, quanto mais um filme, um programa de televisão ou mesmo qualquer texto segue um padrão definido, menos ambiguidade haverá na narrativa. Isso, por sua vez, significa que o consumidor está mais propenso a absorver as mensagens desejadas pelo produtor do que a decodificar a história de alguma maneira idiossincrática, diferente do formato estabelecido. Então, quais são as histórias que a pornografia conta ao usuário?
As mensagens que a pornografia dissemina sobre as mulheres podem ser resumidas em algumas poucas características básicas: as mulheres estão sempre prontas para o sexo e entusiasmadas para fazer o que os homens querem, independentemente de quão doloroso, humilhante ou nocivo seja o ato. A palavra “não” está visivelmente ausente do vocabulário das mulheres do mundo da pornografia. Essas mulheres parecem desejar ter seus orifícios estirados até o limite – e às vezes além –, e, efetivamente, quanto mais bizarro e degradante o ato, maior a suposta excitação sexual sentida por ela. As mulheres que fazem parte desse mundo são, quer saibam ou não, todas putas por natureza, pois todas têm um preço, que normalmente não é mais alto do que alguns trocados (como em Every bitch will suck cock for a few dollars [Toda vadia chupa pau por poucos dólares] ou This slut will do anything for rent money [Essa puta faz qualquer coisa pelo dinheiro do aluguel]). Mesmo que essas mulheres gostem de ser fodidas, parecem não ter imaginação sexual própria: o que elas querem sempre reflete o que o homem quer. Isso talvez explique por que as mulheres na pornografia gastam tanto tempo fazendo sexo oral nos homens, apesar de raramente esperarem ou exigirem qualquer reciprocidade. Na verdade, as únicas exigências que parecem fazer envolvem pedir ao homem que meta nelas cada vez mais forte.
No mundo da pornografia, as mulheres nunca estão preocupadas com gravidez, infecções sexualmente transmissíveis ou danos a seu corpo, e são surpreendentemente imunes quando chamadas de puta, piranha, depósito de porra, vadia, cadela, boceta gostosa, buraco de foda, vagabunda esguichadora e vaca estúpida. Parecem confortáveis com a ideia de que seu(s) parceiro(s) enxergue(m) sua sexualidade como algo repulsivo (como em “piranha asquerosa”, “putinha imunda” ou “depósito nojento de porra”), e geralmente se referem a si mesmas dessa maneira. De fato, as mulheres do mundo da pornografia parecem gostar de fazer sexo com homens que expressam nada além de desprezo e ódio por elas, e geralmente quanto pior o insulto, melhor o orgasmo para todas as pessoas envolvidas. É um mundo descomplicado onde as mulheres não precisam de salários iguais, assistência médica, creches, aposentadoria, boas escolas para suas filhas e filhos nem de moradia segura. É um mundo cheio de mulheres unidimensionais que nada mais são do que um conjunto de buracos.
A narrativa que a pornografia constrói sobre os homens é, na verdade, ainda mais simples. Os homens na pornografia são retratados como sistemas de suporte de vida para pênis eretos, sem alma, insensíveis e amorais, que têm o direito de usar as mulheres da maneira que quiserem. Esses homens demonstram zero empatia, respeito ou amor pelas mulheres com quem fazem sexo, independentemente do desconforto ou da dor que elas possam demonstrar. Provavelmente, a coisa mais peculiar sobre os homens do mundo da pornografia é que eles não têm nem mesmo a capacidade de expressar excitação; e não importa a intensidade da ereção, pois não exibem nenhum dos sinais que normalmente associamos à excitação sexual. O único momento em que os homens gemem, grunhem ou se contorcem é quando estão prestes a ejacular; no resto do tempo, eles enfiam o pênis nos orifícios da mulher de forma metódica e com um olhar de profunda concentração em seus rostos. Isso pode ficar ainda mais bizarro, especialmente em uma cena de sexo oral em que o homem age de forma impassível metendo o pênis profundamente na boca da mulher até ela engasgar, sendo ela a única a demonstrar qualquer reação de orgasmo. E quando os homens do pornô gozam, eles simplesmente dão o sexo por terminado – não há a menor demonstração de intimidade pós-sexo com a mulher em quem acabaram de ejacular.
Em um mundo povoado por mulheres que são “vagabundas” robóticas e homens que são garanhões robóticos, o sexo será previsivelmente desprovido de qualquer intimidade. O sexo pornográfico não é sobre fazer amor, pois os sentimentos e emoções que normalmente associamos ao ato – conexão, empatia, ternura, carinho, afeto – são substituídos por aqueles mais frequentemente associados ao ódio – medo, nojo, raiva, aversão e desprezo. Na pornografia, o homem odeia a mulher, pois cada ato sexual é pensado para causar o máximo de degradação possível. Se o homem está sufocando-a com seu pênis ou enfiando-o repetidamente no ânus dela até que fique vermelho-sangue, o objetivo do sexo pornô é ilustrar quanto poder ele tem sobre ela. É o que ele quer, quando, onde e como, porque ele controla o ritmo, o tempo e a natureza dos atos.
O poder que os homens têm sobre as mulheres no sexo pornô está codificado nos atos sexuais e na violência física e verbal que os acompanham. O sexo oral ocorre quase sempre com ele em pé e ela de joelhos; nessa posição superior, ele pode controlar o ritmo da intensidade com que enfia seu pênis, enquanto segura o rosto e/ou pescoço da mulher com força. Quando uma mulher se afasta do pênis na tentativa de recuperar o fôlego, ele intensifica as enfiadas, fazendo com que ela engasgue ainda mais. A penetração vaginal e anal geralmente ocorre com ela deitada sobre uma cama, sofá ou mesa, sendo que ele está sempre sobre ela, uma boa posição para olhá-la na cara e dizer-lhe que prostituta nojenta ela é. Se as mãos dele estão sobre o corpo dela, não estão lá para acariciar ou afagar, mas para segurá-la ou esticar um orifício para que seu corpo se torne ainda mais acessível e vulnerável. Que a mulher é um mero objeto já está claro em muitas cenas em que o homem a agarra e a puxa de supetão para um sofá ou para o chão, de modo que possa posicionar seu corpo acima do dela enquanto ejacula em seu rosto ou em sua boca. Em alguns casos, isso é tão agressivo que ela cai no chão com um baque e precisa se levantar rapidamente para que o espectador tenha uma visão panorâmica do sêmen sendo esguichado nela.
O que parece surpreendente a princípio, quando pensamos sobre a pornografia gonzo, é o quão poucas cenas existem com várias mulheres e um homem; mas, para muitos homens, fazer sexo com mais de uma mulher já é uma fantasia desgastada pelo tempo. Quando há múltiplos performers, geralmente é uma mulher com vários homens. Se pornografia é sobre dominação e degradação, então faz sentido que as mulheres estejamem menor número, já que vários homens penetrando uma única mulher sugere impotência por parte dela. E se essa situação de dominação se inverter e houver mais mulheres do que homens na cena, então há sempre a possibilidade de que as mulheres, superando em número os homens, sejam as detentoras do poder.
Cenas em que uma mulher é penetrada de forma múltipla também revelam o fato de que grande parte da pornografia gonzo é sobre ver até que ponto é possível manipular o corpo de uma mulher antes que ele seja ferido. Uma vagina ou ânus com dois pênis dentro está vulnerável a rasgos e prolapso. Enfiar um pênis fundo em uma garganta também pode causar danos, assim como enfiar o pênis lateralmente na boca de uma mulher de modo que a boca seja esticada até alcançar proporções quase desumanas. O volume de pornografia produzido hoje significa que há uma competição frenética, visto que os produtores não só excedem os limites do que é possível fazer, mas também colocam as atrizes em níveis de risco cada vez mais elevados. Nesse processo de desmantelamento dos padrões de regulação existentes, a crueldade da fantasia propagada pela pornografia transborda para o mundo real.
Um dos atos mais degradantes na pornografia é chamado de “money shot”; nele, o homem ejacula no rosto ou no corpo da mulher. O ato geralmente marca o fim da cena e é central para a construção ecomercialização do filme pornô. Embora seja um elemento básico dos filmes pornográficos há muitos anos, o money shot teve recentemente uma nova guinada na pornografia gonzo: a mulher bebe o sêmen coletivo de vários homens (bukkake) ou o segura na boca e a câmera filma o sêmen escorrendo por seu queixo. Outra reviravolta relativamente nova é a “troca de porra” (em inglês, cumswapping), em que uma mulher passa o sêmen para a boca de outra mulher. Hoje, existem filmes pornôs que focam especificamente nisso, como o Cum Swapping Bitches [Vadias trocando porra] e Cum Swapping Cheerleader [Animadora de torcida trocando porra], bem como filmes que prometem mostrar as mulheres engolindo sêmen.
A ejaculação também marca a mulher como um objeto, como propriedade do homem ou dos homens que acabaram de penetrá-la. O veterano ator pornô e produtor Bill Margold explicou o money shot da seguinte forma: “Eu gostaria de mostrar o que acredito que os homens querem ver: violência contra as mulheres. Acredito realmente que servimos a um propósito ao mostrar isso. O nível mais violento a que podemos chegar é a gozada na cara. Os homens se excitam com isso, porque se vingam das mulheres que não podem ter. Tentamos inundar o mundo com orgasmos na cara.” Que os espectadores se divertem com os money shots é algo que fica evidente nas postagens contidas no fórum Adult DVD Talk, um site para discussões entre fãs de pornografia. Nele, os fãs discorrem longamente sobre seu money shot preferido e geralmente fornecem um relato detalhado da cena. Jim 2, por exemplo, diz a seus amigos virtuais: “Considero memoráveis as cenas de gangbang que terminam com a garota totalmente destruída, com um monte de porra na cara e nas tetas”, enquanto The The gosta de ver “o engasgo e a ânsia de vômito surgindo”. Alguns dos autores das postagens deixam claro que, para eles, o prazer surge em ver uma mulher sofrer de verdade: “Kaci Starr começa a ter ânsia de vômito/engasgar assim que a primeira gota de esperma atinge sua língua – é demais. A melhor cena desse tipo (e em que Kaci fica totalmente esgotada) é uma cena incrível dela em Throat Gaggers #10 [Engasgadoras #10]. Ela começa a vomitar a porra (e um pouco do que ela comeu no almoço! lol). Começa a chorar enquanto luta para segurar tudo dentro. Maravilhoso.” O money shot parece uma maneira sucinta de transmitir várias mensagens sobre como o sexo pode ser usado como um veículo para marcar o feminino como absolutamente impotente e o masculino como todo-poderoso.
Ouso dizer que os atos sexuais que descrevi acima não são aqueles que a maioria das mulheres procura no mundo real, nem aqueles que a maioria dos homens se sente à vontade em pedir à sua parceira para realizar. Por outro lado, atos que fazem parte da experiência sexual de muitas pessoas, como beijar, abraçar eacariciar, estão visivelmente ausentes na pornografia. Isso nos obriga a perguntar por que os homens que assistem à pornografia são tão atraídos por imagens que retratam tipos de comportamento tão em discordância com o mundo real. Uma resposta óbvia poderia ser que os homens se refugiam na pornografia como uma maneira de realizar uma fantasia, de evocar imagens mentais que não são reais, mas que, no entanto, são prazerosas. Mas se fosse tão simples assim, não haveria a mesma quantidade de pornografia retratando mulheres e homens fazendo um ótimo sexo com profunda conexão e intimidade, ou então mulheres tendo orgasmos incríveis provocados por um amante super habilidoso que tem uma compreensão intuitiva dos corpos das mulheres? Essa também seria uma fantasia para muitos espectadores e espectadoras, mas, evidentemente, não é a que a pornografia escolhe representar com regularidade. Em vez disso, a pornografia encena o sexo “fantasia” que se parece mais com violência sexual do que com fazer amor.
Alguns podem argumentar que violência é uma palavra muito forte, mas se analisarmos o que realmente está acontecendo em uma cena de pornô gonzo a partir das experiências vividas pela mulher no filme, teremos uma ideia do que está ocorrendo com ela como ser humano. Uma pessoa que está viva e que respira está sendo penetrada em todos os seus orifícios por inúmeros homens – homens com quem ela provavelmente não tem nenhuma conexão emocional real. Seus pênis são geralmente mais longos e mais grossos do que a média, e às vezes são fortificados com Viagra, uma vez que a penetração sem ejaculação tem que continuar por algum tempo. O corpo dessa mulher, como o nosso, tem limites físicos reais; entretanto, o objetivo do filme é ver até onde esses limites podem ir. Em algum momento, durante o ato, a vagina ficará dolorida, o ânus, em carne viva e inchado, e aboca doerá por ter tido pênis imensos entrando e saindo dela durante um longo período de tempo. À medida que isso ocorre, ela é chamada de todos os nomes mais repugnantes que existem na Terra. Durante essa agressão corporal – que até mesmo a indústria da pornografia admite estar causando sérios danos aos corpos das mulheres –, ela tem de parecer que está gostando, tem de dizer aos homens que a penetram que ela ama o pau grande deles ou qualquer coisa do tipo, e finalmente tem de lamber o sêmen como se adorasse o sabor.
Quando a gravação acabar, ela vai se levantar da cama ou do chão, ir ao banheiro para lavar a substância grudenta e verificar seus orifícios para checar o estrago. Ela também precisará garantir que não contraiu nenhuma das doenças ou infecções a que se expôs, considerando o que seu corpo acabou de passar. De acordo com a Adult Industry Medical Health Care Foundation [Fundação para Cuidados Médicos de Saúde da Indústria Adulta], essas doenças incluem: HIV; gonorreia anal; laceração na garganta, vagina e ânus; tracoma; e gonorreia na garganta (faringite gonocócica). E ela vai seguir suportando tudo isso até que esteja totalmente desgastada para continuar ou seja desprezada pela indústria em troca de “carne fresca”, da qual, ao que parece, nunca há qualquer escassez.
Os homens que vão atrás de pornografia geralmente já estão excitados, pois antecipam o orgasmo que estão prestes a ter. Obviamente, em tal estado, eles não estão nem um pouco dispostos a embarcar em uma desconstrução crítica sobre como a mulher está sendo tratada, mas realmente não é preciso muita observação para notar que o corpo dela está sendo usado de maneiras que parecem ser dolorosas e degradantes. Poucas mulheres são atrizes experientes, e muitas não são capazes de esconder seu desconforto ou dor ao serem penetradas por vários pênis. Algumas parecem esgotadas e acabadas no final da cena.
À medida que a pornografia se torna mais extrema e o corpo da mulher é tratado de maneiras cada vez mais cruéis, é de se perguntar como os usuários de pornografia conseguem manter uma ereção. Sem dúvida, há alguns que gostam de ver as mulheres sofrerem, mas, honestamente, não acredito que o homem comum seja um sádico que odeie mulheres. Essa é a imagem dos homens que os pornógrafos criam, mas é uma imagem que, ironicamente, se considerada nossa reputação de odiar homens, as feministas rejeitam, já que nunca acreditamos que os homens já nascem misóginos. E aquelas de nós que têm filhos homens recusam-se a aceitar que o pequeno menino ao qual demos à luz, alimentamos, banhamos, nutrimos e amamos saiu do útero com um dispositivo de localização para o GagFactor.com.
Se nos recusamos a aceitar a resposta fácil de que os homens possuem uma predisposição natural para ficarem excitados ao verem mulheres sendo machucadas, teremos que olhar para a cultura em busca de respostas sobre por que alguns homens buscam pornografia gonzo e a apreciam. Teremos que perguntar: o que há na socialização masculina e na masculinidade que ajuda a preparar os homens – na minha visão, com um propósito específico – para procurar essas imagens e se masturbar com elas? As respostas não estão nos homens como indivíduos; muito pelo contrário, elas podem ser encontradas na cultura em que todas e todos vivemos. A pornografia não é algo que está fora de nós: está profundamente enraizada em nossas estruturas, identidades e relacionamentos. Tudo isso não aconteceu da noite para o dia, e há uma história a ser contadasobre como chegamos ao ponto de a maior parte da pornografia disponível na internet ter se tornado tão odiosa e cruel.
Começamos essa investigação com um histórico da indústria pornográfica que foca nas formas como as revistas Playboy, Penthouse e Hustler criaram o espaço econômico e cultural para a pornografia hardcore dos dias atuais. O Capítulo 1 analisa especificamente como a concorrência entre essas três revistas extrapolou oslimites do que era considerado “aceitável” na pornografia convencional das décadas de 1970 e 1980. Hoje, há toda uma nova gama de agentes trabalhando para levar a pornografia para amídia convencional ou mainstream. O Capítulo 2 analisa alguns dos principais indivíduos e empresas que foram bem-sucedidos em tornar a pornografia mais aceitável.
Argumentar que a pornografia faz parte do mainstream vai além de observar a maneira como as imagens se infiltraram em nossas vidas; inclui uma análise de como a pornografia está perfeitamente encrustada no capitalismo mainstream. Por isso, o Capítulo 3 analisa de perto o que significa, para a indústria pornográfica, fazer parte de uma estrutura corporativa mais ampla; além disso, investiga setores tradicionais, como os de hotéis, bancos e operadoras de TV a cabo, que ganham rios de dinheiro com a indústria pornográfica. A necessidade de criar mercados e oferecer aos consumidores algo diferente explica, em parte, por que a pornografia está sempre à procura de um novo ato sexual bizarro. O que não se explica é como os homens podem ficar excitados com imagens de mulheres sendo desumanizadas e depreciadas. O Capítulo 4 argumenta que, para responder essa questão, precisamos olhar para as formas como os homens são socializados pela cultura e pela indústria pornográfica, uma vez que ambas carregam uma imagem dos homens como agressivos,insensíveis e desconectados de suas emoções e de outras pessoas.
O que acontece com os homens usuários de pornografia? Esta é, sem dúvida, a questão mais debatida nadiscussão sobre pornografia. Em vez de refazer todo o debate ou aprofundar os numerosos estudos já realizados por psicólogas e psicólogos, no Capítulo 5 analiso como as imagens afetam a maneira como percebemos a realidade e por que, dado o que sabemos sobre os efeitos causados pela mídia, é incorreto argumentar que os homens permanecem os mesmos após terem acesso a pornografia.
Os homens não são o único grupo transformado pela cultura pornográfica. Meninas e mulheres, emboranão sejam grandes consumidoras de pornografia, são inundadas com imagens da cultura pop, que, apenas dez anos atrás, teriam sido consideradas pornô softcore. O Capítulo 6 analisa como a imagem de feminilidade lançada sobre meninas e mulheres se tornou cada vez mais limitada, a ponto de um corpo “sarado” ser o único que atende a padrões culturais extremamente rigorosos.
Alguns grupos celebraram essa hipersexualização como algo empoderador para as mulheres, mas argumento que esse é um pseudo empoderamento, uma vez que é um substituto infeliz para o que o poder real de fato significa – igualdade econômica, social, sexual e política, que dá às mulheres poder para controlar as instituições que afetam nossas vidas.
Os pornógrafos, sempre buscando adicionar um frenesi extra ao sexo gonzo, desenvolveram uma série de nichos de mercado. Um nicho muito lucrativo tem como foco as pessoas de cor, tópico do Capítulo 7. Gênero conhecido por sua falta de sutileza, a pornografia produz e reproduz alguns dos piores estereótipos racistas do passado e do presente. Tendo em vista que a maioria desses filmes é feita para um público masculino branco, a questão aqui é: como imagens racistas sexualizadas moldam a maneira como os usuários pensam sobre raça? Outro nicho popular é conhecido como pornografia pseudoinfantil; embora use mulheres de dezoito anos ou mais, elas são representadas de modo que pareçam muito mais jovens do que realmente são. O Capítulo 8 ilustra como os pornógrafos – usando adereços relacionados à infância, tal qual meias,uniformes escolares e ursinhos de pelúcia – convidam o usuário a adentrar o mundo em que a sexualização das crianças é normalizada.
A conclusão questiona o que deve ser feito quanto a essa pornografização da nossa cultura. Nenhuma resposta fácil surge como óbvia, já que se trata de um problema profundamente enraizado na forma comonossa sociedade é estruturada. Em última análise, para lutar contra essa força destrutiva e irrefreável, necessitamos de uma ação coletiva. As soluções individuais são importantes, mas a mudança social nunca acontece no nível do indivíduo. Os pornógrafos fizeram uma espécie de ataque furtivo à nossa cultura, sequestrando nossa sexualidade e depois vendendo-a de volta para nós, geralmente de formas que se parecem muito pouco com sexo, e muito mais com crueldade. A única solução para isso é um movimento que seja feroz em sua crítica à exploração sexual e firme em sua determinação de lutar pelo que é nosso por direito.
Estou sem palavras, em choque e com vontade de chorar por tanta degradação.
Estou em choque, mais ainda por ter meu bebê em mãos com seis meses. Meu menino....o que farei?