A história do 8 de março e do movimento feminista tem sido profanada, violentada, colonizada e desvirtuada de forma a descaracterizar sua razão de ser.
Em 1910, Clara Zetkin propôs a criação de um Dia Internacional da Mulher no II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague. Diversas manifestações de trabalhadoras na Europa se seguiram desde a proposta da criação da data. A manifestação mais famosa aconteceu em 8 de março de 1917, quando operárias russas do setor de tecelagem entraram em greve e pediram apoio aos metalúrgicos.
O Dia Internacional da Mulher é uma data política, criada por movimentos de mulheres em todo o mundo no início do século XX, reivindicando direito ao voto, a melhores condições de trabalho e emancipação cidadã, bem como combatendo o abuso sexual dentro das fábricas pelos patrões. Por isso, esta data simboliza a resistência das mulheres e sua luta pela garantia de direitos e pela libertação de sua classe do sistema de dominação masculina.
Foi a partir da luta pelo reconhecimento básico do seu direito à cidadania que mulheres puderam, ainda muito recentemente, ingressar em universidades, participar da política e começar a disputar as narrativas hegemônicas patriarcais acerca da História, da Cultura e da Ciência como um todo. Assim, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, eclodiram os Estudos das Mulheres e o Movimento Feminista ou Movimento pela Libertação das Mulheres, reivindicando o reconhecimento das mulheres enquanto classe explorada através do trabalho reprodutivo e doméstico, denunciando o sexismo que se traduz na dominação da classe sexual masculina sobre as mulheres, e evidenciando o patriarcado como a raiz histórica da sociedade de classes e de todos os sistemas de exploração.
Geralmente, o dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é associado, tanto pela mídia quanto pelos setores público e privado, a uma data comemorativa com apelo comercial. Ressaltamos que a importância deste dia transcende a celebração e as homenagens, sendo, antes de tudo, um dia para promover a consciência de classe sexual entre as mulheres e a luta pelo fim do sistema de dominação masculina.
O que desejamos para o 8M
Nós desejamos que meninas e mulheres possam se desenvolver e escolher seus caminhos sem limitações e imposições sociais sexistas e desumanizantes. Que seu trabalho seja reconhecido em todas as esferas: doméstica, reprodutiva e produtiva. Que possam expressar sua voz enquanto cidadãs e sujeitos políticos, sem sofrer retaliação por isso. Que tenham seus direitos básicos garantidos, sem serem sistematicamente vitimizadas pelas inúmeras violências misóginas, tais como objetificação e exploração sexual, assédio, estupro, violência obstétrica, exploração reprodutiva, feminicídio, mutilação genital, discurso de ódio, dentre outras violências materiais e simbólicas.
Desejamos que o 8M seja uma data de resgate e fortalecimento das pautas históricas do feminismo, dentre elas:
a denúncia ao patriarcado como sistema fundante de todas as formas conhecidas de violência estrutural, como o colonialismo, o ecocídio, o racismo e a homofobia;
a denúncia contra a violência masculina e o enfrentamento ao feminicídio ;
a luta contra a violência sexual, o assédio e a cultura do estupro;
o combate à pornografia, à prostituição e à barriga de aluguel;
a luta pela autonomia reprodutiva, pela educação sexual e pelo direito ao aborto;
a luta contra a violência doméstica e o feminicídio;
a luta contra a violência obstétrica, jurídica e institucional contra mães e seus filhos;
a revogação da Lei de Alienação Parental no Brasil;
a implementação de políticas públicas para geração de trabalho e autonomia financeira de mulheres mães, principalmente mães solo;
o combate ao racismo e o fortalecimento das organizações de mulheres negras e indígenas;
a proteção da infância e a denúncia à cultura da pedofilia;
a libertação de papéis sociais sexistas;
o reconhecimento do trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidado enquanto trabalho efetivo e fundante da economia;
a reivindicação de espaços físicos, intelectuais, esportivos e políticos exclusivos ao sexo feminino, portanto protegidos da dominação e da violência masculinas;
a luta contra o lesboódio e o fortalecimento das organizações de mulheres lésbicas;
a denúncia e o combate à hegemonia masculina e às teorias masculinistas e neoliberais nos espaços de produção intelectual, incluindo as universidades, os partidos e os movimentos sociais mistos;
o direito das mulheres à sua autodefinição;
o resgate e a valorização da História e da Cultura, passada e presente, das mulheres;
o fortalecimento de iniciativas de criação artística, intelectual e política de mulheres, com perspectiva feminista;
a transformação da organização social, política e econômica a partir de uma perspectiva centrada nas mulheres e crianças.
Para conquistarmos esses objetivos, dos quais derivam uma sociedade mais justa, com pessoas livres, sem opressão e exploração sistemáticas, devemos combater o patriarcado, o sistema de dominação masculina, que vem impondo a violência e a guerra como modo de organização social há pelo menos 5 mil anos.
O que não é o 8M:
O 8M não é uma data criada para comemorar “características femininas”, beleza, delicadeza, garra ou qualquer outro estereótipo da chamada feminilidade. Foi uma data criada para marcar a exploração da classe trabalhadora das mulheres e nossas lutas por emancipação. Porém, é comum que os grupos orientados à direita se utilizem desse dia para reforçar os estereótipos sexistas e perpetuar a narrativa patriarcal acerca do “lugar da mulher”.
A prof. Eva Blay, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP afirma que:
“Desvincular o 8 de março, hoje considerado um dia festivo e capitalista – em que patrões e empresas insistem em “presentear” funcionárias com maquiagem, flores e serviços em salões de beleza – da luta de operárias por melhores condições de trabalho, é uma maneira de apagar o protagonismo das mulheres em sua própria história social e política”.
O esvaziamento do significado político do Dia Internacional da Mulher, fomentado por alas conservadoras e largamente apoiado pela indústria e comércio, que dele se beneficiam, resultou em grande desmobilização em torno das pautas fundamentais do 8M e aprofundou o distanciamento de mulheres comuns dos debates feministas aos quais a data buscava dar visibilidade.
Por outro lado, quando se trata dos movimentos sociais progressistas, o esvaziamento do 8 de março se dá pela cooptação ideológica do movimento feminista pelo neoliberalismo, que propaga um “feminismo” sem aprofundamento e comprometimento com as questões reais que afetam as vidas das mulheres. Estes movimentos têm contribuído para o apagamento da mulher como sujeito político e perpetuado imposições sexistas, como a ideia de que mulheres devem acolher e priorizar as pautas de outros movimentos e relegar suas próprias questões ao segundo plano. Podemos traçar um paralelo com o que acontece cotidianamente com milhões de mulheres brasileiras dentro de suas casas, empurradas para o trabalho “invisível” reprodutivo, doméstico e de cuidado de filhos, idosos, maridos e comunidade, ficando privadas da atenção a si mesmas e de suas necessidades básicas.
Ainda mais grave são movimentos autoproclamados “feministas” ou à esquerda difamando, coagindo, agredindo e até mesmo criminalizando mulheres que se posicionam por um feminismo centrado em mulheres, por espaços exclusivos ao nosso sexo e pelo direito fundamental de definirmos a nós mesmas. Este tipo de perseguição política é truculenta, antidemocrática e antifeminista, e configura violência política contra mulheres e reacionarismo masculinista.
O 8M não é sobre “acolher o mundo”, pois esta máxima aparentemente “boazinha” configura um autoboicote do movimento e corresponde à expectativa de que sejamos submissas às exigências de grupos que não o das mulheres. O feminismo, assim como o Dia Internacional das Mulheres, deve ser sobre colocar meninas e mulheres no centro, cientes de que, historicamente falando, a luta por libertação das mulheres, mães de toda a humanidade, é a mãe de todas as lutas.